Resumo
do Livro XVII – Uma neurose infantil e outros trabalhos (1917-1918)
Nota
do editor inglês
_ Este é o mais elaborado e
sem dúvida o mais importante de todos os casos clínicos de Freud. Foi em
fevereiro de 1910 que o jovem e rico russo, de quem o relato trata, dirigiu-se
a Freud para ser analisado. Sua primeira etapa de tratamento, que é abordada neste
artigo, durou daquela data até julho de 1914, quando Freud considerou o caso
encerrado. – p. 15;
_ ‘Ficaria satisfeito se todos
os meus colegas que se preparam para ser analistas coligissem e analisassem
cuidadosamente quaisquer sonhos de seus pacientes cuja interpretação justifique
a conclusão de que aqueles que
os tiveram tenham sido testemunhas de um ato sexual nos primeiros anos de vida.
Uma sugestão é sem dúvida suficiente para tornar evidente que tais sonhos são
de um valor muito especial, em mais de um aspecto. Apenas esses sonhos podem, é
claro, ser considerados como indicativos de que ocorreram na infância, e são
lembrados a partir desse período.’ – p. 16;
_ Aos olhos de Freud, o
significado primário deste caso clínico na época da sua publicação era
claramente o apoio que proporcionava para as suas críticas a Adler e, mais
especificamente, a Jung. Havia ali evidência conclusiva para refutar qualquer
negação da sexualidade infantil. – p. 17;
_ Talvez a principal
descoberta clínica seja a de revelar a evidência do papel determinante
desempenhado na neurose do paciente pelos seus impulsos femininos primários. Seu marcado grau
de bissexualidade era apenas a confirmação de pontos de vista há muito
defendidos por Freud, que datavam da época de sua amizade com Fliess. Nos seus
escritos subseqüentes, porém, Freud deu ainda mais ênfase ao fato da ocorrência
universal da
bissexualidade e da existência de um complexo de Édipo ‘invertido’ ou
‘negativo’. Essa tese recebeu sua expressão mais clara no trecho sobre o
complexo de Édipo ‘completo’, no capítulo III de O Ego e o Id (1923b). Por outro lado, resiste com veemência a uma
tentativa de inferência teórica no sentido de que os escritos em meados de
1913) e no artigo sobre narcisismo (concluído em princípios de 1914). Outras
iriam aparecer em ‘Luto e Melancolia’. Este último só foi publicado em 1917.
Mas foi-lhe dada forma final no começo de maio de 1915; e muitas das idéias que
contém haviam sido colocadas diante da Sociedade Psicanalítica de Viena, a 30
de dezembro de 1914, apenas algumas semanas após motivos relacionados com a
bissexualidade são os determinantes invariáveis da repressão – problema a que
Freud se referiu extensamente pouco depois, em ‘Uma Criança é Espancada’ (1919e). – p. 18;
História de uma neurose
infantil
I – Observações introdutórias
_ O caso que me proponho
relatar nas páginas que se seguem (uma vez mais apenas de maneira fragmentária)
caracteriza-se por uma série de peculiaridades que exigem ser enfatizadas
antes que proceda a uma descrição dos próprios fatos. Diz respeito a um jovem
cuja saúde se abalara aos dezoito anos, depois de uma gonorréia infecciosa, e
que se encontrava inteiramente incapacitado e dependente de outras pessoas
quando iniciou o seu tratamento psicanalítico, vários anos depois. Tivera uma
vida mais ou menos normal durante os dez anos que precederam a data de sua
doença e cumpriu os estudos da escola secundária sem muitos problemas. Seus
primeiros anos de vida haviam, contudo, sido dominados por um grave distúrbio
neurótico, que começou imediatamente antes do seu quarto aniversário, uma
histeria de angústia (na forma de uma fobia animal), que se transformou então
numa neurose obsessiva de conteúdo religioso e perdurou, com as suas
manifestações, até os dez anos. – p. 19;
_ Minha descrição tratará,
portanto, de uma neurose infantil que foi analisada não enquanto realmente
existia, mas somente quinze anos depois de haver terminado. Esse estado de
coisas tem suas vantagens, bem como desvantagens, em comparação com a
alternativa. – p. 20;
II – Avaliação geral do
ambiente do paciente e do histórico do caso
_ Começarei, então, por
fornecer um quadro do mundo da criança e por dizer tanto da história da sua
infância quanto poderia ser sabido sem qualquer esforço; na verdade, não foi
senão depois de vários anos que a história se tornou menos incompleta e obscura.
Os pais
haviam casado jovens e mantinham ainda uma feliz vida em comum, sobre a qual a
doença em breve lançaria as primeiras sombras. A mãe começou a sofrer de
distúrbios abdominais e o pai teve seus primeiros ataques de depressão, que o
levaram a ausentar-se de casa. Naturalmente, o paciente só chegou a perceber a
enfermidade do pai muito mais tarde, mas tinha consciência da fraca saúde da
mãe desde a mais tenra infância. Por conseguinte, ela tinha relativamente pouco
a ver com as crianças. Um dia, certamente antes de completar quatro anos,
enquanto a mãe saía para ver o médico e ele caminhava ao seu lado, segurando
sua mão, ouviu-a lamentar a sua condição. As palavras da mãe causaram nele
profunda impressão, e ele mais tarde aplicou-as a si mesmo (cf. pág. 85). Não
era filho único; tinha uma irmã, aproximadamente dois anos mais velha, vivaz,
dotada, precocemente maliciosa, que iria desempenhar um importante papel em sua
vida. – p. 25;
_ Mas a fase que trouxe
consigo a sua mudança de caráter estava inextrincavelmente ligada, na sua
lembrança, com muitos outros fenômenos estranhos e patológicos que ele não
conseguia dispor em seqüência cronológica. Ele misturava todos os incidentes
que vou agora relatar (que não poderiam ter sido contemporâneos e que estão cheios
de contradições internas), num único e mesmo período de tempo, ao qual deu o
nome de ‘ainda na primeira granja’. Achava que deviam ter saído dessa granja na
época em que tinha cinco anos de idade. Assim, recordava ele que havia sofrido
um medo, que sua irmã explorava com o propósito de atormentá-lo. Havia um
determinado livro de figuras no qual estava representado um lobo, de pé, dando
largas passadas. Sempre que punha os olhos nessa figura começava a gritar, como
um louco, que tinha medo de que o lobo viesse e o comesse. A irmã, no entanto,
sempre dava um jeito de obrigá-lo a ver a imagem, e deleitava-se com o seu
terror. Entretanto, ele se amedrontava também com outros animais, grandes e
pequenos. – p. 27;
_ Os anos mais maduros do
paciente foram marcados por uma relação bastante insatisfatória com o pai, que,
depois de repetidos ataques de depressão, não conseguia mais ocultar os
aspectos patológicos do seu caráter. Nos primeiros anos da infância do paciente
essa relação havia sido muito afetiva, e a recordação dela conservou-se em sua
memória. O pai gostava muito do menino, gostava de brincar com ele. Este se
sentia orgulhoso do pai, dizia sempre que gostaria de ser um cavalheiro como
ele. A babá disse-lhe que a irmã era a criança da sua mãe, mas ele era a do pai
– e isso agradou-lhe bastante. Nos últimos anos da infância, no entanto, houve
um estranhamento entre ele e o pai. Este mostrava uma inequívoca preferência
pela irmã, e por isso sentiu-se muito desprezado. Mais tarde, o medo ao pai
tornou-se o fator dominante. – p. 28/29;
III –
Sedução e suas consequências imediatas
_ É fácil compreender que a
primeira suspeita recaiu sobre a governanta inglesa, pois a mudança no menino
surgiu quando ela lá estava. Duas lembranças encobridoras persistiram, ambas
incompreensíveis em si e relacionadas com a governanta. Em certa ocasião em que
caminhava adiante das crianças, disse: ‘Olhem o meu rabinho!’ Outra vez, em que
haviam saído para dar uma volta de carro, o chapéu dela voou, para grande
satisfação das duas crianças. Isso apontou para o complexo de castração e
permitiria uma construção segundo a qual uma ameaça proferida por ela contra o
menino fora amplamente responsável por originar a sua conduta anormal. Não há
qualquer perigo em comunicar construções dessa natureza à pessoa que está sendo
analisada; elas não prejudicam a análise, mesmo se são equivocadas; mas ao
mesmo tempo, não são colocadas a não ser que haja alguma perspectiva de
alcançar uma aproximação da verdade por meio delas.
