Resumo
do Livro XVIII – Além do Princípio do Prazer, Psicologia de Grupo e outros
trabalhos (1920-1922)
Nota
do editor inglês
_ Como é demonstrado por sua
correspondência, Freud começou a trabalhar num primeiro rascunho de Além do Princípio de Prazer
em março de 1919 e informou que esse rascunho estava terminado em maio
seguinte. Durante o mesmo mês, ele completou seu artigo sobre ‘The Uncanny’
(1919h), que
inclui um parágrafo que apresenta grande parte da essência da presente obra, em
poucas frases. Nesse parágrafo, refere-se à ‘compulsão à repetição’ como sendo
um fenômeno apresentado no comportamento das crianças e no tratamento
psicanalítico; sugere que essa compulsão é algo derivado da natureza mais
íntima dos instintos e a declara ser suficientemente poderosa para desprezar o
princípio de prazer. – p. 13;
_ Explicou o orador que,
juntamente com os familiares sonhos de desejo e os sonhos de ansiedade que
podiam ser facilmente incluídos na teoria, existiam fundamentos para reconhecer
a existência de uma terceira categoria, à qual deu o nome de “sonhos de punição”.
Se levarmos em conta a justificável suposição da existência de um órgão
especial auto-observador e crítico no ego (ideal do ego, censor, consciência),
também esses sonhos de punição devem ser classificados na teoria da realização
de desejo, porque representariam a realização de um desejo por parte desse
órgão crítico. Tais sonhos, disse ele, possuem aproximadamente a mesma relação
com os sonhos de desejo comuns que os sintomas da neurose obsessiva, surgidos
na formação reativa, têm com os da histeria. –
p. 14;
Além do Princípio do Prazer
I
_ Na teoria da psicanálise não
hesitamos em supor que o curso tomado pelos eventos mentais está
automaticamente regulado pelo princípio de prazer, ou seja, acreditamos que o
curso desses eventos é invariavelmente colocado em movimento por uma tensão
desagradável e que toma uma direção tal, que seu resultado final coincide com
uma redução dessa tensão, isto é, com uma evitação de desprazer ou uma produção
de prazer. Levando esse curso em conta na consideração dos processos mentais
que constituem o tema de nosso estudo, introduzimos um ponto de vista
‘econômico’ em nosso trabalho, e se, ao descrever esses processos, tentarmos
calcular esse fator ‘econômico’ além dos ‘topográficos’ e ‘dinâmicos’,
estaremos, penso eu, fornecendo deles a mais completa descrição que poderemos
atualmente conceber, uma descrição que merece ser distinguida pelo nome de
‘metapsicológica’. – p. 17;
_ Os fatos que nos fizeram
acreditar na dominância do princípio de prazer na vida mental encontram também
expressão na hipótese de que o aparelho mental se esforça por manter a
quantidade de excitação nele presente tão baixa quanto possível, ou, pelo
menos, por mantê-la constante. Essa última hipótese constitui apenas outra
maneira de enunciar o princípio de prazer, porque, se o trabalho do aparelho
mental se dirige no sentido de manter baixa a quantidade de excitação, então
qualquer coisa que seja calculada para aumentar essa quantidade está destinada
a ser sentida como adversa ao funcionamento do aparelho, ou seja, como
desagradável. O princípio de prazer decorre do princípio de constância; na
realidade, esse último princípio foi inferido dos fatos que nos forçaram a
adotar o princípio de prazer. Além disso, um exame mais pormenorizado mostrará
que a tendência que assim atribuímos ao aparelho mental, subordina-se, como um
caso especial, ao princípio de Fechner da ‘tendência no sentido da
estabilidade’, com a qual ele colocou em relação os sentimentos de prazer e
desprazer. Deve-se, contudo, apontar que, estritamente falando, é incorreto
falar na dominância do princípio de prazer sobre o curso dos processos mentais.
Se tal dominância existisse, a imensa maioria de nossos processos mentais teria
de ser acompanhada pelo prazer ou conduzir a ele, ao passo que a experiência
geral contradiz completamente uma conclusão desse tipo. O máximo que se pode
dizer, portanto, é que existe na mente uma forte tendência no sentido do
princípio de prazer, embora essa tendência seja contrariada por certas outras
forças ou circunstâncias, de maneira que o resultado final talvez nem sempre se
mostre em harmonia com a tendência no sentido do prazer. Podemos comparar isso
com o que Fechner (1873, 90) observa sobre um ponto semelhante: ‘Visto que,
porém, uma tendência no sentido de um objetivo não implica que este seja
atingido, e desde que, em geral, o objetivo é atingível apenas por aproximações
(…)’ – p. 18/19;
_ Sabemos que o princípio de
prazer é próprio de um método primário de funcionamento por parte do aparelho
mental, mas que, do ponto de vista da autopreservação do organismo entre as
dificuldades do mundo externo, ele é, desde o início, ineficaz e até mesmo
altamente perigoso. Sob a influência dos instintos de autopreservação do ego, o
princípio de prazer é substituído pelo princípio
de realidade. Esse último princípio não abandona a intenção de
fundamentalmente obter prazer; não obstante, exige e efetua o adiamento da satisfação,
o abandono de uma série de possibilidades de obtê-la, e a tolerância temporária
do desprazer como uma etapa no longo e indireto caminho para o prazer. Contudo,
o princípio de prazer persiste por longo tempo como o método de funcionamento
empregado pelos instintos sexuais, que são difíceis de ‘educar’, e, partindo
desses instintos, ou do próprio ego, com freqüência consegue vencer o princípio
de realidade, em detrimento do organismo como um todo. – p. 20;
II
_ O estudo dos sonhos pode ser
considerado o método mais digno de confiança na investigação dos processos
mentais profundos. Ora, os sonhos que ocorrem nas neuroses traumáticas possuem
a característica de repetidamente trazer o paciente de volta à situação de seu
acidente, numa situação da qual acorda em outro susto. Isso espanta bem pouco
as pessoas. Pensam que o fato de a experiência traumática estar-se
continuamente impondo ao paciente, mesmo no sono, se encontra, conforme se
poderia dizer, fixado em seu trauma. As fixações na experiência que iniciou a
doença há muito tempo, nos são familiares na histeria. Breuer e Freud
declararam em 1893 que ‘os histéricos sofrem principalmente de reminiscências’.
Nas neuroses de guerra também, observadores como Ferenczi e Simmel puderam
explicar certos sintomas motores pela fixação no momento em que o trauma
ocorreu. – p. 23;
III
_ Vinte e cinco anos de
intenso trabalho tiveram por resultado que os objetivos imediatos da
psicanálise sejam hoje inteiramente diferentes do que eram no começo. A
princípio, o médico que analisava não podia fazer mais do que descobrir o
material inconsciente oculto para o paciente, reuni-lo e no momento oportuno
comunicá-lo a este. A psicanálise era então, primeiro e acima de tudo, uma arte
interpretativa. Uma vez que isso não solucionava o problema terapêutico, um
outro objetivo rapidamente surgiu à vista: obrigar o paciente a confirmar a
construção teórica do analista com sua própria memória. Nesse esforço, a ênfase
principal reside nas resistências do paciente: a arte consistia então em
descobri-las tão rapidamente quanto possível, apontando-as ao paciente e
induzindo-o, pela influência humana – era aqui que a sugestão, funcionando como
‘transferência’, desempenhava seu papel -, a abandonar suas resistências. – p. 28;
_ Essas reproduções, que
surgem com tal exatidão indesejada, sempre têm como tema alguma parte da vida
sexual infantil, isto é, do complexo de Édipo, e de seus derivativos, e são
invariavelmente atuadas (acted
out) na esfera da transferência, da relação do paciente com o
médico. Quando as coisas atingem essa etapa, pode-se dizer que a neurose
primitiva foi então substituída por outra nova, pela ‘neurose de
transferência’. – p. 28;
_ A fim de tornar mais fácil a
compreensão dessa ‘compulsão à repetição’ que surge durante o tratamento
psicanalítico dos neuróticos, temos acima de tudo de livrar-nos da noção
equivocada de que aquilo com que estamos lidando em nossa luta contra as resistências
seja uma resistência por parte do inconsciente. O inconsciente, ou seja,
o ‘reprimido’, não oferece resistência alguma aos esforços do tratamento. Na
verdade, ele próprio não se esforça por outra coisa que não seja irromper
através da pressão que sobre ele pesa, e abrir seu caminho à consciência ou a
uma descarga por meio de alguma ação real. A resistência durante o tratamento
origina-se dos mesmos estratos e sistemas mais elevados da mente que
originalmente provocaram a repressão. Mas o fato de, como sabemos pela
experiência, os motivos das resistências e, na verdade, as próprias
resistências serem a princípio inconscientes durante o tratamento, é-nos uma
sugestão para que corrijamos uma deficiência de nossa terminologia. Evitaremos
a falta de clareza se fizermos nosso contraste não entre o consciente e o
inconsciente, mas entre o ego coerente e o reprimido. É certo que
grande parte do ego é, ela própria, inconsciente, e notavelmente aquilo que
podemos descrever como seu núcleo; apenas pequena parte dele se acha abrangida
pelo termo ‘pré-consciente’. Havendo substituído uma terminologia puramente
descritiva por outra sistemática e dinâmica, podemos dizer que as resistências
do paciente originam-se do ego, e então imediatamente perceberemos que a compulsão
à repetição deve ser atribuída ao reprimido inconsciente. Parece provável que a
compulsão só possa expressar-se depois que o trabalho do tratamento avançou a
seu encontro até a metade do caminho e que afrouxou a repressão.
Não há dúvida de que a resistência do ego
consciente e inconsciente funciona sob a influência do princípio de prazer; ela
busca evitar o desprazer que seria produzido pela liberação do reprimido. Nossos
esforços, por outro lado, dirigem-se no sentido de conseguir a tolerância
desse desprazer por um apelo ao princípio de realidade. Mas, como se acha a
compulsão à repetição – a manifestação do poder do reprimido – relacionada com
o princípio de prazer? É claro que a maior parte do que é reexperimentado sob a
compulsão à repetição, deve causar desprazer ao ego, pois traz à luz as
atividades dos impulsos instintuais reprimidos. Isso, no entanto, constitui
desprazer de uma espécie que já consideramos e que não contradiz o princípio de
prazer: desprazer para um dos sistemas e, simultaneamente, satisfação para
outro. Contudo, chegamos agora a um fato novo e digno de nota, a saber, que a
compulsão à repetição também rememora do passado experiências que não incluem
possibilidade alguma de prazer e que nunca, mesmo há longo tempo, trouxeram
satisfação, mesmo para impulsos instintuais que desde então foram reprimidos.
