quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Raízes Aladas - Cristiane Caracas



Havia um jardim em um casarão abandonado de uma rua sem nome. O casarão ficava no final da rua. A casa não era tão grande para ter recebido o título de casarão, mas, talvez pela imponência do seu jardim, tenha merecido a alcunha.
De fato, o jardim do casarão era um espetáculo à parte, com flores de inúmeras espécies que, embora descuidadas pelo homem, a natureza tratava de vesti-las de forma suntuosa, com texturas e cores que somente a mãe natureza é capaz de cerzir. Dentre essas flores existiam as rosas vermelhas. Uma delas pequenina, contrariando os fatos, era a que mais chamava a atenção.
Chamava-se Bela, fazia jus ao nome, era de fato bela! Possuía um vermelho diferente das demais, na verdade nem vermelho propriamente poder-se-ia dizer que era, um escarlate que de tão vibrante encantava aos olhos de quem se atrevesse a encará-lo. Bela tinha ainda um aroma inigualável, motivo da inveja das outras rosas. Ninguém jamais soube descrever aquele perfume que misturava o amadeirado do almíscar, jasmim e âmbar, tudo junto e misturado de forma tão harmoniosa que enfeitiçava os sentidos daquele que ousasse chegar perto.
Um inocente beija-flor, desavisado, atreveu-se a beijar Bela, ficou parado no ar, batendo suas asas de forma incessante, enquanto todos os seus sentidos eram tomados pela beleza, cor e aromas da rosa. Um instante, apenas um instante, mais de uma centena de sensações invadiram o pássaro, indescritível era a palavra para aquele momento.
Quanto à Bela, ave nenhuma jamais havia ousado sequer aproximar-se, quanto mais beijá-la.
- Quanto atrevimento, pensou, mas, no fundo, gostou do que chamou de enxerimento de beija flor.
E todos os dias era assim: ele chegava sem avisar e arrebatava-lhe um beijo, sem pressa, sem a intenção de tomar-lhe qualquer seiva, de forma inviolável,apenas pelo prazer de inebriar-se por aquelas sensações. E Bela se deixava beijar, fingia não querer e ter sido tomada de surpresa em beijos roubados, mas, não passavam de beijos desejados e esperados. Embora sem aromas ou cores sensacionais aquele beija-flor, sempre que a beijava, levava um pouco dela com ele. Na verdade levava sua doçura em forma de néctar e isso os conectava de forma indelével.
Certo dia ele não veio, não houve beijos roubados e foi aí que Bela se deu conta de um pequeno detalhe que até então lhe fugia à consciência. Ele era livre, ela não. Bela possuía raízes que a aprendia ao solo, ele tinha asas que o ofereciam o céu e o levava para onde desejasse, inclusive para outras rosas.
Angustiou-se, atormentou-se com a liberdade alheia, desconhecia a condição de livre, mas sabia das possibilidades e, embora com raízes no solo, faltou-lhe o chão, como se fosse possível a uma rosa sentir ciúmes.
De suas pétalas saltaram gotas de orvalhos, cuja salinidade não deixava dúvidas que eram lágrimas de rosa.
Naquele instante sentiu-se beijada novamente, não era o mesmo beijo, parecia grosseiro, arrogante, sem sentimento ou sensações do beijo que era só seu. Não gostou, repugnou, não era ele. Quis correr, lembrou-se de suas raízes, esquivou-se aproveitando o vento que soprava naquela direção, quase gritou que pertencia a outro beijo, reagiu como pode, mas teve consciência de que era apenas uma pequena rosa e ele um beija-flor qualquer que pouco se importava com seus sentimentos.
Compreendeu que ao escolher pela ausência, o seu beija-flor tornava-a também livre, liberdade decorrente de uma disponibilidade dolorosa porque involuntária e não pretendida.
E nesse devaneio de fuga, viu seu beija-flor chegar que tomado por fúria arremessou-se contra o aventureiro, como senão fosse permitido a ninguém mais beijar sua rosa. Era assim, sua rosa e não importava o quanto livre ele fosse e o quão permitido era beijar qualquer outra rosa ou flor, era somente ela, com seu perfume e cores inigualáveis que o fazia feliz, como nenhuma outra flor o fazia.
Quis encarcerar a liberdade e perdê-la naquele jardim para reencontrar nela, somente nela, num total descaso do livre, porque inútil, abriu mão do céu e desejou criar raízes como ela, queria ficar ali, naquele jardim abandonado porque era naquele abandono que se sentia em casa.
Bela e o beija-flor ficaram juntos e dessa união, com polinizações diárias, fez-se um novo jardim, com rosas vermelhas do tipo trepadeiras, que buscam sempre o céu, com sementes aladas que ao menor toque da brisa se dispersam ao vento, revelando suas origens híbridas de raízes e asas e indicando, como vetores, nada ser impossível quando se ama de verdade, nem mesmo dar asas a rosas e raízes a beija flores.
Cristiane Caracas

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