– p. 31;
_ A explicação veio de uma só
vez, quando o paciente se lembrou, de repente, de que, quando era ainda muito
pequeno, a irmã o induzira a práticas sexuais. –
p. 31;
_ Pouco depois, ao fazer uma
segunda viagem, envenenou-se e morreu bem longe de casa. Seu distúrbio deve
provavelmente ser considerado como o início de uma demência precoce. Ela foi
uma das provas da hereditariedade visivelmente neuropática na família, mas de
forma alguma a única. Um tio, irmão de seu pai, morreu depois de longos anos de
vida excêntrica, com indícios que apontavam a presença de uma grave neurose
obsessiva; além disso, um bom número de parentes colaterais eram, e são,
afligidos por distúrbios nervosos menos sérios. Independente do problema da
sedução, o nosso paciente, quando criança, encontrou na irmã um competidor
inconveniente no bom conceito dos pais e sentiu-se bastante oprimido pela sua
impiedosa ostentação de superioridade. – p. 33;
_ Durante a tempestuosa
excitação sexual da sua puberdade, ele se arriscou a uma tentativa de
aproximação física mais íntima. Ela repudiou-o com tanta decisão quanto
sagacidade, e ele se voltou imediatamente para uma camponesinha que servia na
casa e tinha o mesmo nome da irmã. Ao fazê-lo, estava dando um passo que teve
uma influência determinante na sua escolha de objeto heterossexual, pois todas
as garotas pelas quais se apaixonou em seguida – muitas vezes com os mais
claros indícios de compulsão – eram também criadas, cuja educação e
inteligência estavam necessariamente muito abaixo da sua. Se todos esses
objetos de amor eram substitutos para a figura da irmã a quem tinha que
renunciar, então não pode ser negado que uma intenção de rebaixar a irmã e de pôr
fim à sua superioridade intelectual, que se mostrara para ele tão opressiva,
havia obtido o controle decisivo sobre a sua escolha de objeto. A conduta
sexual humana, assim como tudo o mais, foi subordinada por Alfred Adler a
forças de motivo dessa natureza, que se originam da vontade de poder, do
instinto auto-afirmativo do indivíduo. – p. 33/34;
_ Uma das informações do
paciente tornará mais fácil para nós compreender a alteração do seu caráter, a
qual apareceu durante a ausência dos pais como uma conseqüência um tanto
indireta da sua sedução. Ele disse que abandonou a masturbação pouco depois da
recusa e ameaça da sua Nanya. Sua
vida sexual, portanto, que estava começando a surgir sob a influência da zona
genital, cedeu ante um obstáculo externo e foi, por influência deste, lançada
de volta a uma fase anterior de organização pré-genital. Como
resultado da supressão da masturbação, a vida sexual do menino assumiu um
caráter anal-sádico. Tornou-se um menino irritável, um atormentador, e
gratificava-se dessa forma às custas de animais e seres humanos. O principal
objeto era a sua amada Nanya, e ele sabia como atormentá-la até que ela
rompesse em lágrimas. Desse modo vingava-se nela pela recusa que encontrara e,
ao mesmo tempo, gratificava a sua lascívia sexual na forma que correspondia à
sua presente fase regressiva. Começou a mostrar-se cruel com os pequenos
animais, apanhando moscas e arrancando-lhes as asas, esmagando besouros com os
pés; em sua imaginação, gostava também de bater em animais maiores (cavalos).
Todos esses, então, eram procedimentos ativos e sádicos; discutiremos os seus
impulsos anais desse período numa ligação posterior. – p. 37;
_ Tal comportamento era também
característico da sua vida posterior, como também o era este outro traço:
nenhuma posição da libido que fora antes estabelecida, era, jamais,
completamente substituída por uma posterior. Era antes deixada em coexistência
com todas as outras e isso permitia-lhe manter uma vacilação incessante, que se
mostrou incompatível com a aquisição de um caráter estável. – p. 38;
_ Não sei com que freqüência
os pais e educadores, defrontando-se com mau comportamento inexplicável por
parte de uma criança, possam não ter ocasião de conservar na lembrança esse
típico estado de coisas. Uma criança que se comporta de forma indócil está
fazendo uma confissão e tentando provocar um castigo. Espera por uma surra como
um meio de simultaneamente pacificar seu sentimento de culpa e de satisfazer
sua tendência sexual masoquista. – p. 39;
IV – O sonho e a cena primária
_ Já publiquei alhures este
sonho, por causa da quantidade de material que nele ocorre derivado de contos
de fadas; e começarei repetindo o que escrevi naquela ocasião:
‘“Sonhei que era noite e que eu estava deitado
na cama. (Meu leito tem o pé da cama voltado para a janela: em frente da janela
havia uma fileira de velhas nogueiras. Sei que era inverno quando tive o sonho,
e de noite.) De repente, a janela abriu-se sozinha e fiquei aterrorizado ao ver
que alguns lobos brancos estavam sentados na grande nogueira em frente da
janela. Havia seis ou sete deles. Os lobos eram muito brancos e pareciam-se
mais com raposas ou cães pastores, pois tinham caudas grandes, como as raposas,
e orelhas empinadas, como cães quando prestam atenção a algo. Com grande terror,
evidentemente de ser comido pelos lobos, gritei e acordei. Minha babá
correu até minha cama, para ver o que me havia acontecido. Levou muito tempo
até que me convencesse de que fora apenas um sonho; tivera uma imagem tão clara
e vívida da janela a abrir-se e dos lobos sentados na árvore. Por fim acalmei-me,
senti-me como se houvesse escapado de algum perigo e voltei a dormir.
‘“A única ação no sonho foi a abertura da janela,
pois os lobos estavam sentados muito quietos e sem fazer nenhum movimento sobre
os ramos da árvore, à direta e à esquerda do tronco, e olhavam para mim. Era
como se tivessem fixado toda a atenção sobre mim. – Acho que foi meu primeiro
sonho de ansiedade. Tinha três, quatro, ou, no máximo, cinco anos de idade na
ocasião. Desde então, até contar onze ou doze anos, sempre tive medo de ver
algo terrível em meus sonhos.”’ – p. 41;
_ ‘Nesta história aparece a
árvore sobre a qual os lobos se achavam sentados no sonho; mas ela contém
também uma alusão inequívoca ao complexo de castração. O lobo velho tivera a cauda
arrancada pelo alfaiate. As caudas de raposa dos lobos do sonho eram
provavelmente compensações por esta falta de cauda.’ – p. 43;
_ Devemos interromper aqui a
exposição do seu desenvolvimento sexual até que nova luz seja lançada, dos
estádios posteriores da sua história, sobre estes mais primitivos. Para
apreciação adequada da fobia aos lobos, acrescentaremos apenas que tanto o pai
como a mãe transformaram-se em lobos. Sua mãe assumiu o papel do lobo castrado,
que deixava os outros subirem sobre ele; o pai assumiu o papel do lobo que
subia. Entretanto, seu medo, conforme o ouvimos assegurar-nos, relacionava-se
apenas com o lobo ereto, isto é, com seu pai. Ademais, deve-nos surpreender o
fato de que o medo com o qual o sonho terminava tivesse um modelo na história
do avô. Porque nesta, o lobo castrado, que deixara os outros treparem em cima,
dele, tomava-se de medo tão logo era lembrado do fato da sua falta de cauda.