O florescimento precoce da vida sexual infantil
está condenado à extinção porque seus desejos são incompatíveis com a realidade
e com a etapa inadequada de desenvolvimento a que a criança chegou. Esse
florescimento chega ao fim nas mais aflitivas circunstâncias e com o
acompanhamento dos mais penosos sentimentos. A perda do amor e o fracasso
deixam atrás de si um dano permanente à autoconsideração, sob a forma de uma
cicatriz narcisista, o que, em minha opinião, bem como na de Marcinowski
(1918), contribui mais do que qualquer outra coisa para o ‘sentimento de
inferioridade’, tão comum aos neuróticos. As explorações sexuais infantis, às
quais seu desenvolvimento físico impõe limites, não conduzem a nenhuma
conclusão satisfatória; daí as queixas posteriores, tais como ‘Não consigo
realizar nada; não tenho sucesso em nada’. O laço da afeição, que via de regra
liga a criança ao genitor do sexo oposto, sucumbe ao desapontamento, a uma vã
expectativa de satisfação, ou ao ciúme pelo nascimento de um novo bebê, prova
inequívoca da infidelidade do objetivo da afeição da criança. Sua própria
tentativa de fazer um bebê, efetuada com trágica seriedade, fracassa
vergonhosamente. A menor quantidade de afeição que recebe, as exigências
crescentes da educação, palavras duras e um castigo ocasional mostram-lhe por
fim toda a extensão do desdém que lhe concederam. Estes são alguns exemplos
típicos e constantemente recorrentes das maneiras pelas quais o amor característico
da idade infantil é levado a um término. – p. 29/31;
IV
_ A especulação psicanalítica
toma como ponto de partida a impressão, derivada do exame dos processos
inconscientes, de que a consciência pode ser, não o atributo mais universal dos
processos mentais, mas apenas uma função especial deles. Falando em termos metapsicológicos,
assevera que a consciência constitui função de um sistema específico que
descreve como Cs.
O que a consciência produz consiste essencialmente em percepções de excitação
provindas do mundo externo e de sentimentos de prazer e desprazer que só podem
surgir do interior do aparelho psíquico; assim, é possível atribuir ao sistema Pcpt.-Cs. uma posição no
espaço. – p. 34;
_ Nesse ponto, aventurar-me-ei
a aflorar por um momento um assunto que mereceria tratamento mais exaustivo. Em
conseqüência de certas descobertas psicanalíticas, encontramo-nos hoje em
posição de empenhar-nos num estudo do teorema kantiano segundo o qual tempo e
espaço são ‘formas necessárias de pensamento’. Aprendemos que os processos
mentais inconscientes são, em si mesmos, ‘intemporais’. Isso significa, em
primeiro lugar, que não são ordenados temporalmente, que o tempo de modo algum
os altera e que a idéia de tempo não lhes pode ser aplicada. Trata-se de
características negativas que só podem ser claramente entendidas se se fizer
uma comparação com os processos mentais conscientes.
Por outro lado, nossa idéia abstrata de tempo parece ser integralmente derivada
do método de funcionamento do sistema Pcpt.-Cs.
e corresponder a uma percepção de sua própria parte nesse método de
funcionamento, o qual pode talvez constituir uma outra maneira de fornecer um
escudo contra os estímulos. Sei que essas observações devem soar muito
obscuras, mas tenho de limitar-me a essas sugestões. – p. 38;
_ Descrevemos como
‘traumáticas’ quaisquer excitações provindas de fora que sejam suficientemente
poderosas para atravessar o escudo protetor. Parece-me que o conceito de trauma
implica necessariamente uma conexão desse tipo com uma ruptura numa barreira
sob outros aspectos eficazes contra os estímulos. Um acontecimento como um
trauma externo está destinado a provocar um distúrbio em grande escala no
funcionamento da energia do organismo e a colocar em movimento todas as medidas
defensivas possíveis. Ao mesmo tempo, o princípio de prazer é momentaneamente
posto fora de ação. Não há mais possibilidade de impedir que o aparelho mental
seja inundado com grandes quantidades de estímulos; em vez disso, outro
problema surge, o problema de dominar as quantidades de estímulo que
irromperam, e de vinculá-las no sentido psíquico, a fim de que delas se possa
então desvencilhar. – p. 39;
V
_ As mais abundantes fontes
dessa excitação interna são aquilo que é descrito como os ‘instintos’ do
organismo, os representantes de todas as forças que se originam no interior do
corpo e são transmitidas ao aparelho mental, desde logo o elemento mais
importante e obscuro da pesquisa psicológica. –
p. 44;
_ As manifestações de uma
compulsão à repetição (que descrevemos como ocorrendo nas primeiras atividades
da vida mental infantil, bem como entre os eventos do tratamento psicanalítico)
apresentam em alto grau um caráter instintual e, quando atuam em oposição ao
princípio de prazer, dão a aparência de alguma força ‘demoníaca’ em ação. – p. 45;
_ Mas como o predicado de ser
‘instintual’ se relaciona com a compulsão à repetição? Nesse ponto, não podemos
fugir à suspeita de que deparamos com a trilha de um atributo universal dos
instintos e talvez da vida orgânica em geral que até o presente não foi
claramente identificado ou, pelo menos, não explicitamente acentuado. Parece, então que um instinto é um
impulso, inerente à vida orgânica, a restaurar um estado anterior de coisas,
impulso que a entidade viva foi obrigada a abandonar sob a pressão de forças
perturbadoras externas, ou seja, é uma espécie de elasticidade orgânica, ou,
para dizê-lo de outro modo, a expressão da inércia inerente à vida orgânica. – p. 46;
_ Os atributos da vida foram,
em determinada ocasião, evocados na matéria inanimada pela ação de uma força de
cuja natureza não podemos formar concepção. Pode ter sido um processo de tipo
semelhante ao que posteriormente provocou o desenvolvimento da consciência num
estrato particular da matéria viva. A tensão que então surgiu no que até aí
fora uma substância inanimada se esforçou por neutralizar-se e, dessa maneira,
surgiu o primeiro instinto: o instinto a retornar ao estado inanimado. – p. 48;
_ A evolução atual dos seres
humanos não exige, segundo me parece, uma explicação diferente da dos animais.
Aquilo que, numa minoria de indivíduos humanos, parece ser um impulso
incansável no sentido de maior perfeição, pode ser facilmente compreendido como
resultado da repressão instintual em que se baseia tudo o que é mais precioso
na civilização humana. O instinto reprimido nunca deixa de esforçar-se em busca
da satisfação completa, que consistiria na repetição de uma experiência
primária de satisfação. Formações reativas e substitutivas, bem como
sublimações, não bastarão para remover a tensão persistente do instinto
reprimido, sendo que a diferença de quantidade entre o prazer da satisfação que
é exigida e a que
é realmente conseguida,
é que fornece o fator impulsionador que não permite qualquer parada em nenhuma
das posições alcançadas, mas, nas palavras do poeta, ‘ungebändigt immer vorwärts dringt‘.
O caminho para trás que conduz à satisfação completa acha-se, via de regra,
obstruído pelas resistências que mantêm as repressões, de maneira que não há
alternativa senão avançar na direção em que o crescimento ainda se acha livre,
embora sem perspectiva de levar o processo a uma conclusão ou de ser capaz de
atingir o objetivo. Os processos envolvidos na formação de uma fobia neurótica,
que nada mais é do que uma tentativa de fuga da satisfação de um instinto,
apresentam-nos um modelo do modo de origem desse suposto ‘instinto para a
perfeição’, o qual não tem possibilidades de ser atribuído a todos os seres
humanos. Na verdade, as condições dinâmicas para o seu desenvolvimento estão
universalmente presentes, mas apenas em raros casos a situação econômica parece
favorecer a produção do fenômeno. – p. 51;
VI
_ A essência de nossa
investigação até agora foi o traçado de uma distinção nítida entre os
‘instintos do ego’ e os instintos sexuais, e a visão de que os primeiros
exercem pressão no sentido da morte e os últimos no sentido de um prolongamento
da vida. Contudo, essa conclusão está fadada a ser insatisfatória sob muitos aspectos,
mesmo para nós. Ademais, na realidade, é apenas quanto ao primeiro grupo de
instintos que podemos afirmar que possuem caráter conservador, ou melhor,
retrógrado, correspondente a uma compulsão à repetição, porque, em nossa
hipótese, os instintos do ego se originam da animação da matéria inanimada e
procuram restaurar o estado inanimado, ao passo que, quanto aos instintos
sexuais, embora seja verdade que reproduzem estados primitivos do organismo,
aquilo a que claramente visam, por todos os meios possíveis, é à coalescência
de duas células germinais que são diferenciadas de maneira particular. Se essa
união não é efetuada, a célula germinal morre juntamente com todos os outros
elementos do organismo multicelular. É apenas com essa condição que a função
sexual pode prolongar a vida da célula e emprestar-lhe uma aparência de
imortalidade. Mas, qual é o acontecimento importante no desenvolvimento da
substância viva, que está sendo repetido na reprodução sexual ou em sua
antecessora, a conjugação de dois protozoários? Não podemos dizer, e,
conseqüentemente, deveríamos sentir-nos aliviados se toda a estrutura de nossa
argumentação se mostrou equivocada. A oposição entre os instintos do ego ou
instintos de morte e os instintos sexuais ou instintos de vida deixaria então
de sustentar-se e a compulsão à repetição não mais possuiria a importância que
lhe atribuímos. – p. 53;
_ Nosso debate teve como ponto
de partida uma distinção nítida entre os instintos do ego, que equiparamos aos
instintos de morte, e os instintos sexuais, que equiparamos aos instintos de
vida. (Achávamo-nos preparados, em determinada etapa, para incluir os chamados
instintos de autoconservação do ego entre os instintos de morte, mas
subseqüentemente nos corrigimos sobre esse ponto e o retiramos.) Nossas
concepções, desde o início, foram dualistas
e são hoje ainda mais definidamente dualistas do que antes, agora
que descrevemos a oposição como se dando, não entre instintos do ego e
instintos sexuais, mas entre instintos de vida e instintos de morte. A teoria
da libido de Jung é, pelo contrário, monista; o fato de haver ele chamado sua
única força instintual de ‘libido’, destina-se a causar confusão, mas não
precisa afetar-nos sob outros aspectos. Suspeitamos que instintos outros que
não os de autoconservação funcionam no ego, e deveria ser-nos possível
apontá-los. Infelizmente, porém, a análise do ego fez tão poucos avanços, que
nos é muito difícil proceder assim. É possível, na verdade, que os instintos
libidinais do ego possam estar vinculados de maneira peculiar a esses outros
