Era
Natal, chegava ao orfanato Santa Cecília um baú vermelho contendo alguns
brinquedos, brinquedos esquecidos, empoeirados e encardidos pelo tempo que ao
se descortinar revela aquilo a que nos predestinamos.
Aqueles
brinquedos haviam sido úteis. Serviram a uma criança rica e alegre que um dia
se divertiu com eles. Um deles se
destacava: uma boneca de vestido de fita azul, cabelos vermelhos e olhos
enormes que de tão grandes pareciam enxergar o mundo inteiro.
E
foi nesse dia que Adrielle, uma criança do orfanato, linda, magrinha, cabelos
cacheados, sorriso que sozinho era capaz de iluminar tudo ao seu redor, chegou
de mansinho defronte ao baú e foi retirando os brinquedos de forma ansiosa,
como se adivinhasse que no fundo daquele baú encontraria a sua boneca.
Adrielle ao colocar os olhos na boneca sentiu
como se ela tivesse encontrado uma metade sua perdida, um pedaço seu esquecido
em algum lugar e que agora ao reencontrá-lo podia finalmente se sentir completa.
E
foi assim que não existia Adrielle sem a boneca e nem a boneca sem Adrielle. Estreitaram
de tal forma a relação que a boneca de olhos grandes passou a enxergar com os
olhos da criança órfã. E como isso foi possível? É que aquela boneca, assim
como Adrielle, conhecia bem a involuntária intimidade com a solidão do
abandono.
Batizaram-na
de Liz e Liz vivia assim entre as crianças do orfanato, por vezes jogada em um
canto qualquer, mas nunca esquecida. Liz via tudo, ouvia tudo e com o passar do
tempo e nessa simbiose de vidas pode também sentir tudo.
Liz
sentiu que aquelas crianças tinham medo, um medo que se tornava ainda pior por
ser desconhecido, apavorante pelo vazio do colo de mãe.
Eram
noites intermináveis, solitárias, frias de sentimentos, de aconchego e de
carinho, com porquês atormentantes do passado e talvez incertos do futuro.
Acalantos negados, cantigas de ninar não ouvidas e o gosto amargo na boca do
leite que azedou no seio.
Depender
da caridade e do amor alheio era o castigo imposto àquelas crianças, como numa
colcha de retalhos onde se costuram sobras de tempo, amores emprestados, carinhos
divididos e sonhos não vividos. Liz assistia a tudo em silêncio, por respeito
àqueles coraçõezinhos que cedo, ainda no ventre, foram machucados por aqueles que
não souberam amar.
Tinha
a sensação de que aquelas crianças sentiam saudades daquilo que não viveram,
como se fosse possível viver vidas em outras vidas, em um paralelo frustrante
daquilo que devia ter sido e aquilo que é.
O
Natal se foi e Liz e as crianças tiveram que aprender, com o menino Jesus, a
amar sem julgar, compreendendo que os seres possuem razões e culpas próprias
que nem uma existência inteira vivida é tempo suficiente para se perdoar. Suas
sentenças são proferidas por elas mesmas e, por isso, não ousam fugir à
verdade. A pena é a inesquecível consciência dos atos que como correntes
inquebráveis ferem os pulsos, mas latejam n’alma.
Fortaleza/CE, 24 de dezembro
de 2013.
Cristiane Caracas
Nenhum comentário:
Postar um comentário