Portanto, parece que ele se identificou com a mãe castrada durante o sonho, e
agora lutava contra esse fato. ‘Se você quer ser sexualmente satisfeito pelo
Pai’, podemos talvez imaginá-lo dizendo para si mesmo, ‘você deve deixar-se
castrar como a Mãe; mas eu não quero isso.’ Resumindo, um claro protesto da
parte da sua masculinidade! No entanto, entenda-se naturalmente que o desenvolvimento
sexual do caso que estamos agora examinando, tem uma grande desvantagem do
ponto de vista da busca, porque não deixou de modo algum, de ser perturbado. Em
primeiro lugar, foi decisivamente influenciado pela sedução e, depois, foi
desviado pela cena da observação do coito, a qual, na sua ação preterida,
operou como uma segunda sedução. – p. 58;
V – Algumas questões
_ A baleia e o urso polar, já
foi dito, não podem travar luta um com o outro porque, confinados ao seu
próprio elemento, não podem encontrar-se. Para mim é impossível argumentar com
quem trabalha no campo da psicologia ou das neuroses e não reconhece os
postulados da psicanálise, considerando os resultados desta como artefatos. Nos
últimos anos, porém, cresceu também uma outra espécie de oposição entre aqueles
que, pelo menos em sua própria opinião, tomam posição no terreno da
psicanálise, não discutem a sua técnica ou resultados, mas simplesmente
acham-se justificados ao tirar outras conclusões do mesmo material e ao
submetê-lo a outras interpretações. Via de regra, contudo, a controvérsia teórica é
infrutífera. – p. 59;
_ Tudo o que quero dizer é o
seguinte: cenas, como as do meu paciente no presente caso, que datam de um
período tão prematuro e exibem um conteúdo semelhante, e que apresentam depois
um significado tão extraordinário para o histórico do caso, não são, via de
regra, reproduzidas como lembranças, mas têm que ser pressentidas – construídas
– gradativa e laboriosamente a partir de um conjunto de indicações. Ademais,
seria suficiente para os propósitos da argumentação se o fato de eu admitir que
cenas dessa natureza não se tornam conscientes sob a forma de lembranças, se
aplicasse apenas aos casos de neurose obsessiva, ou até mesmo se limitasse
minha afirmação ao caso que estamos estudando aqui. – p. 61;
_ Assim, na minha concepção,
os dois fatores cooperam na formação de sintomas. Há, porém, uma cooperação
anterior que me parece ser de igual importância. Sou de opinião que a influência
da infância já se faz sentir na situação com que se inicia a formação de uma
neurose, de vez que desempenha um papel decisivo na ação de determinar se, e em
que ponto, o indivíduo deixa de dominar os verdadeiros problemas da vida. O que
está em discussão, portanto, é a significação do fator infantil. O problema é
encontrar um caso que possa estabelecer essa significação para além de qualquer
dúvida. No entanto, é esse o caso que está sendo exposto de modo tão exaustivo
nestas páginas e que se distingue pela característica de que a neurose da vida
adulta foi precedida por uma neurose nos primeiros anos da infância. Foi
exatamente por essa razão, na verdade, que o escolhi para ser relatado. Se
alguém se sentir inclinado a recusá-lo porque a fobia animal não lhe parece
suficientemente séria para ser reconhecida como uma neurose independente, devo
dizer que a fobia foi sucedida, sem qualquer intervalo, por um cerimonial
obsessivo, por atos e idéias obsessivos, que serão discutidos nas partes
seguintes deste artigo. – p. 64/65;
VI – A neurose obsessiva
_ Agora, pela terceira vez, o
paciente sofreu uma nova influência, que deu um rumo decisivo ao seu
desenvolvimento. Quando estava com quatro anos e meio de idade, e seu estado de
irritabilidade e preocupação não havia ainda melhorado, a mãe determinou-se a
familiarizá-lo com a história da Bíblia, na esperança de distraí-lo e animá-lo.
Nesse sentido, foi bem-sucedida; a iniciação religiosa do menino deu fim à fase
anterior, mas, ao mesmo tempo, fez com que os sintomas da ansiedade fossem
substituídos por sintomas obsessivos. Até então não conseguia conciliar o sono
facilmente porque tinha medo de ter maus sonhos, como o que tivera naquela
noite antes do Natal; agora era obrigado, antes de ir para a cama, a beijar
todas as imagens sagradas que havia no quarto, a dizer orações e a fazer
incontáveis vezes o sinal-da-cruz, em si mesmo e sobre a sua cama. A sua
infância ajusta-se agora, claramente, nos seguintes períodos: primeiro, o
período que se estende até a sedução, aos três anos e um quarto, durante o qual
teve lugar a cena primária; segundo, o período da alteração em seu caráter, até
o sonho de ansiedade (quatro anos de idade); terceiro, o período da fobia
animal, até a iniciação religiosa (quatro anos e meio); e daí em diante, o
período da neurose obsessiva, até uma época posterior aos seus dez anos. – p. 71;
_ Seria, contudo, um grande
equívoco supor que após a remoção dos sintomas obsessivos não ficaria qualquer
efeito permanente da neurose obsessiva. O processo conduzira a uma vitória da
fé piedosa sobre a rebeldia da pesquisa crítica, e tivera, como condição
necessária, a repressão da atitude homossexual. Desvantagens duradouras
resultaram de ambos os fatores. A sua atividade intelectual ficou seriamente
prejudicada depois dessa primeira grande derrota. Não desenvolveu um amor pelo
estudo, não mais mostrou a agudeza com a qual, com apenas cinco anos de idade,
criticara e dissecara as doutrinas religiosas. A repressão do seu superpoderoso
homossexualismo, consumada durante o sonho de ansiedade, reservou esse
importante impulso para o inconsciente, manteve-o dirigido para o objetivo
original e retirou-o de todas as sublimações às quais é suscetível, em outras
circunstâncias. Por esse motivo o paciente era destituído de todos os
interesses sociais que dão à vida um conteúdo. Somente quando, durante o
tratamento analítico, se tornou possível liberar seu homossexualismo
agrilhoado, é que esse estado de coisas mostrou alguma melhora; e foi uma experiência
das mais notáveis verificar como (sem qualquer conselho direto do médico) cada
fragmento da libido homossexual que era libertado procurava alguma aplicação na
vida, alguma ligação com os grandes interesses da humanidade. – p. 79;
VII – Erotismo anal e complexo
de castração
_ Há muito que os analistas
concordam que os impulsos instintuais multifários compreendidos sob a
denominação de erotismo anal desempenham um papel de extraordinária
importância, que seria um tanto impossível superestimar, na elaboração da vida
sexual e da atividade mental em geral. É ponto pacífico também o fato de que
uma das mais importantes manifestações do erotismo transformado que deriva
dessa fonte, pode ser encontrado no tratamento que se dá ao dinheiro, pois, no
decorrer da vida, esse material precioso atrai para si o interesse psíquico que
era originalmente próprio das fezes, o produto da zona anal. Estamos
acostumados a relacionar o interesse pelo dinheiro, na medida em que é de
caráter libidinal, e não racional, com o prazer excretório, e esperamos que as
pessoas normais mantenham as suas relações com o dinheiro inteiramente livres
de influências libidinais e as regulem de acordo com as exigências da
realidade. –
p. 81;
_ Sabemos como é importante a
dúvida para o terapeuta que está analisando uma neurose obsessiva. É a arma
mais poderosa do paciente, o expediente favorito da sua resistência. Essa mesma
dúvida permitiu ao nosso paciente entrincheirar-se por trás de uma indiferença
respeitosa, deixando que os esforços do tratamento passassem fora do seu
alcance durante anos. Nada mudava e não havia maneira de convencê-lo. Por fim,
reconheci a importância, para o que eu pretendia, da perturbação intestinal;
representava o pequeno traço característico da histeria que se encontra regularmente
na raiz de uma neurose obsessiva. Prometi ao paciente uma recuperação completa
da sua atividade intestinal e, por meio dessa promessa, tornei manifesta a sua
incredulidade. Tive então a satisfação de ver a sua dúvida murchar à medida em
que, no decorrer do trabalho, seus intestinos começaram, como órgãos
histericamente afetados, a ‘entrar na conversa’, e, em poucas semanas,
recuperaram o seu funcionamento normal, após tão longo período de perturbações.