instintos do ego que ainda nos são estranhos. Mesmo antes de dispormos de
qualquer compreensão clara do narcisismo, a psicanálise já desconfiava que os
‘instintos do ego’ tinham componentes libidinais a eles ligados. Mas trata-se
de possibilidades muito incertas, a que nossos oponentes prestarão muito pouca
atenção. Permanece a dificuldade de que a psicanálise até aqui não nos permitiu
indicar quaisquer instintos [do ego] que não sejam os libidinais. Isso,
contudo, não constitui razão para concordarmos com a conclusão de que nenhum
outro realmente existe. – p. 61/62;
VII
_ Descobrimos que uma das mais
antigas e importantes funções do aparelho mental é sujeitar os impulsos
instintuais que com ele se chocam, substituir o processo primário que neles
predomina pelo processo secundário, e converter sua energia catéxica livremente
móvel numa catexia principalmente quiescente (tônica). Enquanto essa
transformação se está realizando, nenhuma atenção pode ser concedida ao
desenvolvimento do desprazer, mas isso não implica a suspensão do princípio de
prazer. Pelo contrário, a transformação ocorre em favor dele; a sujeição constitui o ato
preparatório que introduz e assegura a dominância do princípio de prazer. – p. 70;
Psicologia de Grupo e Análise
do Ego (1921)
I - Introdução
_ O contraste entre a
psicologia individual e a psicologia social ou de grupo, que à primeira vista
pode parecer pleno de significação, perde grande parte de sua nitidez quando
examinado mais de perto. É verdade que a psicologia individual relaciona-se com
o homem tomado individualmente e explora os caminhos pelos quais ele busca
encontrar satisfação para seus impulsos instintuais; contudo, apenas raramente
e sob certas condições excepcionais, a psicologia individual se acha em posição
de desprezar as relações desse indivíduo com os outros. Algo mais está
invariavelmente envolvido na vida mental do indivíduo, como um modelo, um
objeto, um auxiliar, um oponente, de maneira que, desde o começo, a psicologia
individual, nesse sentido ampliado mas inteiramente justificável das palavras,
é, ao mesmo tempo, também psicologia social. – p. 77;
II – A Descrição de Le Bon da
Mente Grupal
_ Deixarei que agora Le Bon
fale por si próprio. Diz ele: ‘A peculiaridade mais notável apresentada por um
grupo psicológico é a seguinte: sejam quem forem os indivíduos que o compõem,
por semelhantes ou dessemelhantes que sejam seu modo de vida, suas ocupações,
seu caráter ou sua inteligência, o fato de haverem sido transformados num grupo
coloca-os na posse de uma espécie de mente coletiva que os faz sentir, pensar e
agir de maneira muito diferente daquela pela qual cada membro dele, tomado
individualmente, sentiria, pensaria e agiria, caso se encontrasse em estado de
isolamento. Há certas idéias e sentimentos que não surgem ou que não se
transformam em atos, exceto no caso de indivíduos que formam um grupo. O grupo
psicológico é um ser provisório, formado por elementos heterogêneos que por um
momento se combinam, exatamente como as células que constituem um corpo vivo,
formam, por sua reunião, um novo ser que apresenta características muito
diferentes daquelas possuídas por cada uma das células isoladamente.’ (Trad.,
1920, 29.). – p. 79;
_ ‘Para obter, de qualquer
modo, um vislumbre delas, é necessário em primeiro lugar trazer à mente a
verdade estabelecida pela psicologia moderna, a de que os fenômenos
inconscientes desempenham papel inteiramente preponderante não apenas na vida
orgânica, mas também nas operações da inteligência. A vida consciente da mente
é de pequena importância, em comparação com sua vida inconsciente. O analista
mais sutil, o observador mais agudo dificilmente obtêm êxito em descobrir mais
do que um número muito pequeno dos motivos conscientes que determinam sua
conduta. Nossos atos conscientes são o produto de um substrato inconsciente
criado na mente, principalmente por influências hereditárias. Esse substrato
consiste nas inumeráveis características comuns, transmitidas de geração a
geração, que constituem o gênio de uma raça. Por detrás das causas confessadas
de nossos atos jazem indubitavelmente causas secretas que não confessamos, mas
por detrás dessas causas secretas existem muitas outras, mais secretas ainda,
ignoradas por nós próprios. A maior parte de nossas ações cotidianas são
resultados de motivos ocultos que fogem à nossa observação.’ (Ibid., 30.). – p.
80/81;
_ ‘Vemos então que o
desaparecimento da personalidade consciente, a predominância da personalidade inconsciente,
a modificação por meio da sugestão e do contágio de sentimentos e idéias numa
direção idêntica, a tendência a transformar imediatamente as idéias sugeridas
em atos, estas, vemos, são as características principais do indivíduo que faz
parte de um grupo. Ele não é mais ele mesmo, mas transformou-se num autômato
que deixou de ser dirigido pela sua vontade.’ (Ibid., 35.). – p. 83;
_ Temos aqui outra importante
comparação para ajudar-nos a entender o indivíduo num grupo: ‘Além disso, pelo
simples fato de fazer parte de um grupo organizado, um homem desce vários
degraus na escada da civilização. Isolado, pode ser um indivíduo culto; numa
multidão, é um bárbaro, ou seja, uma criatura que age pelo instinto. Possui a
espontaneidade, a violência, a ferocidade e também o entusiasmo e o heroísmo
dos seres primitivos.’ (Ibid., 36.) Le Bon demora-se então especialmente na
redução da capacidade intelectual que um indivíduo experimenta quando se funde
num grupo. – p. 83;
_ Inclinado como é a todos os
extremos, um grupo só pode ser excitado por um estímulo excessivo. Quem quer
que deseje produzir efeito sobre ele, não necessita de nenhuma ordem lógica em
seus argumentos; deve pintar nas cores mais fortes, deve exagerar e repetir a
mesma coisa diversas vezes.
Desde que não se acha em dúvida quanto ao que
constitui verdade ou erro e, além disso, tem consciência de sua própria grande
força, um grupo é tão intolerante quanto obediente à autoridade. Respeita a
força e só ligeiramente pode ser influenciado pela bondade, que encara
simplesmente como uma forma de fraqueza. O que exige de seus heróis, é força ou
mesmo violência. Quer ser dirigido, oprimido e temer seus senhores.
Fundamentalmente, é inteiramente conservador e tem profunda aversão por todas
as inovações e progressos, e um respeito ilimitado pela tradição (ibid., 62).
A fim de fazer um juízo correto dos princípios
éticos do grupo, há que levar em consideração o fato de que, quando indivíduos
se reúnem num grupo, todas as suas inibições individuais caem e todos os
instintos cruéis, brutais e destrutivos, que neles jaziam adormecidos, como
relíquias de uma época primitiva, são despertados para encontrar gratificação
livre. Mas, sob a influência da sugestão, os grupos também são capazes de
elevadas realizações sob forma de abnegação, desprendimento e devoção a um
ideal. Ao passo que com os indivíduos isolados o interesse pessoal é quase a
única força motivadora, nos grupos ele muito raramente é proeminente. É
possível afirmar que um indivíduo tenha seus padrões morais elevados por um
grupo (ibid., 65). Ao passo que a capacidade intelectual de um grupo está
sempre muito abaixo da de um indivíduo, sua conduta ética pode tanto elevar-se
muito acima da conduta deste último, quanto cair muito abaixo dela.
Alguns outros aspectos da descrição de Le Bon
mostram, a uma clara luz, quão justificada é a identificação da mente grupal
com a mente dos povos primitivos. Nos grupos, as idéias mais contraditórias
podem existir lado a lado e tolerar-se mutuamente, sem que nenhum conflito
surja da contradição lógica entre elas. Esse é também o caso da vida mental
inconsciente dos indivíduos, das crianças e dos neuróticos, como a psicanálise
há muito tempo indicou. – p. 85/86;
III - Outras Descrições da
Vida Mental Coletiva
_ Utilizamos a descrição de Le
Bon à guisa de introdução, por ajustar-se tão bem à nossa própria psicologia na
ênfase que dá à vida mental inconsciente. Mas temos agora de acrescentar que,
na realidade, nenhuma das afirmativas desse autor apresentou algo de novo. Tudo
o que diz em detrimento e depreciação das manifestações da mente grupal, já
fora dito por outros antes dele, com igual nitidez e igual hostilidade, e fora
repetido em uníssono por pensadores, estadistas e escritores desde os primeiros
períodos da literatura. As duas teses que abrangem as mais importantes das
opiniões de Le Bon, ou seja, as que tocam na inibição coletiva do funcionamento
intelectual e na elevação da afetividade nos grupos, foram formuladas pouco
antes por Sighele. No fundo, tudo o que resta como peculiar a Le Bon são as
duas noções do inconsciente e da comparação com a vida mental dos povos
primitivos, e mesmo estas naturalmente, já haviam sido com freqüência aludidas
antes dele. – p. 89;
IV - Sugestão e Libido
_ Libido é expressão extraída
da teoria das emoções. Damos esse nome à energia, considerada como uma
magnitude quantitativa (embora na realidade não seja presentemente mensurável),
daqueles instintos que têm a ver com tudo o que pode ser abrangido sob a palavra
‘amor’. O núcleo do que queremos significar por amor consiste naturalmente (e é
isso que comumente é chamado de amor e que os poetas cantam) no amor sexual,
com a união sexual como objetivo. Mas não isolamos disso – que, em qualquer
caso, tem sua parte no nome ‘amor’ -, por um lado, o amor próprio, e, por
outro, o amor pelos pais e pelos filhos, a amizade e o amor pela humanidade em
geral, bem como a devoção a objetos concretos e a idéias abstratas. Nossa
justificativa reside no fato de que a pesquisa psicanalítica nos ensinou que
todas essas tendências constituem expressão dos mesmos impulsos instintuais;
nas relações entre os sexos, esses impulsos forçam seu caminho no sentido da
união sexual, mas, em outras circunstâncias, são desviados desse objetivo ou
impedidos de atingi-lo, embora sempre conservem o bastante de sua natureza
original para manter reconhecível sua identidade (como em características tais
como o anseio de proximidade e o auto-sacrifício). – p. 96;
V – Dois grupos artificiais: a
Igreja e o Exército
_ Daquilo que sabemos sobre a
morfologia dos grupos podemos recordar que é possível distinguir tipos muito
diferentes de grupos e linhas opostas em seu desenvolvimento. Há grupos muito
efêmeros e outros extremamente duradouros; grupos homogêneos, constituídos
pelos mesmos tipos de indivíduos, e grupos não homogêneos; grupos naturais e
grupos artificiais, que exigem uma força externa para mantê-los reunidos;
grupos primitivos e grupos altamente organizados, com estrutura definida.