Volto
agora à infância do paciente – a uma época na qual era impossível que as fezes
pudessem ter tido para ele o significado do dinheiro. Os
distúrbios intestinais do paciente começaram muito cedo, na forma que é a mais
freqüente e, para as crianças, a mais normal – ou seja, a incontinência. Estaremos
certamente com a razão, no entanto, ao rejeitar uma explicação patológica
dessas ocorrências prematuras e ao considerá-las apenas como uma evidência da
intenção do paciente de não se deixar perturbar ou reprimir no prazer ligado à
função da evacuação. Encontrava uma grande satisfação (o que estaria de acordo
com a grosseria natural de muitas classes sociais, embora não se coadunasse com
a sua) em gracejos e exibições anais, e esse prazer foi preservado por ele até
depois do início da sua enfermidade posterior. Durante o
período da governanta inglesa, aconteceu muitas vezes que ele e sua Nanya
tiveram que compartilhar o quarto com essa detestável senhora. A babá percebeu
o fato de que, precisamente nessas noites, ele sujava a cama, embora em
circunstâncias normais isso já tivesse deixado de acontecer há muito tempo. Ele
não se mostrava de forma alguma envergonhado; era uma expressão de desafio
contra a governanta. – p. 84/85;
_ Quando estudávamos a gênese
da fobia aos lobos, seguimos o efeito dessa nova compreensão interna (insight) do ato sexual; mas,
agora que estamos investigando as perturbações da função intestinal,
encontramo-nos trabalhando com base na velha teoria cloacal. Os dois pontos de
vista permanecem separados um do outro por um estádio de repressão. Sua atitude
feminina em relação aos homens, que fora repudiada pelo ato de repressão,
retraiu-se para os sintomas intestinais e expressou-se nos episódios de
diarréia, prisão de ventre e dores intestinais, que eram tão freqüentes durante
a infância do paciente. Suas fantasias sexuais posteriores, que se baseavam num
conhecimento sexual correto, conseguiram, assim, expressar-se regressivamente
como distúrbios intestinais. Mas não podemos compreendê-las até termos
explicado as modificações que ocorreram no significado das fezes a partir dos
primeiros anos da infância. – p. 88;
_ Ao mesmo tempo, como
qualquer outra criança, fez uso do conteúdo dos intestinos, em um dos seus significados
mais antigos e mais primitivos. As fezes são a primeira dádiva da criança, o
primeiro sacrifício em nome da sua afeição, uma parte do seu próprio corpo que
está pronta a partilhar, mas apenas com alguém a quem ama. Usar as fezes como
uma expressão de desafio, como o nosso paciente fez contra a governanta, aos
três anos e meio, é simplesmente inverter esse significado anterior, de dádiva, ao seu negativo. O ‘grumus merdae‘ [monte de
fezes] deixado pelos criminosos na cena do delito parece possuir ambos os
significados: o de ofensa, e uma expressão regressiva de correção. Sempre é
possível, quando foi atingido um estádio mais alto, fazer uso ainda do mais
baixo, no seu sentido aviltado e negativo. A contrariedade é uma manifestação
de repressão. – p. 89;
VIII – Material novo oriundo
do período primitivo - Solução
_ Acontece muitas vezes, na
análise, que, à medida em que nos aproximamos do final, emergem novas
recordações que até então se mantinham cuidadosamente ocultas. Às vezes, em
determinada ocasião, é feita uma observação despretensiosa num tom de voz
indiferente, como se se tratasse de algo supérfluo; então, em outra
oportunidade, algo mais é acrescentado, o que começa a fazer com que o
terapeuta fique de orelha em pé; e, por fim, este chega a reconhecer esse
fragmento desprezado de uma lembrança como a chave para os mais importantes
segredos que a neurose do paciente escondia. – p. 97;
_ Dessa conclusão
insatisfatória, voltar-me-ei agora para uma consideração do problema, ensaiada
em minhas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise [Conferência
XXIII]. Devia ficar satisfeito em saber se a cena primária, no presente caso,
foi uma fantasia ou uma experiência real; mas, levando em conta outros casos
semelhantes, devo admitir que a resposta a essa pergunta não é, na verdade, uma
questão de muita importância. Essas cenas de observação das relações sexuais
entre os pais, de ser seduzido na infância e de ser ameaçado com a castração
são inquestionavelmente, um dote herdado, uma herança filogenética, mas podem
também facilmente ser adquiridas pela experiência pessoal. Com meu paciente, a
sedução pela irmã mais velha foi uma realidade indiscutível; por que não
deveria também ser verdadeira a sua observação da cópula dos pais? Tudo o
que encontramos na pré-história das neuroses é que a criança lança mão dessa
experiência filogenética quando sua própria experiência lhe falha. Ela preenche
as lacunas da verdade individual com a verdade pré-histórica; substitui as
ocorrências da sua própria vida por ocorrências na vida dos seus ancestrais.