Entretanto, por razões ainda não explicadas, gostaríamos de dar ênfase especial
a uma distinção a que os que escreveram sobre o assunto, inclinaram-se a
conceder muito pouca atenção; refiro-me à distinção existente entre grupos sem
líderes e grupos com líderes. E, em completa oposição à prática costumeira, não
escolherei, como nosso ponto de partida, uma formação de grupo relativamente
simples, mas começarei por grupos altamente organizados, permanentes e
artificiais. Os mais interessantes exemplos de tais estruturas são as Igrejas –
comunidades de crentes – e os exércitos.
Uma Igreja e um exército são grupos artificiais,
isto é, uma certa força externa é empregada para impedi-los de desagregar-se e
para evitar alterações em sua estrutura. Via de regra, a pessoa não é consultada
ou não tem escolha sobre se deseja ou não ingressar em tal grupo; qualquer
tentativa de abandoná-lo se defronta geralmente com a perseguição ou severas
punições, ou possui condições inteiramente definidas a ela ligadas. Acha-se
inteiramente fora de nosso interesse atual indagar a razão por que essas
associações precisam de tais salvaguardas especiais. Somos atraídos apenas por
uma circunstância, a saber, a de que certos fatos, muito mais ocultos em outros
casos, podem ser observados de modo bastante claro nesses grupos altamente
organizados, que são protegidos da dissolução pela maneira já mencionada. – p. 99;
VI – Outros problemas e linhas
de trabalho
_ os laços libidinais são o
que caracteriza um grupo. – p. 105;
_ As provas da psicanálise
demonstram que quase toda relação emocional íntima entre duas pessoas que
perdura por certo tempo – casamento, amizade, as relações entre pais e filhos –
contém um sedimento de sentimentos de aversão e hostilidade, o qual só escapa à
percepção em conseqüência da repressão. – p. 106;
_ O amor por si mesmo só
conhece uma barreira: o amor pelos outros, o amor por objetos. – p. 107;
VII - Identificação
– A identificação é conhecida
pela psicanálise como a mais remota expressão de um laço emocional com outra
pessoa. Ela desempenha um papel na história primitiva do complexo de Édipo. Um
menino mostrará interesse especial pelo pai; gostaria de crescer como ele, ser
como ele e tomar seu lugar em tudo. Podemos simplesmente dizer que toma o pai
como seu ideal. Este comportamento nada tem a ver com uma atitude passiva ou
feminina em relação ao pai (ou aos indivíduos do sexo masculino em geral); pelo
contrário, é tipicamente masculina. Combina-se muito bem com o complexo de
Édipo, cujo caminho ajuda a preparar.
Ao mesmo tempo que essa identificação com o pai, ou
pouco depois, o menino começa a desenvolver uma catexia de objeto verdadeira em
relação à mãe, de acordo com o tipo [anaclítico] de ligação. Apresenta então,
portanto, dois laços psicologicamente distintos: uma catexia de objeto sexual e
direta para com a mãe e uma identificação com o pai que o toma como modelo.
Ambos subsistem lado a lado durante certo tempo, sem qualquer influência ou
interferência mútua. Em conseqüência do avanço irresistível no sentido de uma
unificação da vida mental, eles acabam por reunir-se e o complexo de Édipo
normal origina-se de sua confluência. O menino nota que o pai se coloca em seu
caminho, em relação à mãe. Sua identificação com eles assume então um colorido
hostil e se identifica com o desejo de substituí-lo também em relação à mãe. A
identificação, na verdade, é ambivalente desde o início; pode tornar-se
expressão de ternura com tanta facilidade quanto um desejo do afastamento de
alguém. Comporta-se como um derivado da primeira fase da organização da libido,
da fase oral, em que o objeto que prezamos e pelo qual ansiamos é
assimilado pela ingestão, sendo dessa maneira aniquilado como tal. O canibal,
como sabemos, permaneceu nessa etapa; ele tem afeição devoradora por seus
inimigos e só devora as pessoas de quem gosta. – p. 109;
_ A gênese do homossexualismo
masculino, em grande quantidade de casos, é a seguinte: um jovem esteve
inusitadamente e por longo tempo fixado em sua mãe, no sentido do complexo de
Édipo. Finalmente, porém, após o término da puberdade, chega a ocasião de trocar
a mãe por algum outro objeto sexual. As coisas sofrem uma virada repentina: o
jovem não abandona a mãe, mas identifica-se com ela; transforma-se e procura
então objetos que possam substituir o seu ego para ele, objetos aos quais possa
conceder um amor e um carinho iguais aos que recebeu de sua mãe. Trata-se de
processo freqüente, que pode ser confirmado tão amiúde quanto se queira, e que,
naturalmente, é inteiramente independente de qualquer hipótese que se possa
efetuar quanto à força orgânica impulsora e aos motivos de repentina
transformação. Uma coisa notável sobre essa identificação é sua ampla escala;
ela remolda o ego em um de seus mais importantes aspectos, em seu caráter
sexual, segundo o modelo do que até então constituíra o objeto. Neste processo,
o objeto em si mesmo é renunciado, se inteiramente ou se no sentido de ser
preservado apenas no inconsciente sendo uma questão que se acha fora do escopo
do presente estudo. A identificação com um objeto que é renunciado ou perdido,
como um sucedâneo para esse objeto – introjeção dele no ego – não constitui
verdadeiramente mais novidade para nós. Um processo dessa espécie pode às vezes
ser diretamente observado em crianças pequenas. Há pouco tempo atrás uma
observação desse tipo foi publicada no Internationale Zeitschrift für
Psychoanalyse. Uma criança que se achava pesarosa pela perda de um gatinho
declarou francamente que ela agora era o gatinho e, por conseguinte, andava de
quatro, não comia à mesa etc.
Outro exemplo de introjeção do objeto foi fornecido
pela análise da melancolia, afecção que inclui entre as mais notáveis de suas
causas excitadoras a perda real ou emocional de um objeto amado. Uma
característica principal desses casos é a cruel autodepreciação do ego,
combinada com uma inexorável autocrítica e acerbas autocensuras. As análises
demonstraram que essa depreciação e essas censuras aplicam-se, no fundo, ao
objeto e representam a vingança do ego sobre ele. A sombra do objeto caiu sobre
o ego, como disse noutra parte. Aqui a introjeção do objeto é inequivocamente
clara. –
p. 112;
_ considerações sobre o ideal
do ego. – p. 113;
VIII – Estar amando e hipnose
_ Mesmo em seus caprichos, o
uso da linguagem permanece fiel a uma certa espécie de realidade. Assim, ela dá
o nome de ‘amor’ a numerosos tipos de relações emocionais que agrupamos,
também, teoricamente como amor; por outro lado, porém, sente, a seguir, dúvidas
se esse amor é amor real, verdadeiro, genuíno, e assim insinua toda uma gama de
possibilidades no âmbito dos fenômenos do amor. Não teremos dificuldade em
efetuar a mesma descoberta por nossas próprias observações.
Em determinada classe de casos, estar amando nada
mais é que uma catexia de objeto por parte dos instintos sexuais com vistas a
uma satisfação diretamente sexual, catexia que, além disso, expira quando se
alcançou esse objetivo: é o que se chama de amor sensual comum. Mas, como
sabemos, raramente a situação libidinal permanece tão simples. Era possível
calcular com certeza a revivescência da necessidade que acabara de expirar e,
sem dúvida, isso deve ter constituído o primeiro motivo para dirigir uma
catexia duradoura sobre o objeto sexual e para ‘amá-lo’ também nos intervalos
desapaixonados. – p. 115;
IX – O instinto gregário
_ Trotter põe na relação de
instintos que considera primários os da autopreservação, nutrição, sexo e
gregário. O último freqüentemente entra em oposição com os outros. Os
sentimentos de culpa e de dever são possessões peculiares de um animal
gregário. Trotter também deriva do instinto gregário as forças repressivas que
a psicanálise demonstrou existirem no ego, e deriva da mesma fonte, por
conseguinte, as resistências com que o médico se defronta no tratamento
psicanalítico. A fala deve sua importância à aptidão para o entendimento mútuo
na grei, sendo nela que a identificação mútua dos indivíduos repousa em grande
parte. – p. 122;
X – O grupo e a horda primeva
_ Os grupos humanos apresentam
mais uma vez o quadro familiar de um indivíduo de força superior em meio a um
bando de companheiros iguais, quadro que também é abarcado em nossa idéia da
horda primeva. A psicologia de um grupo assim, como a conhecemos a partir das
descrições a que com tanta freqüência nos referimos, o definhamento da
personalidade individual consciente, a focalização de pensamentos e sentimentos
numa direção comum, a predominância do lado afetivo da mente e da vida psíquica
inconsciente, a tendência à execução imediata das intenções tão logo ocorram:
tudo isso corresponde a um estado de regressão a uma atividade mental
primitiva, exatamente da espécie que estaríamos inclinados a atribuir à horda
primeva. – p. 126;
XI – Uma gradação
diferenciadora no ego
_ Há sempre uma sensação de
triunfo quando algo no ego coincide com o ideal do ego. E o sentimento de culpa
(bem como o de inferioridade) também pode ser entendido como uma expressão da
tensão entre o ego e o ideal do ego.
Sabe-se bem que existem pessoas cujo colorido geral
do estado de ânimo oscila periodicamente de uma depressão excessiva,
atravessando algum tipo de estado intermediário, a uma sensação exaltada de
bem-estar. Essas oscilações aparecem em graus de amplitude muito diferentes,
desde o que é apenas observável até exemplos extremos tais que, sob a forma de
melancolia e mania, empreendem as mais perturbadoras ou atormentadoras
incursões na vida da pessoa interessada. Nos casos típicos dessa depressão
cíclica, as causas precipitantes externas não parecem desempenhar qualquer
papel decisivo; quanto aos motivos internos, nesses pacientes, não se encontra
nada a mais, ou nada mais, do que em todos os outros. Conseqüentemente,
tornou-se costume considerar esses casos como não sendo psicogênicos. Dentro em
pouco nos referiremos àqueles outros casos exatamente semelhantes de depressão
cíclica que podem ser facilmente remontados a traumas mentais.
Os fundamentos dessas oscilações espontâneas de
estado de ânimo são, assim, desconhecidos. Falta-nos compreensão do mecanismo
do deslocamento de uma melancolia realizado por uma mania, de modo que nos
achamos livres para supor que esses pacientes sejam pessoas em quem nossa
conjectura poderia encontrar uma aplicação real: seu ideal do ego poderia
ter-se temporariamente convertido no ego, após havê-lo anteriormente governado
com especial rigidez. – p. 134;
XII – Pós-escrito
_ Assim, o mito é o passo com
o qual o indivíduo emerge da psicologia de grupo. O primeiro mito foi
certamente o psicológico, o mito do herói; o mito explicativo da natureza deve
tê-lo seguido muito depois. O poeta que dera esse passo, com isso libertando-se
do grupo em sua imaginação, é, não obstante (como Rank observa ainda), capaz de
encontrar seu caminho de volta ao grupo na realidade – porque ele vai e relata
ao grupo as façanhas do herói, as quais inventou. No fundo, esse herói não é
outro senão ele próprio. Assim, desce ao nível da realidade e eleva seus
ouvintes ao nível da imaginação. Seus ouvintes, porém, entendem o poeta e, em
virtude de terem a mesma relação de anseio pelo pai primevo, podem
identificar-se com o herói.
A mentira do mito heróico culmina pela deificação
do herói. Talvez o herói deificado possa ter sido mais antigo que o Deus Pai e
precursor do retorno do pai primevo como deidade. A série dos deuses, então,
seria cronologicamente esta: Deusa Mãe – Herói – Deus Pai. Mas só com a
elevação do pai primevo nunca esquecido a divindade adquire as características
que ainda hoje nela identificamos. – p. 139;
_ Mesmo na pessoa que, sob
outros aspectos, se absorveu em um grupo, os impulsos diretamente sexuais
conservam um pouco de sua atividade individual. Se se tornam fortes demais,
desintegram qualquer formação grupal. A Igreja Católica possui o melhor dos motivos
para recomendar a seus seguidores que permaneçam solteiros, e para impor o
celibato a seus sacerdotes, mas o apaixonar-se com freqüência impeliu mesmo
padres a abandonar a Igreja. Da mesma maneira, o amor pelas mulheres rompe os
vínculos grupais de raça, divisões nacionais e sistema de classes sociais,
produzindo importantes efeitos como fator de civilização. Parece certo que o
amor homossexual é muito mais compatível com os laços grupais, mesmo quando
toma o aspecto de impulsos sexuais desinibidos, fato notável cuja explicação
poderia levar-nos longe.
A investigação psicanalítica das psiconeuroses nos
ensinou que seus sintomas devem ser remetidos a impulsos diretamente sexuais
que são reprimidos mas permanecem ainda ativos. Podemos completar essa fórmula
acrescentando: ‘ou a impulsos inibidos nos objetivos, cuja inibição não foi
inteiramente bem-sucedida ou permitiu um retorno do objetivo sexual reprimido’.
Está de acordo com isso que uma neurose torne associal a sua vítima ou a afaste
das formações habituais de grupo. Pode-se dizer que uma neurose tem sobre o
grupo o mesmo efeito desintegrador que o estado de estar amando. Por outro
lado, parece que onde foi dado um poderoso ímpeto à formação de grupo, as
neuroses podem diminuir ou, pelo menos temporariamente, desaparecer.
Justificáveis tentativas foram feitas para situar esse antagonismo entre as
neuroses e as formações de grupo a serviço da terapêutica. Mesmo os que não
lamentam o desaparecimento das ilusões religiosas do mundo civilizado de hoje,
admitem que, enquanto estiveram em vigor, ofereceram aos que a elas se achavam
presos a mais poderosa proteção contra o perigo da neurose. Tampouco é difícil
discernir que todos os vínculos que ligam as pessoas a seitas e comunidades
místico-religiosas ou filosófico-religiosas, são expressões de curas
distorcidas de todos os tipos de neuroses. Tudo isso se correlaciona com o
contraste entre os impulsos diretamente sexuais e os inibidos em seus
objetivos.
Se é abandonado a si próprio, um neurótico é
obrigado a substituir por suas próprias formações de sintomas as grandes
formações de grupo de que se acha excluído. Ele cria seu próprio mundo de
imaginação, sua própria religião, seu próprio sistema de delírios,
recapitulando assim as instituições da humanidade de uma maneira distorcida,
que constitui prova evidente do papel dominante desempenhado pelos impulsos
diretamente sexuais. – p. 145;
A Psicogênese de um caso de
homossexualismo numa mulher (1920)
I
_ O homossexualismo nas
mulheres, que certamente não é menos comum que nos homens, embora muito menos
manifesto, não só tem sido ignorado pela lei, mas também negligenciado pela
pesquisa psicanalítica. A narração de um caso isolado, não muito marcante em
categoria, no qual foi possível determinar sua origem e desenvolvimento na
mente com uma segurança completa e quase sem lacunas, pode assim reivindicar
certa atenção. Se essa apresentação do caso fornece apenas os contornos mais
gerais dos diversos fatos correlacionados e das conclusões obtidas de um estudo
do caso, suprimindo ao mesmo tempo todos os pormenores característicos sobre os
quais se funda a interpretação, essa limitação pode ser facilmente explicada
pela discrição médica necessária à discussão de um caso recente.
Uma bela e inteligente jovem de dezoito anos,
pertencente a uma família de boa posição, despertara desprazer e preocupação em
seus pais pela devotada adoração com que perseguia certa ‘dama da sociedade’
cerca de dez anos mais velha que ela própria. Os pais asseguravam que, a
despeito de seu nome eminente, essa senhora não era mais que uma cocotte.
Era bem conhecido, diziam, que vivia com uma amiga, uma mulher casada, com quem
tinha relações íntimas ao mesmo tempo que mantinha casos promíscuos com certo
número de homens. A moça não desmentia esses relatos maldosos, mas sequer
permitia-lhes interferir em sua adoração da dama, embora de modo algum lhe
faltasse certo senso de decência e propriedade. Nem as proibições nem a
vigilância impediam a jovem de aproveitar todas as suas raras oportunidades de
encontrar-se com a bem-amada, de verificar todos os seus hábitos, de esperar
por ela durante horas diante de sua porta ou numa parada de bonde, de
mandar-lhe presentes ou flores, e assim por diante. Era evidente que esse
interesse único havia engolfado todos os outros na mente da jovem. – p.
151;
_ Outros aspectos
desfavoráveis no presente caso eram os fatos de a jovem não estar de modo algum
doente (não sofria em si de nada, nem se queixava de sua condição) e de a
tarefa a cumprir não consistir em solucionar um conflito neurótico, mas em
transformar determinada variedade da organização genital da sexualidade em
outra. Tal realização – a remoção da inversão genital ou homossexualismo –
nunca, pela minha experiência, é matéria fácil. Pelo contrário, só achei possível
o êxito em circunstâncias especialmente favoráveis e, assim mesmo, o sucesso
consistia essencialmente em facilitar o acesso ao sexo oposto (até então
barrado) a uma pessoa restrita ao homossexualismo, restaurando assim suas
funções bissexuais plenas. Depois, competia a ela escolher se desejava
abandonar o caminho que é proibido pela sociedade, e, em alguns casos, assim
procedia. Devemos lembrar-nos de que também a sexualidade normal depende de uma
restrição na escolha do objeto. Em geral, empreender a conversão de um
homossexual plenamente desenvolvido em um heterossexual não oferece muito
maiores perspectivas de sucesso que o inverso; exceto que, por boas e práticas
razões, o último caso nunca é tentado. – p. 154;
II
_ Na idade dos treze aos
quatorze anos apresentara uma afeição terna e, segundo a opinião geral,
exageradamente forte por um menino de menos de três anos de idade, a quem
costumava ver regularmente num playground infantil. Apegou-se à criança
tão calorosamente que, em conseqüência, uma amizade duradoura surgiu entre ela
e os pais dele. Pode-se inferir desse episódio que, naquela época, achava-se
possuída de forte desejo de ser mãe e ter um filho. Contudo, após curto tempo,
tornou-se indiferente ao menino e começou a interessar-se por mulheres maduras
porém de aparência ainda jovem. As manifestações desse interesse logo lhe
valeram um severo castigo das mãos de seu pai.
Ficou estabelecido, além de qualquer dúvida, que
essa mudança ocorreu simultaneamente com certo acontecimento na família e, assim,
pode-se examiná-lo em busca de alguma explicação para a mudança. Antes que
acontecesse, sua libido se concentrava em uma atitude maternal, a seguir
tornando-se uma homossexual atraída por mulheres maduras, assim permanecendo
desde então. O acontecimento, tão significante para a nossa compreensão do
caso, foi uma nova gravidez de sua mãe, e o nascimento de um terceiro irmão
quando a paciente contava cerca de dezesseis anos de idade. – p. 160;
_ A explicação é a seguinte:
no exato período em que a jovem experimentava a revivescência de seu complexo
de Édipo infantil, na puberdade, sofreu seu grande desapontamento. Tornou-se
profundamente cônscia do desejo de possuir um filho, um filho homem; seu desejo
de ter o filho de seu pai e uma imagem dele, na consciência ela
não podia conhecer. Que sucedeu depois? Não foi ela quem teve o filho,
mas sua rival inconscientemente odiada, a mãe. Furiosamente ressentida e
amargurada, afastou-se completamente do pai e dos homens. Passado esse primeiro
grande revés, abjurou de sua feminidade e procurou outro objetivo para sua
libido.
Assim procedendo, comportou-se exatamente como
muitos homens que, após uma primeira experiência penosa, dão as costas, para
sempre, ao infiel sexo feminino e se tornam odiadores de mulheres. Relata-se de
uma das mais atraentes e infelizes figuras principescas de nossa época que ele
se tornou homossexual porque a dama com quem estava comprometido em matrimônio
traiu-o com outro homem. Ignoro se isso é historicamente verdadeiro, mas por
trás do boato há um elemento de verdade psicológica. Em todos nós, no decorrer
da vida, a libido oscila normalmente entre objetos masculinos e femininos; o
solteiro abandona seus amigos homens, ao casar-se, e retorna à vida de clube
quando a vida conjugal perdeu o sabor. Naturalmente, quando a amplitude da
oscilação é fundamental e final, suspeitamos da presença de algum fator
especial que favorece definidamente um lado ou outro e que talvez só tenha
esperado pelo momento apropriado para voltar a escolha de objeto em sua
direção.