Concordo plenamente com Jung ao reconhecer a existência dessa herança
filogenética; mas considero um erro metodológico agarrar-se a uma explicação
filogenética antes de esgotar as possibilidades ontogenéticas. Não vejo razão
para discutir obstinadamente a importância da pré-história infantil, ao mesmo
tempo reconhecendo livremente a importância da pré-história ancestral. – p. 104/105;
_ Estou inclinado à opinião de
que essa perturbação do apetite deva ser considerada como a primeira das
doenças neuróticas do paciente. Se assim foi, o distúrbio no apetite, a fobia
aos lobos e a devoção obsessiva constituiriam a série completa de perturbações
infantis que estabeleceu a predisposição para o seu colapso neurótico, após
haver passado a puberdade. Objetar-se-á que poucas crianças escapam a tais perturbações
como uma perda temporária de apetite ou uma fobia animal. Contudo, é exatamente
esse argumento que eu desejaria. Estou pronto a afirmar que toda neurose em um
adulto é construída sobre uma neurose que ocorreu em sua infância, mas que não
foi grave o bastante para chamar a atenção e ser reconhecida como tal. Essa
objeção serve apenas para enfatizar a importância teórica do papel que as
neuroses infantis desempenhariam, no nosso ponto de vista, nos distúrbios
posteriores que tratamos como neuroses e procuramos atribuir inteiramente aos
efeitos da vida adulta. Se o nosso paciente não houvesse sofrido de uma
obsessiva devoção piedosa, que se juntou à perturbação no apetite e à fobia
animal, sua história não teria sido perceptivelmente diferente da de outras
crianças, e estaríamos empobrecidos pela perda de precioso material, que pode
nos prevenir contra certos erros plausíveis. – p. 106;
_ Não foi senão pouco antes de
concluir o tratamento que se lembrou de que lhe haviam dito que nascera com um
âmnio. Por esse motivo, sempre se considerara uma criança especial, com sorte,
a quem nenhuma desgraça podia sobrevir. – p. 107;
IX – Recapitulação e problemas
_ Não sei se o leitor deste
relato de uma análise terá conseguido formar um quadro claro da origem e do
desenvolvimento da doença do paciente. Ao contrário, receio que isto não tenha
acontecido. Mas, embora em outras ocasiões tenha dito muito pouco em favor da
minha capacidade na arte de expor, na presente oportunidade gostaria de alegar
circunstâncias atenuantes. A descrição de fases tão primitivas e de estratos
tão profundos da vida mental era uma tarefa nunca antes empreendida; e é melhor
desempenhar mal essa incumbência do que fugir diante dela – procedimento este
que, além do mais (ou assim nos dizem), envolveria o covarde em riscos de certa
natureza. Prefiro, portanto, arriscar-me com audácia e mostrar que não me
permiti ser detido por um sentimento da minha própria inferioridade. – p. 111;
_ Tentarei agora esboçar uma
visão sintética do desenvolvimento sexual do meu paciente, a começar das
primeiras indicações. A primeira que sabemos é a do distúrbio no apetite, pois,
levando em conta outras observações, estou inclinado, embora com as devidas
reservas, a considerá-lo como resultado de algum processo na esfera da
sexualidade. Tenho sido levado a considerar como a primeira organização sexual
reconhecível a assim chamada fase ‘oral’ ou ‘canibalesca’, durante a qual
predomina ainda a ligação original entre a excitação sexual e o instinto
nutritivo. Não é de se esperar que devam ser descobertas manifestações diretas
dessa fase, mas apenas indícios dela, onde quer que se tenha estabelecido
perturbações. A diminuição do instinto nutritivo (embora possa certamente ter
outras causas) chama atenção para uma deficiência, por parte do organismo, no
domínio da excitação sexual. Nessa fase o objetivo sexual só pode ser o
canibalismo, o propósito de devorar; no caso do nosso paciente, surge através
da regressão de um estádio mais elevado, na forma de um medo de ‘ser comido
pelo lobo’. Na verdade, fomos obrigados a traduzi-lo para um medo de ser
copulado pelo pai. É sabido que existe uma neurose nas meninas que ocorre numa
idade muito posterior, na época da puberdade ou pouco depois, e que exprime a
aversão à sexualidade por meio da anorexia. Essa neurose terá que ser examinada
em conexão com a fase oral da vida sexual. O propósito erótico da organização
oral aparece também no auge do paroxismo de um amante (em tais frases como ‘eu
poderia devorá-la com amor’) e em relações afetivas com crianças, quando a
pessoa adulta finge ser ela própria uma criança. Em outra passagem exprimi
minha suspeita de que o pai do nosso paciente costumava ceder ao ‘abuso
afetivo’, e pode ter brincado de lobo ou de cão com o menino, ameaçando, por
brincadeira, engoli-lo. O paciente confirmava essa suspeita pelo curioso
comportamento que mostrava na transferência. Sempre que, assustado pelas
dificuldades do tratamento, recuava para a transferência, costumava ameaçar-me
dizendo que ia devorar-me e, depois com toda espécie de maus tratos – os quais
eram todos uma expressão de afeição. – p. 113;
_ À parte esses fenômenos
patológicos, pode-se dizer que, no presente caso, a religião atingiu todos os
objetivos pelos quais é incluída na educação do indivíduo. Restringiu as
impulsões sexuais do menino, propiciando-lhes uma sublimação e um ancoradouro seguro;
diminuiu a importância das suas elações familiares e, desse modo, protegeu-o da
ameaça do isolamento, dando-lhe acesso à grande comunidade humana. A criança
indomada e cheia de medos tornou-se sociável, bem comportada e sensível à
educação. Foi assim que a religião funcionou nessa criança atormentada – pela
combinação, que proporcionava ao crente, de satisfação, de sublimação, de
desvio dos processos sensuais para os puramente espirituais e de acesso ao
relacionamento social. – p. 120/121;
_ Toda a situação poderia
resumir-se à maneira de uma fórmula. Sua infância fora marcada por uma
oscilação entre atividade e passividade, a puberdade por um esforço de
masculinidade, e o período que se seguiu à sua doença, por uma luta pelo objeto
dos seus desejos masculinos. A causa que precipitou a neurose não se enquadrava
em nenhum dos tipos que consegui descrever como casos especiais de
‘frustração’, e, desse modo, chama atenção para uma lacuna naquela
classificação. – p. 123;
_ Se os seres humanos
possuíssem também um dom instintivo como este, não seria surpresa se fosse
muito particularmente ligado aos processos da vida sexual, mesmo que não
pudesse ser de forma alguma confinado a eles. Esse fator instintivo seria então
o núcleo do inconsciente, um tipo primitivo de atividade mental, que seria
depois destronado e encoberto pela razão humana, quando essa faculdade viesse a
ser adquirida; mas que, em algumas pessoas, talvez em todas, mantivesse o poder
de atrair para si os processos mentais mais elevados. A repressão seria o
retorno a esse estádio instintivo, e o homem estaria, assim, pagando pela nova
aquisição com a sua sujeição à neurose, e estaria testemunhando, pela
possibilidade das neuroses, a existência desses estádios preliminares, de tipo
instintivo. A significação dos traumas da primitiva infância estaria no
material que transmitiriam ao inconsciente, que não permitiria que fosse
exaurido pelo curso subseqüente do desenvolvimento. – p. 126;
As transformações do instinto
exemplificadas no erotismo anal (1917)
_ Há alguns anos atrás,
observações feitas durante a psicanálise levaram-me a suspeitar de que a
constante coexistência de qualquer um dos três traços de caráter, ordem,
parcimônia e obstinação, indicava uma intensificação dos componentes
anal-eróticos na constituição sexual, e que esses modos de reação, que eram
favorecidos pelo ego, haviam sido estabelecidos durante o curso do seu
desenvolvimento, através da assimilação do seu erotismo anal. Naquele
trabalho, meu principal objetivo era tornar conhecido o fato dessa relação
estabelecida; pouco me preocupava o seu significado teórico. Desde então tem
havido um consenso geral de opinião de que cada uma das três qualidades,
avareza, formalismo e obstinação, provém de fontes anal-eróticas ou – para
expressá-lo mais cautelosa e completamente – retira poderosas contribuições
dessas fontes. Os casos em que esses defeitos de caráter se combinavam e que,