Assim, após seu desapontamento a jovem repudiara
inteiramente seu desejo de um filho, o amor dos homens e o papel feminino em
geral. É evidente que, nesse ponto, algumas coisas bem diferentes poderiam ter
acontecido. O que realmente ocorreu foi o caso mais extremo. Ela se transformou
em homem e tomou a mãe, em lugar do pai, como objeto de seu amor. Sua relação
com a mãe certamente fora ambivalente desde o início, foi fácil reviver o
primitivo amor por ela e, com o seu auxílio, provocar uma supercompensação de
sua hostilidade atual para com a mesma. De vez que pouco havia a fazer com a
mãe real, dessa transformação de sentimentos nasceu a busca de uma mãe
substituta, a quem poderia ligar-se apaixonadamente.
Ademais, havia um motivo prático para essa mudança,
derivado de suas relações reais com a mãe, que serviu como novo ganho
[secundário] à sua doença. A própria mãe ainda ligava grande valor às atenções
e à admiração dos homens. A jovem, tornando-se homossexual e deixando os homens
para a mãe (noutras palavras, ‘se se retirasse em benefício’ dela), poderia
afastar algo que até então fora parcialmente responsável pela antipatia da mãe. – p. 161/162;
III
_ Somos levados a outro
domínio inteiramente diferente de explicação pela análise da tentativa de
suicídio, que devo encarar como seriamente intencionada e que, incidentalmente,
melhorou bastante sua posição tanto com relação aos pais quanto à senhora que
amava. Saiu, certo dia, de passeio com ela, numa parte da cidade e em hora que
não era improvável encontrar seu pai de volta do escritório. Assim aconteceu. O
pai passou por ela, na rua, de olhar furioso para ela e sua companheira, de
que, nessa época, vinha tomando conhecimento. Poucos momentos depois, ela
atirou-se para dentro do corte ferroviário. A sua explicação das razões
imediatas que determinaram sua decisão, pareciam inteiramente plausíveis.
Confessara à senhora que o homem que lhes dirigira o olhar tão enfurecido era
seu pai, e que ele proibira por completo a amizade entre elas. A dama
encolerizara-se com isso e ordenara à jovem que a deixasse ali mesmo e nunca
mais esperá-la ou a ela se dirigir: o caso tinha de terminar ali. Desesperada
por haver dessa forma perdido para sempre sua bem-amada, quis pôr termo à sua
própria vida. A análise, contudo, pode descobrir outra interpretação mais
profunda por trás da que forneceu, confirmada pela interpretação dos próprios
sonhos da paciente. A tentativa de suicídio, como se podia esperar, foi
determinada por dois outros motivos, além do que ela forneceu: a realização de
uma punição (autopunição) e a realização de um desejo. Esse último significava
a consecução do próprio desejo que, quando frustrado, a impelira ao homossexualismo:
o desejo de ter um filho do pai, pois agora ela ‘caíra’ por culpa do pai. O
fato de, naquele momento, a senhora haver-lhe falado exatamente nos mesmos
termos que o pai e proferido a mesma proibição, forma o elo vinculatório entre
essa interpretação profunda e a superficial, de que a própria jovem estava
ciente. Do ponto de vista da autopunição, a ação da jovem nos mostra que
desenvolvera no inconsciente intensos desejos de morte contra um ou outro de
seus genitores, talvez contra o pai, como vingança por impedir seu amor, porém
mais provavelmente contra a mãe, quando grávida do irmão pequeno, tendo a
análise explicado o enigma do suicídio da seguinte maneira: é provável que
ninguém encontre a energia mental necessária para matar-se, a menos que, em
primeiro lugar, agindo assim, esteja ao mesmo tempo matando um objeto com quem
se identificou e, em segundo lugar, voltando contra si próprio um desejo de
morte antes dirigido contra outrem. Tampouco a descoberta regular desses
desejos de morte inconscientes naqueles que tentaram o suicídio precisa
surpreender-nos (não mais do que deveria para fazer-nos refletir que isso
confirma nossas deduções), de vez que o inconsciente de todos os seres humanos
se acha bem repleto de tais desejos de morte, até contra aqueles a quem amam.
Uma vez que a jovem se identificava com a mãe, que deveria ter morrido no
nascimento do filho, a ela negado, essa realização de punição constituía mais
uma vez uma realização de desejo. Finalmente, a descoberta de que vários motivos
inteiramente diversos, todos de grande intensidade, devem ter cooperado para
tornar possível tal ação, está de estrito acordo com o que esperaríamos. – p. 165/166;
IV
_ Retorno agora, após essa
digressão, à consideração do caso de minha paciente. Fizemos um levantamento
das forças que conduziram a libido da jovem da atitude de Édipo normal à do
homossexualismo, e dos caminhos psíquicos percorridos por ela no processo. O
mais importante nesse respeito foi a impressão causada pelo nascimento de seu
irmãozinho e a partir disso poderíamos inclinar-nos a classificar o caso como
de inversão posteriormente adquirida. – p. 171;
_ Não sustentaremos, portanto,
que toda jovem que experimenta um desapontamento, como esse do anseio de amor,
que brota da atitude de Édipo na puberdade, necessariamente cairá, por causa
disso, vítima do homossexualismo. Pelo contrário, outros tipos de reação a esse
trauma sem dúvida são mais comuns. Contudo, sendo assim, na jovem paciente
podem ter existido fatores especiais que fizeram pender a balança, fatores
externos ao trauma, provavelmente de natureza interna. Além do mais, não há
qualquer dificuldade em apontá-los.
Sabe-se bem que, mesmo em uma pessoa normal, leva
algum tempo antes de se tomar finalmente a decisão com referência ao sexo do
objeto amoroso. Entusiasmos homossexuais, amizades exageradamente intensas e
matizadas de sensualidades são bastante comuns em ambos os sexos durante os
primeiros anos após a puberdade. Assim também aconteceu com nossa paciente;
nela, porém, essas tendências mostraram-se sem dúvida mais fortes e
permaneceram mais tempo do que noutras pessoas. Além disso, esses presságios de
homossexualismo posterior haviam ocupado sempre a sua vida consciente,
enquanto a atitude originária do complexo de Édipo permanecera inconsciente e
se mostrara apenas em sinais, tais como o seu comportamento terno com o
garotinho. Quando estudante, estivera longo tempo enamorada de uma professora
rígida e inaproximável, evidentemente uma mãe substituta. Mostrara muito vivo
interesse em certo número de jovens mães, bem antes do nascimento do irmão,
portanto com mais certeza ainda, antes da primeira reprimenda do pai. Assim,
desde anos muito precoces sua libido fluíra em duas correntes, das quais a da
superfície é a que, sem hesitação, podemos designar como homossexual. Essa
última era provavelmente uma continuação direta e imodificada de uma fixação
infantil na mãe. Possivelmente a análise aqui descrita na realidade não revelou
nada mais que o processo pelo qual, em ocasião apropriada, também a corrente
heterossexual e mais profunda da libido foi desviada para a homossexual e
manifesta. – p. 171/172;
_ A literatura do
homossexualismo em geral deixa de distinguir claramente entre as questões da
escolha do objeto, por um lado, e das características sexuais e da atitude
sexual do sujeito, pelo outro, como se a resposta à primeira necessariamente
envolvesse as respostas às últimas. A experiência, contudo, demonstra o
contrário: um homem com características predominantemente masculinas e também
masculino em sua vida erótica pode ainda ser invertido com respeito ao seu
objeto, amando apenas homens, em vez de mulheres. Um homem em cujo caráter os
atributos femininos obviamente predominam, que possa, na verdade, comportar-se
no amor como uma mulher, dele se poderia esperar, com essa atitude feminina,
que escolhesse um homem como objeto amoroso; não obstante, pode ser
heterossexual e não mostrar, com respeito a seu objeto, mais inversão do que um
homem médio normal. O mesmo procede, quanto às mulheres; também aqui o caráter
sexual mental e a escolha de objeto não coincidem necessariamente. O mistério
do homossexualismo, portanto, não é de maneira alguma tão simples quanto
comumente se retrata nas exposições populares: ‘uma mente feminina, fadada assim
a amar um homem, mas infelizmente ligada a um corpo masculino; uma mente
masculina, irresistivelmente atraída pelas mulheres, mas, ai dela, aprisionada
em um corpo feminino’. Trata-se, em seu lugar, de uma questão de três conjuntos
de características, a saber: Caracteres sexuais físicos (hermafroditismo
físico), Caracteres sexuais mentais (atitude
masculina ou feminina) e Tipo de escolha de objeto. – p.
173/174;
_ Não compete à psicanálise
solucionar o problema do homossexualismo. Ela deve contentar-se com revelar os
mecanismos psíquicos que culminaram na determinação da escolha de objeto, e
remontar os caminhos que levam deles até às disposições instintuais. Aqui o seu
trabalho termina e ela deixa o restante à pesquisa biológica, que recentemente
trouxe à luz, através dos experimentos de Steinach, resultados muito
importantes concernentes à influência exercida pelo primeiro conjunto de
características, acima mencionadas, sobre o segundo e o terceiro. A psicanálise
possui uma base comum com a biologia, ao pressupor uma bissexualidade original
nos seres humanos (tal como nos animais). Mas a psicanálise não pode elucidar a
natureza intrínseca daquilo que, na fraseologia convencional ou biológica, é
denominado de ‘masculino’ e ‘feminino’: ela simplesmente toma os dois conceitos
e faz deles a base de seu trabalho. – p. 174;
Psicanálise e Telepatia (1941
[1921])
Introdução
_ Não estamos destinados,
segundo parece, a dedicar-nos com tranqüilidade à ampliação de nossa ciência.
Mal acabamos de repelir triunfalmente dois ataques – um dos quais procurava
mais uma vez negar o que trouxemos à luz e só nos oferecia em troca o tema do
repúdio, ao passo que o outro tentava persuadir-nos de que nos equivocáramos da
natureza do que descobrimos e poderíamos, com vantagem, tomar outra coisa em
seu lugar -, logo, então, que nos sentimos seguros quanto a esses inimigos e já
outro perigo surgiu. E, desta vez, é algo tremendo, algo de elementar, que
ameaça não somente a nós, ameaça, talvez mais ainda, a nossos inimigos.
Não mais parece possível manter-se afastado do
estudo daqueles fenômenos conhecidos como ‘ocultos’, ou seja, dos fatos que
professam falar em favor da existência real de forças psíquicas outras que não
as mentes humanas e animais com que estamos familiarizados, ou que parecem
revelar a posse, por essas mentes, de faculdades até aqui irreconhecidas. O
ímpeto no sentido dessa investigação parece irresistivelmente forte. – p. 181;
I
_ Alguns anos antes da guerra,
um jovem procedente da Alemanha veio até mim a fim de ser analisado.
Queixava-se de ser incapaz de trabalhar, de haver esquecido sua vida passada e
de ter perdido todo o interesse. Era estudante de filosofia em Munique e estava
preparando-se para o exame final. Casualmente, era um jovem altamente instruído
bastante dissimulado, velhaco de uma maneira infantil e filho de um financista;
como veio a surgir depois, o jovem remodelara com sucesso uma quantidade
colossal de erotismo anal. Quando lhe perguntei se não havia realmente nada de
que pudesse lembrar-se sobre sua vida ou sua esfera de interesse, recordou-se
do enredo de um romance que esboçara, passado no Egito durante o reinado de
Amenófis IV e no qual um anel em particular representava um papel importante.
Tomamos esse romance como ponto de partida; o anel mostrou ser um símbolo de
matrimônio e, a partir daí, conseguimos reviver todas as suas lembranças e
interesses. Descobrimos que seu colapso fora o resultado de um grande ato de
autodisciplina mental de sua parte. Tinha uma única irmã, alguns anos mais nova
que ele, a quem era sincera e muito indisfarçadamente devotado. ‘Por que é que
não podemos casar-nos?’, haviam amiúde perguntado um ao outro, mas a afeição
entre eles nunca fora além do ponto permissível entre irmãos e irmãs. – p. 186;
II
_ Na cidade de F – cresceu uma
criança que era a mais velha de uma família de cinco, todas meninas. A caçula
era dez anos mais moça que ela; certa ocasião, deixara a menor cair-lhe dos
braços, quando bebê; mais tarde, chamava-a de ‘sua filha’. A mãe era mais velha
que o pai, e não era uma pessoa agradável. O pai – e não só na idade era mais
jovem – via bastante as menininhas e as impressionava por suas muitas
destrezas. Infelizmente, não impressionara sob nenhum outro aspecto: era
incompetente nos negócios e incapaz de sustentar a família sem o auxílio dos
parentes. A filha mais velha tornou-se, em tenra idade, o repositório de todas
as preocupações que surgiam pela falta de poder aquisitivo do pai.
Uma vez deixado para trás o caráter rígido e
apaixonado de sua infância, ela se transformou em um bom espelho de todas as
virtudes. Seus elevados sentimentos morais faziam-se acompanhar de uma
inteligência estreitamente limitada. Tornou-se professora de uma escola primária
e era muito respeitada. A tímida homenagem que lhe prestou um jovem conhecido,
professor de música, deixou-a indiferente. Nenhum homem até então havia atraído
sua atenção.
Certo dia, um parente da mãe apareceu em cena,
homem bem mais idoso que ela, mas ainda jovem (pois ela contava apenas dezenove
anos de idade). Era um estrangeiro que vivia na Rússia como diretor de uma
grande empresa comercial e se enriquecera. Foi preciso nada menos que uma
guerra mundial e a derrota de um grande despotismo para empobrecê-lo.
Apaixonou-se por sua jovem e severa prima e pediu-lhe para ser sua esposa. Os
pais não a pressionaram, mas ela entendeu seus desejos. Por trás de todas as
suas idéias morais, sentiu a atração da realização de uma fantasia plena do
desejo de ajudar o pai e resgatá-lo de seu estado de necessidade. Calculou que
o primo daria ao pai apoio financeiro enquanto este continuasse com o negócio e
uma pensão quando finalmente o abandonasse, bem como forneceria às irmãs dotes
e trousseaux, a fim de poderem casar-se. E apaixonou-se por ele,
casou-se pouco depois e o acompanhou à Rússia. – p. 190;
_ Terão compreendido o sentido
de minha inclinação a interpretar essas experiências minhas com Schermann.
Verão que todo o meu material se relaciona apenas ao ponto isolado da
transmissão de pensamento. Nada tenho a dizer sobre todos os outros milagres
que reivindica o ocultismo. Minha própria vida, como já abertamente admiti, tem
sido particularmente pobre, no sentido do oculto. Talvez o problema da transmissão
de pensamento possa parecer-lhes muito trivial em comparação com o grande
mágico do oculto, mas considerem que grave medida além do que até aqui
acreditamos estaria envolvida apenas nessa hipótese. O que o zelador de [a
basílica de] São Dionísio costumava acrescentar à sua narração do martírio do
santo permanece uma verdade. Conta-se que São Dionísio, após sua cabeça haver
sido cortada, apanhou-a do chão e caminhou boa distância com ela sob o braço.
Mas o zelador costumava acrescentar: ‘Dans
des cas pareils, ce n’est que le premier pas qui coûte.’ O resto é
fácil. – p. 196/197;
Sonhos e Telepatia (1922)
_ Atualmente, quando se sente
tão grande interesse pelo que é chamado de fenômenos ‘ocultos’, expectativas
muito definidas serão indubitavelmente despertadas pelo anúncio de um artigo
com esse título. Não obstante, apresso-me em explicar que não há fundamento
para tais expectativas. Nada aprenderão, deste meu trabalho, sobre o enigma da
telepatia; na verdade, nem mesmo depreenderão se acredito ou não em sua
existência. Nesta ocasião, propus-me a tarefa muito modesta de examinar a
relação das ocorrências telepáticas em causa, seja qual for sua origem, com os
sonhos, ou, mais exatamente, com nossa teoria dos sonhos. Saberão que comumente
se acredita ser muito íntima a conexão entre sonhos e telepatia; apresentarei a
opinião de que ambos pouco têm a ver reciprocamente, e que, viesse a existência
de sonhos telepáticos a ser estabelecida, não haveria necessidade de modificar
nossa concepção dos sonhos, em absoluto.
O material em que se baseia o presente relato é
muito tênue. Em primeiro lugar, devo expressar meu pesar de não poder fazer uso
de meus próprios sonhos, como fiz quando escrevi A Interpretação de Sonhos (1900a).
Porém, nunca tive um sonho ‘telepático’. Não que eu passasse sem sonhos do tipo
que transmitem a impressão de que um certo evento definido está acontecendo em
algum lugar distante, deixando ao que sonha decidir se o fato está acontecendo
naquele momento ou acontecerá em alguma época posterior. Também na vida
desperta amiúde me dei conta de pressentimentos de acontecimentos distantes.
Contudo, nenhuma dessas impressões, previsões e premonições se ‘realizaram’,
como dizemos; não se demonstrou existir uma realidade externa correspondente a
elas e, portanto, tiveram de ser encaradas como previsões puramente subjetivas.
–
p. 203;
_ Assim, meu material consiste
simples e unicamente em dois relatos que chegaram até mim de correspondentes na
Alemanha. Os autores não me são pessoalmente conhecidos, mas fornecem seus
nomes e endereços; não tenho o menor fundamento para presumir, de sua parte,
qualquer intenção de embuste. – p. 205;
I
_ Com o primeiro dos dois já
havia mantido correspondência; fora suficientemente gentil em enviar-me, como
muitos de meus leitores fazem, observações de ocorrências cotidianas e coisas
assim. Trata-se obviamente de um homem instruído e extremamente inteligente;
dessa vez, coloca expressamente seu material à minha disposição, caso me
interesse em transformá-lo em ‘relato literário’.
Sua carta diz o seguinte:
‘Considero o seguinte sonho como de interesse
suficiente para que o transmita ao senhor, a título de material para suas
pesquisas.
‘Devo primeiro enunciar os seguintes fatos. Minha
filha, que é casada e mora em Berlim, esperava seu primeiro parto em meados de
dezembro deste ano. Eu pretendia ir a Berlim, na ocasião, com minha (segunda)
esposa, madrasta de minha filha. Durante a noite de 16 para 17 de novembro
sonhei, com vividez e clareza nunca experimentada, que minha esposa havia
dado à luz gêmeos. Vi os dois saudáveis bebês muito claramente, com seus rostos
rechonchudos, deitados em seu berço, lado a lado. Não lhes observei o sexo; um,
de cabelos claros, tinha distintamente as minhas feições e algo das de minha
esposa; o outro, de cabelos castanhos, parecia-se claramente com ela, com algum
aspecto meu. Disse a minha esposa, que tem cabelos louro-arruivados:
“Provavelmente o cabelo castanho de ‘seu’ filho também ficará ruivo mais
tarde.” Minha mulher deu-lhe o seio. No sonho, ela também fizera um pouco de
geléia numa bacia de lavar e as duas crianças engatinhavam pela bacia e
lambiam-lhe o conteúdo. – p. 206;
_ Tenho
esperanças de que irão pressupor isso; irão porém levantar a objeção de que,
não obstante, existem outros sonhos telepáticos em que não há diferença entre o
acontecimento e o sonho e nos quais nada mais se pode encontrar senão uma
reprodução não deformada do evento. Em minha própria experiência, não tenho
conhecimento desses sonhos, mas sei que foram muitas vezes comunicados. Se
presumirmos a necessidade de lidarmos com um sonho telepático assim,
indisfarçado e inadulterado, surgirá outra questão. Deveríamos chamar essa
experiência telepática realmente de ‘sonho’? Certamente o farão enquanto se
ativerem à praxe popular, segundo a qual tudo o que acontece na vida mental
durante o sono é chamado de sonho. Vocês, também, talvez digam: ‘Agitei-me no
sonho’ e ainda se acham menos conscientes de alguma incorreção quando falam:
‘Derramei lágrimas no sonho’ ou ‘Senti-me apreensivo no sonho’. Mas sem dúvida
notarão que em todos esses casos estão empregando ‘sonho’, ‘sono’ e ‘estado de
estar adormecido’ intercambiavelmente, como se não houvesse distinção entre
eles. Penso que seria interessante para a precisão científica manter ‘sonho’ e
‘estado de sono’ mais distintamente separados. Por que deveríamos fornecer uma
contrapartida à confusão evocada por Maeder que, por recusar-se a distinguir
entre a elaboração onírica e os pensamentos oníricos latentes, descobriu uma
nova função para os sonhos? Supondo-se, então, que somos colocados frente a
frente com um ‘sonho’ telepático puro, denominemo-lo de preferência, em vez de
‘sonho’, de experiência telepática em um estado de sono. Um sonho sem
condensação, deformação, dramatização e, acima de tudo, sem realização de
desejo, certamente não merece esse nome. Recordar-me-ão de que, sendo assim,
existem outros produtos
mentais no sono a que o direito de serem chamados ‘sonhos’ teria de ser
recusado. – p. 213;
II
_ O segundo caso que apresentarei
à observação, na realidade segue outras linhas. Não se trata de um sonho
telepático, mas de um sonho recorrente da infância em diante, em uma pessoa que
teve muitas experiências telepáticas. A sua carta, que reproduzirei aqui,
contém certas coisas notáveis a cujo respeito não podemos formar nenhum
julgamento. Uma parte dela é de interesse quanto ao problema da relação da
telepatia com os sonhos. – p. 215;
_ O modo como a nossa presente
sonhadora, em idade tão precoce, possa ter chegado aos mais refinados detalhes
do simbolismo – língua de terra, palmeira -, acho-me naturalmente incapaz de
dizê-lo. Não devemos, ademais, desprezar o fato de que, quando as pessoas
asseveram serem há anos perseguidas pelo mesmo sonho, acontece com freqüência
que o conteúdo manifesto não é inteiramente o mesmo. Somente o âmago do sonho é
que recorreu a cada vez; os pormenores do conteúdo são alterados ou acréscimos
lhe são efetuados. – p. 219;
Alguns mecanismos neuróticos
no ciúme, na paranoia e no homossexualismo (1922)
A
_ O ciúme é um daqueles
estados emocionais, como o luto, que podem ser descritos como normais. Se
alguém parece não possuí-lo, justifica-se a inferência de que ele experimentou
severa repressão e, conseqüentemente, desempenha um papel ainda maior em sua
vida mental inconsciente. Os exemplos de ciúme anormalmente intenso encontrados
no trabalho analítico revelam-se como constituídos de três camadas. As três
camadas ou graus do ciúme podem ser descritas como ciúme (1) competitivo ou normal, (2) projetado, e (3) delirante. – p. 231;
B
_ Paranóia - Os casos de paranóia, por razões bem
conhecidas, não são geralmente sensíveis à investigação analítica.