por conseguinte, mereceram um rótulo especial (o ‘caráter anal’), eram
simplesmente exemplos extremos, que se juntavam para trair a particular conexão
que nos interessa aqui, mesmo a olhos poucos observadores. Como
resultado de inúmeras impressões e, em particular, de uma observação analítica
especialmente convincente, cheguei à conclusão, alguns anos depois, de que o
desenvolvimento da libido no homem – a fase da primazia genital – deve ser
precedida por uma ‘organização pré-genital’, na qual o sadismo e o erotismo
anal desempenhem os principais papéis. – p. 135;
_ A defecação proporciona a
primeira oportunidade em que a criança deve decidir entre uma atitude narcísica
e uma atitude de amor objetal. Ou reparte obedientemente as suas fezes,
‘sacrifica-as’ ao seu amor, ou as retém com a finalidade de satisfação
auto-erótica e, depois, como meio de afirmar sua própria vontade. Se faz essa
última escolha, estamos na presença de um desafio (obstinação) que, por
conseguinte, nasce de um apego narcísico ao erotismo anal. É
provável que o primeiro significado que o interesse de uma criança pelas fezes
desenvolve, seja o de ‘dádiva’, e não de ‘ouro’ ou ‘dinheiro’. A criança não
conhece dinheiro, a não ser o que lhe é dado – não há dinheiro adquirido por
si, nem herdado. Uma vez que as fezes são a sua primeira dádiva, a criança
transfere facilmente seu interesse dessa substância para uma nova, com que se
depara, como a mais valiosa dádiva da vida. Aqueles que questionam essa
derivação das dádivas deveriam considerar sua experiência de tratamento
psicanalítico, estudar as dádivas que, como médicos, recebem dos pacientes e
observar os tumultos de transferência que uma dádiva deles pode provocar nos
pacientes. Assim, o interesse pelas fezes continua, em parte
como interesse pelo dinheiro, em parte como desejo por um bebê, sendo que neste
último convergem um impulso anal-erótico e um impulso genital (‘inveja do
pênis’). – p. 139;
Uma dificuldade no caminho da
psicanálise (1917)
_ Para começar, direi que não
se trata de uma dificuldade intelectual, de algo que torne a psicanálise
difícil de ser entendida pelo ouvinte ou pelo leitor, mas de uma dificuldade
afetiva – alguma coisa que aliena os sentimentos daqueles que entram em contato
com a psicanálise, de tal forma que os deixa menos inclinados a acreditar nela
ou a interessar-se por ela. Conforme se poderá observar, os dois tipos de
dificuldade, afinal, equivalem-se. Onde falta simpatia, a compreensão não virá
facilmente. Os que agora me lêem, presumo, nada têm a ver com o assunto até o
momento, e serei obrigado, portanto, a retroceder um pouco. A partir de um
grande número de observações e impressões individuais, algo com a natureza de
uma teoria tomou forma, afinal, na psicanálise, algo que é conhecido pelo nome
de ‘teoria da libido’. Como é sabido, a psicanálise preocupa-se com o
esclarecimento e a eliminação dos denominados distúrbios nervosos. Como
houvesse que encontrar um ponto de partida, do qual se pudesse abordar esse
problema, decidiu-se procurá-lo na vida instintual da mente. As hipóteses
acerca dos instintos do homem vieram, portanto, a formar a base da nossa
concepção de doença nervosa. – p. 147;
_ Abriu-se-nos a possibilidade
de fazer nossas sondagens como nos agrada. O consenso popular distingue entre a
fome e o amor como sendo os representantes de instintos que visam,
respectivamente, à preservação do indivíduo e à reprodução da espécie.
Aceitamos essa distinção bastante evidente, de tal modo que também na
psicanálise fazemos uma distinção entre os instintos autopreservativos ou
instintos do ego, por um lado, e os instintos sexuais, por outro lado. À força
pela qual o instinto sexual está representado na mente chamamos ‘libido’ –
desejo sexual – e consideramo-la como algo análogo à fome, à vontade de poder e
assim por diante, na medida em que diz respeito aos instintos do ego. Com esse
dado como ponto de partida, prosseguimos para efetuar a nossa primeira descoberta
importante. Aprendemos que, quando tentamos compreender os distúrbios
neuróticos, sem dúvida o maior significado liga-se aos instintos sexuais; que,
na verdade, as neuroses são os distúrbios específicos, por assim dizer, na
função sexual; que, de um modo geral, o fato de a pessoa desenvolver ou não uma
neurose, depende da quantidade de sua libido e da possibilidade
de saciá-la e de descarregá-la através da satisfação; que a forma assumida pela
doença é determinada pela forma com que o indivíduo atravessa o curso de
desenvolvimento da sua função sexual, ou, conforme o formulamos, pelas fixações
a que sua libido se submeteu no decorrer do seu desenvolvimento; e, ademais,
que, por sua técnica especial e não muito simples de influenciar a mente,
conseguimos esclarecer a natureza de determinados tipos de neuroses e, ao mesmo
tempo, eliminá-las. Nossos esforços terapêuticos obtêm seu maior êxito com uma
determinada classe de neuroses que provêm de um conflito entre os instintos do
ego e os instintos sexuais. Porque, nos seres humanos, pode acontecer que as
exigências dos instintos sexuais, cujo alcance se estende muito além do
indivíduo, pareçam, ao ego, constituir um perigo que ameaça a sua
autopreservação ou a sua auto-estima. O ego assume então a defensiva, nega aos
instintos sexuais a satisfação que almejam e força-os pelos caminhos estreitos
da satisfação substitutiva, que se tornam manifestos como sintomas nervosos. - p. 147/148;
_ O método psicanalítico de
tratamento é, então, capaz de submeter à revisão esse processo de repressão e
conseguir uma solução melhor para o conflito – uma solução que seja compatível
com a saúde. Opositores pouco inteligentes acusam-nos de parcialidade na
avaliação dos instintos sexuais. ‘Os seres humanos têm outros interesses, além
dos sexuais’, dizem eles. Nem por um momento esquecemos ou negamos esse dado.
Nossa parcialidade é como a do químico, que atribui a todos os componentes a
força da atração química. Nem por isso está negando a força da gravidade; deixa
que o físico lide com ela. Durante o processo de tratamento temos que
considerar a distribuição da libido do paciente; procuramos representações
objetais às quais esteja ligada e libertamo-la delas, de modo a colocá-la à
disposição do ego. No decorrer desse processo, chegamos a formar uma imagem
muito curiosa do original, a distribuição primeva da libido dos seres humanos.
Fomos levados a presumir que, no início do desenvolvimento do indivíduo, toda a
sua libido (todas as tendências eróticas, toda a sua capacidade de amar) está
vinculada a si mesma – ou, como dizemos, catexiza o seu próprio ego. É somente
mais tarde que, ligando-se à satisfação das principais necessidades vitais, a
libido flui do ego para os objetos externos. Até então, não conseguimos
reconhecer os instintos libidinais como tais e distingui-los dos instintos do
ego. Para a libido, é possível desvincular-se desses objetos e regressar outra
vez ao ego. A condição em que o ego retém a libido é por nós denominada
‘narcisismo’, em referência à lenda grega do jovem Narciso, que se apaixonou
pelo seu próprio reflexo. – p. 148;
_ Assim, na nossa concepção, o
indivíduo progride do narcisismo para o amor objetal. Não cremos, porém, que toda
a sua libido passe do ego para os objetos. Determinada quantidade de libido
é sempre retida pelo ego; mesmo quando o amor objetal é altamente desenvolvido,
persiste determinada quantidade de narcisismo. O ego é um grande reservatório,
do qual flui a libido destinada aos objetos e para o qual regressa, vinda dos
objetos. A libido objetal era inicialmente libido do ego e pode ser outra vez
convertida em tal. Para a completa sanidade, é essencial que a libido não perca
essa mobilidade plena. Como ilustração dessa situação, podemos pensar em uma
ameba, cuja substância viscosa desprende pseudópodes, prolongamentos pelos
quais se estende a substância do corpo, os quais, contudo, podem retrair-se a
qualquer momento, de modo que a forma da massa protoplásmica seja restaurada. O que
estou tentando descrever neste esboço é a teoria da libido das neuroses,
sobre a qual se fundamentam todas as nossas concepções acerca da natureza
desses estados mórbidos, paralelamente às medidas terapêuticas para aliviá-los.
Naturalmente, consideramos as premissas da teoria da libido válidas também para
o comportamento normal. Falamos do narcisismo das crianças, e é ao excessivo
narcisismo do homem primitivo que atribuímos sua crença na onipotência das suas
idéias e as conseqüentes tentativas de influenciar o curso dos acontecimentos
do mundo exterior pela técnica da magia. Após essa
introdução, proponho-me a descrever como o narcisismo universal dos homens, o
seu amor-próprio, sofreu até o presente três severos golpes por parte das
pesquisas científicas. – p. 149;
_ O que está em sua mente não
coincide com aquilo de que você está consciente; o que acontece realmente e
aquilo que você sabe, são duas coisas distintas. – p. 152;
_ É assim que a psicanálise
tem procurado educar o ego. Essas duas descobertas – a de que a vida dos nossos
instintos sexuais não pode ser inteiramente domada, e a de que os processos
mentais são, em si, inconscientes, e só atingem o ego e se submetem ao seu
controle por meio de percepções incompletas e de pouca confiança -, essas duas
descobertas equivalem, contudo, à afirmação de que o ego não é o senhor da sua própria casa.
Juntas, representam o terceiro golpe no amor próprio do homem, o que posso
chamar de golpe psicológico.
Não é de espantar, então, que o ego não veja com bons olhos a psicanálise e se
recuse obstinadamente a acreditar nela. – p. 152/153;
Uma recordação de infância de
Dichtung und Wahrheit
– ‘Se tentamos recordar-nos do
que nos aconteceu nos primeiros anos da infância, muitas vezes confundimos
aquilo que ouvimos de outros, com o que realmente nos pertence e que provém
daquilo que nós próprios testemunhamos.’ Essa observação encontra-se numa das
primeiras páginas do relato feito por Goethe da sua vida [Dichtung und Wahrheit], que
começou a escrever aos sessenta anos de idade. Precede-a apenas uma informação
acerca do seu nascimento, que ‘teve lugar a 28 de agosto de 1749, ao meio-dia,
ao bater as doze horas’. Os astros estavam numa conjunção favorável, o que pode
bem ter sido a causa da sua sobrevivência, pois ao ingressar no mundo estava
‘como morto’, e somente com grandes esforços é que foi trazido à vida. Segue-se
uma breve descrição da casa e do lugar onde as crianças – ele e a irmã mais nova
– mais gostavam de brincar. Depois disso, no entanto, Goethe, na verdade,
relata apenas um único evento que pode ser atribuído aos ‘primeiros anos da
infância’ (antes dos quatro anos?) e do qual parece haver preservado a sua
própria recordação. – p. 159;
_ Dessa maneira, pode-se
formar a opinião de que o lançamento de louças pela janela foi um ato
simbólico, ou, para dizê-lo mais corretamente, uma ação mágica, pela qual a
criança (Goethe, bem como o meu paciente) deu expressão violenta ao seu desejo
de livrar-se de um intruso que o perturbava. Não há necessidade de discutir o
prazer de uma criança ao quebrar coisas; se uma ação é agradável em si, isso
não é um estorvo, mas, antes, uma instigação para repeti-la em obediência
também a outros propósitos. É improvável, contudo, que possa ter sido o prazer
da destruição que garantiu à travessura infantil um lugar perdurável na memória
do adulto. Nem há qualquer objeção a complicar o motivo da ação
acrescentando-lhe um fator adicional. Uma criança que quebra louça sabe muito
bem que está fazendo algo errado, pelo qual os adultos se zangarão com ele; e
se não se sente restringido por saber disso, provavelmente tem um rancor contra
os pais, que deseja satisfazer; quer demonstrar impertinência. – p. 163;
_ Já observei, no entanto, em
outro trabalho, que, se um homem foi o indiscutível predileto de sua mãe, ele
conserva durante toda a vida o sentimento triunfante, a confiança no êxito, que
não raro traz consigo o verdadeiro êxito. E Goethe poderia muito bem ter colocado,
em sua autobiografia, um cabeçalho mais ou menos como este: ‘A minha força tem
suas raízes na relação que tive com minha mãe.’. – p. 167;
Linhas de progresso na terapia
psicanalítica (1919[1918])
_ Agora que nos reunimos uma
vez mais, após os longos e difíceis anos que atravessamos, sinto-me impelido a
rever a posição do nosso procedimento terapêutico – ao qual na verdade, devemos
o nosso lugar na sociedade humana – e a assumir uma visão geral das novas
direções em que se pode desenvolver. Assim formulamos a nossa incumbência como médicos:
dar ao paciente conhecimento do inconsciente, dos impulsos reprimidos que nele
existem, e, para essa finalidade, revelar as resistências que se opõem a essa
extensão do seu conhecimento sobre si mesmo A revelação dessas resistências
garante que serão também superadas? Certamente nem sempre; mas a nossa
esperança é atingir isso explorando a transferência do paciente para a pessoa
do médico, de modo a induzi-lo a adotar a nossa convicção quanto à
inconveniência do processo repressivo estabelecido na infância e quanto à
impossibilidade de conduzir a vida sobre o princípio de prazer. Estabeleci, em
outro trabalho, as condições dinâmicas prevalecentes no novo conflito através
do qual conduzimos o paciente e que substitui, nele, o seu conflito anterior –
o da sua doença. Nesse aspecto, nada tenho a modificar no momento. Chamamos
de psicanálise o processo pelo qual trazemos o material mental reprimido para a
consciência do paciente. – p. 173;
_ Para dizer a verdade, o
paciente neurótico, com efeito, apresenta-se-nos com a mente dilacerada,
dividida por resistências. À medida que a analisamos e eliminamos as
resistências, ela se unifica; a grande unidade a que chamamos ego, ajusta-se a
todos os impulsos instintuais que haviam sido expelidos (split off) e separados dele.
– p. 175;
_ Já definimos a nossa tarefa
terapêutica como algo que consiste em duas coisas: tornar consciente o material
reprimido e descobrir as resistências. – p. 175;
_ Lembrar-se-ão os senhores de
que foi uma frustração que
tornou o paciente doente, e que seus sintomas servem-lhe de satisfações
substitutivas. – p. 176;
_ Recusamo-nos, da maneira
mais enfática, a transformar um paciente, que se coloca em nossas mãos em busca
de auxílio, em nossa propriedade privada, a decidir por ele o seu destino, a
impor-lhe os nossos próprios ideais, e, com o orgulho de um Criador, a formá-lo
à nossa própria imagem e verificar que isso é bom. Ainda endosso essa recusa, e
acho que é este o lugar adequado para a discrição médica, que, em outros
aspectos, somos obrigados a ignorar. Aprendi também, por experiência própria,
que uma tal atividade, de tão longo alcance em relação aos pacientes, não é de
forma alguma necessária para os objetivos terapêuticos. Isso porque consegui
ajudar pessoas com as quais nada tinha em comum – nem raça, nem educação, nem
posição social, nem perspectiva de vida em geral – sem afetar sua
individualidade. Na época da controvérsia, falei justamente disso, tinha a
impressão de que as objeções dos nossos porta-vozes – penso que foi Ernest
Jones quem assumiu o papel principal – eram por demais ásperas e inflexíveis.