Recentemente, porém, mediante um estudo intensivo de dois paranóicos pude
descobrir algo de novo para mim. – p. 234;
C
_ Homossexualismo. – O
reconhecimento do fator orgânico no homossexualismo não nos isenta da obrigação
de estudar os processos psíquicos vinculados à sua origem. O processo típico,
já estabelecido em casos inumeráveis, é de um jovem, alguns anos após a
puberdade, e que até então fora intensamente fixado na mãe, mudar de atitude;
identifica-se com ela e procura objetos amorosos em quem possa redescobrir-se e
a quem possa então amar como a mãe o amara. A marca característica desse
processo é que, por vários anos, uma das condições necessárias para o seu amor consiste
em o objeto masculino ter, em geral, a mesma idade que ele próprio tinha quando
se deu a mudança. Vimos a conhecer diversos fatores que contribuem para esse
resultado, provavelmente em graus diferentes. Primeiro há a fixação na mãe, que
fica difícil de passar para outra mulher. A identificação com a mãe é um
resultado dessa ligação e ao mesmo tempo, em certo sentido, permite que o filho
lhe permaneça fiel, a ela que foi seu primeiro objeto. Há em seguida inclinação
no sentido de uma escolha de objeto narcísico, que em geral se encontra mais à
mão e é mais fácil de efetuar que um movimento no sentido do outro sexo. Por
trás desse último fator jaz oculto um outro, de força bastante excepcional, ou
talvez coincida com ele: o alto valor atribuído ao órgão masculino e a
incapacidade de tolerar sua ausência num objeto amoroso. A depreciação das
mulheres, a aversão e até mesmo o horror a elas derivam-se geralmente da
precoce descoberta de que as mulheres não possuem pênis. Subseqüentemente
descobrimos, como outro poderoso motivo a compelir no sentido da escolha
homossexual de objeto, a consideração pelo pai ou o medo dele, porque a
renúncia às mulheres significa que toda a rivalidade com aquele (ou com todos
os homens que podem tomar seu lugar) é evitada. Os dois últimos motivos – o
apego à condição de existência de um pênis no objeto, bem como o afastamento em
favor do pai – podem ser atribuídos ao complexo de castração. A ligação à mãe,
o narcisismo, o medo da castração são os fatores (que, incidentalmente, nada
têm em si de especial) que até o presente encontramos na etiologia psíquica do
homossexualismo; com eles é preciso computar o efeito da sedução responsável
por uma fixação prematura da libido, bem como a influência do fator orgânico
que favorece o papel passivo no amor.
Nunca consideramos, entretanto, esta análise da
origem do homossexualismo como completa. Posso agora indicar um novo mecanismo
que conduz à escolha homossexual do objeto, embora não possa dizer quão grande
é o papel que ele desempenha na formação do tipo de homossexualismo extremo,
manifesto e exclusivo. A observação dirigiu minha atenção para diversos casos
em que, durante a primeira infância, impulsos de ciúmes, derivados do complexo
materno e de grande intensidade, surgiram [num menino] contra os rivais,
geralmente irmãos mais velhos. Esse ciúme provocou uma atitude excessivamente
hostil e agressiva para com esses irmãos, que poderia às vezes atingir a
intensidade de desejos reais de morte, incapazes então de manter-se face ao
desenvolvimento ulterior do sujeito. Sob as influências da criação – e
certamente sem deixar de ser influenciados também por sua própria e continuada
impotência – esses impulsos renderam-se à repressão e experimentaram uma
transformação, de maneira que os rivais do período anterior se tornaram os
primeiros objetos amorosos homossexuais. Tal resultado da ligação à mãe
mostra-nos diversas relações e interessantes com outros processos que nos são
conhecidos. Antes de tudo, ele é um contraste completo com o desenvolvimento da
paranóia persecutória, na qual a pessoa anteriormente amada se torna o
perseguidor odiado, ao passo que aqui os rivais odiados se transformam em
objetos amorosos. Representa também uma exageração do processo que, na minha
opinião, conduz ao nascimento dos instintos sociais no indivíduo. Em ambos os
processos há primeiro a presença de impulsos ciumentos e hostis que não podem
conseguir satisfação, e tanto os sentimentos afetuosos quanto os sentimentos
sociais de identificação surgem como formações reativas contra os impulsos
agressivos reprimidos.
Esse novo mecanismo de escolha homossexual de
objeto – sua origem na rivalidade que foi sobrepujada e em impulsos agressivos
que se tornaram reprimidos – combina-se às vezes com as condições típicas já
familiares para nós. Na história dos homossexuais ouve-se amiúde que neles a
mudança se efetuou após a mãe ter elogiado outro rapaz e tê-lo estabelecido
como modelo. A tendência à escolha narcísica de objeto foi assim estimulada e,
após uma breve fase de agudos ciúmes, o rival se torna um objeto amoroso. Via de
regra, contudo, o novo mecanismo se distingue pelo fato de a mudança efetuar-se
em um período muito mais precoce e a identificação com a mãe retroceder para o
segundo plano. Ademais, nos casos que observei, ele apenas levou a atitudes
homossexuais que não excluem a heterossexualidade e não envolvem um horror
feminae.
É bem conhecido que um bom número de homossexuais
se caracteriza por um desenvolvimento especial de seus impulsos instintuais
sociais e por sua devoção aos interesses da comunidade. Seria tentador, como
explicação teórica pertinente, dizer que o comportamento para com os homens em
geral, de um homem que vê nos outros homens objetos amorosos potenciais, deve
ser diferente do de um homem que encara os outros, em primeira instância, como
rivais em relação às mulheres. A única objeção a isso é que o ciúme e a
rivalidade desempenham seu papel também no amor homossexual e que a comunidade
dos homens também inclui esses rivais potenciais. À parte esta explicação
especulativa, contudo, o fato de a escolha homossexual de objeto não sem
freqüência provir de um anterior sobrepujamento da rivalidade com os homens não
pode passar sem relação com a vinculação entre o homossexualismo e o sentimento
social.
À luz da psicanálise, estamos acostumados a
considerar o sentimento social como uma sublimação de atitudes homossexuais
para com objetos. Nos homossexuais com acentuados interesses sociais pareceria
que o desligamento do sentimento social da escolha de objeto não foi
inteiramente efetuado. – p. 239/241;
Dois Verbetes de Enciclopédia
(19123[1922])
(A) Psicanálise
PSICANÁLISE
é o nome de (1) um procedimento para a investigação de processos mentais que
são quase inacessíveis por qualquer outro modo, (2) um método (baseado nessa
investigação) para o tratamento de distúrbios neuróticos e (3) uma coleção de
informações psicológicas obtidas ao longo dessas linhas, e que gradualmente se
acumula numa nova disciplina científica.
História
Catarse
A
Transição para a Psicanálise
O
Abandono da Hipnose
A
Associação Livre
A ‘Regra
Técnica Fundamental‘
A
Psicanálise como Arte Interpretativa
A
Interpretação das Parapraxias e dos Atos Fortuitos
A
Interpretação de Sonhos
A
Teoria Dinâmica da Formação Onírica
Simbolismo
A
Significação Etiológica da Vida Sexual
A Sexualidade
Infantil
O
Desenvolvimento da Libido
O
Processo de Encontrar um Objeto e o Complexo de Édipo
O
Começo Difásico do Desenvolvimento Sexual
A
Teoria da Repressão
Transferência.
As
Pedras Angulares da Teoria Psicanalítica
História
Posterior da Psicanálise
Progressos
mais Recentes na Psicanálise
Narcisismo
Desenvolvimento
da Técnica
A
Psicanálise como Processo Terapêutico
Comparação
entre a Psicanálise e os Métodos Hipnótico e Sugestivo
Sua
Relação com a Psiquiatria
Críticas
e Más Interpretações da Psicanálise
As
Aplicações e as Correlações Não-Médicas da Psicanálise
A
Psicanálise como Ciência Empírica
(B) A TEORIA DA LIBIDO
LIBIDO
é um termo empregado na teoria dos instintos para descrever a manifestação
dinâmica da sexualidade. Já fora utilizado nesse sentido por Moll (1898) e foi
introduzido na psicanálise pelo presente autor. O que se segue limita-se a uma
descrição dos desenvolvimentos por que a teoria dos instintos passou na
psicanálise, desenvolvimentos que ainda se acham progredindo.
O
Contraste entre os Instintos Sexuais e os Instintos do Ego
A
Libido Primitiva
Sublimação
Narcisismo
Abordagem
Aparente às Opiniões de Jung
O
Instinto Gregário
Impulsos
Sexuais Inibidos quanto ao Objetivo
Reconhecimento
de Duas Classes de Instintos na Vida Mental
A
Natureza dos Instintos
Breves Escritos (1920-1922)
Uma nota sobre a pré-história
da técnica de análise (1920)
Associações de uma criança de
quatro anos de idade (1920)
Dr. Anton von Freund (1920)
Prefácio a Addresses on
Phycho-analysis de J.J. Putnam (1921)
Introdução a The Psychology of
Day-Dreams, de J Varendonck (1921)
A Cabeça de Medusa
(1940[1922])
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