Não podemos evitar de aceitar para tratamento determinados pacientes que são
tão desamparados e incapazes de uma vida comum, que, para eles, há que se
combinar a influência analítica com a educativa; e mesmo no caso da maioria,
vez por outra surgem ocasiões nas quais o médico é obrigado a assumir a posição
de mestre e mentor. Mas isso deve sempre ser feito com muito cuidado, e o
paciente deve ser educado para liberar e satisfazer a sua própria natureza, e
não para assemelhar-se conosco. – p. 178;
Sobre o ensino da psicanálise
nas universidades
Uma criança é espancada – uma
contribuição ao estudo da origem das perversões sexuais (1919)
_ Uma fantasia dessa natureza,
nascida, talvez, de causas acidentais na primitiva infância, e retida com o
propósito de satisfação auto-erótica, só pode, à luz do nosso conhecimento
atual, ser considerada como um traço primário de perversão. Um dos componentes
da função sexual desenvolveu-se, ao que parece, à frente do resto, tornou-se
prematuramente independente, sofreu uma fixação, sendo por isso afastadas dos
processos posteriores de desenvolvimento, e, dessa forma, dá evidência de uma
constituição peculiar e anormal no indivíduo. Sabemos que uma perversão
infantil desse tipo não persiste necessariamente por toda a vida; mais tarde
pode ser submetida à repressão, substituída por uma formação reativa ou
transformada por meio da sublimação. (É possível que a sublimação nasça de
algum processo especial que seria detido pela repressão.) Se esses processos,
contudo, não ocorrem, a perversão persiste até a maturidade; e sempre que
encontramos uma aberração sexual em adultos – perversão, fetichismo, inversão –
temos motivos para esperar que a investigação anamnésica revele um evento como
o que sugeri, que conduza a uma fixação na infância. – p. 197/198;
_ Rigorosamente considerado –
e por que não deveria essa questão ser considerada com todo o rigor? -, o
trabalho analítico só merece ser reconhecido como psicanálise quando consegue
remover a amnésia que oculta do adulto o seu conhecimento da infância desde o
início (isto é, desde um período aproximadamente entre o segundo e o quinto ano
de vida). Entre os analistas, isto não pode ser dito com muita ênfase ou
repetido com muita freqüência. Os motivos para desconsiderar este lembrete são,
na verdade, compreensíveis. Seria desejável obter resultados práticos num
período mais curto e com menos problemas. Na época atual, porém, o conhecimento
teórico é ainda muito mais importante para todos nós do que o êxito
terapêutico, e quem quer que negligencie a análise infantil está fadado a cair
nos mais desastrosos erros. A ênfase que é dada aqui à importância das
primeiras experiências não implica em subestimar a influência das experiências
posteriores. As impressões posteriores da vida, contudo, falam alto o bastante através
da boca do paciente, ao passo que é o médico que tem que elevar a voz em favor
das reivindicações da infância. É na infância, entre os dois e os quatro ou cinco
anos de idade, que os fatores libidinais congênitos são despertados pela
primeira vez pelas experiências reais e se ligam a determinados complexos. As
fantasias de espancamentos que agora estamos considerando, só se mostram mais
para o final desse período, ou após o seu término. Assim, pode muito bem ser
que tenham um histórico anterior, que atravessem um processo de
desenvolvimento, que representam um resíduo e não uma manifestação inicial. – p. 199;
_ Até onde sei, é sempre
assim; um sentimento de culpa é invariavelmente o fator que converte o sadismo
em masoquismo. – p. 204;
_ Uma perversão na infância,
como é sabido, pode tornar-se a base para a construção de uma perversão que
tenha um sentido similar e que persista por toda a vida, uma perversão que
consuma toda a vida sexual do sujeito. – p. 207;
_ Se, no entanto, a derivação
das perversões a partir do complexo de Édipo pode ser estabelecida de modo
geral, a nossa estimativa quanto à sua importância terá adquirido força
adicional. Porque, na nossa opinião, o complexo de Édipo é o verdadeiro núcleo
das neuroses e a sexualidade infantil que culmina nesse complexo é que
determina realmente as neuroses. O que resta do complexo no inconsciente
representa a inclinação para o posterior desenvolvimento de neuroses no adulto.
Dessa forma, a fantasia de espancamento e outras fixações perversas análogas
também seriam apenas resíduos do complexo de Édipo, cicatrizes, por assim
dizer, deixadas pelo processo que terminou, tal como o notório ‘sentimento de
inferioridade’ corresponde a uma cicatriz narcísica do mesmo tipo. – p. 208;
_ A nossa exposição da fantasia
de espancamento pouco esclareceu a gênese do masoquismo. Para começar, parece
haver confirmação do ponto de vista de que o masoquismo não é a manifestação de
um instinto primário, mas se origina do sadismo que foi voltado contra o eu (self) – ou seja, por meio de
regressão de um objeto para o ego. Pode-se ter como certo que os instintos com
propósito passivo existem, particularmente entre as mulheres. A passividade,
contudo, não é a totalidade do masoquismo. A característica do desprazer também
pertence a ele – um desconcertante acompanhamento para a satisfação de um
instinto. A transformação do sadismo em masoquismo parece dever-ser à
influência do sentimento de culpa que participa do ato de repressão. – p. 209;
_ A primeira dessas teorias é
anônima. Foi trazida ao meu conhecimento, há alguns anos atrás, por um colega
com quem, na época, eu mantinha boas relações. A teoria é, pela sua ousada
simplicidade, tão atraente, que a única surpresa é que não se tenha imposto na
literatura do assunto, exceto por umas poucas alusões esparsas. Baseia-se no
fato da constituição bissexual dos seres humanos, e afirma que a força
motivadora da repressão, em cada indivíduo, é uma luta entre os dois caracteres
sexuais. O sexo dominante da pessoa, aquele que é mais intensamente
desenvolvido, reprimiu no inconsciente a representação mental do sexo
subordinado. Portanto, o núcleo do inconsciente (quer dizer, o reprimido) é, em
cada ser humano, aquele lado dele que pertence ao sexo oposto. Uma teoria como
esta só pode ter um significado inteligível se presumimos que o sexo de uma
pessoa seria determinado pela formação dos genitais; pois, de outro modo, não
haveria certeza de qual é o sexo mais forte da pessoa, e correríamos o risco de
chegar, com os resultados da pesquisa ao próprio fato que tem que servir como
ponto de partida. Para, resumir a teoria: nos homens, o que é inconsciente e
reprimido pode ser reduzido a impulsos instintuais femininos; o que ocorre, de
forma inversa, nas mulheres. – p. 215;
_ A teoria da psicanálise (uma
teoria fundamentada na observação) sustenta com firmeza o ponto de vista de que
as forças motivadoras da repressão não devem ser sexualizadas. A herança
arcaica do homem forma o núcleo da mente inconsciente; e qualquer que seja a
parte daquela herança que tenha de ser deixada para trás no avanço para as
fases posteriores de desenvolvimento, porque não serve ou é incompatível com o
que é novo, e lhe é prejudicial, surge uma vítima do processo de repressão.
Essa seleção é feita com mais êxito com um grupo de instintos do que com o
outro. Em virtude de circunstâncias particulares que já foram freqüentemente
assinaladas, o segundo grupo, o dos instintos sexuais, é capaz de derrotar as
intenções de repressão e de forçar sua representação por formações
substitutivas de natureza perturbadora. Por esse motivo, a sexualidade
infantil, que é mantida sob repressão, atua como a principal força motivadora
na formação de sintomas; e a parte essencial do seu conteúdo, o complexo de
Édipo, é o complexo nuclear das neuroses. – p. 218;
Introdução a A psicanálise e
as neuroses de guerra
_ As neuroses de guerra, na
medida em que se distinguem das neuroses comuns por características
particulares, devem ser consideradas como neuroses traumáticas cuja ocorrência
se tornou possível ou foi provocada por um conflito no ego. O artigo de Abraham
propicia uma boa prova desse conflito, que foi também reconhecido pelos autores
ingleses e norte-americanos citados por Jones. O conflito é entre o velho ego
pacífico do soldado e o seu novo ego bélico, e torna-se agudo tão logo o ego
pacífico compreende que perigo corre ele de perder a vida devido à temeridade
do seu recém-formado e parasítico duplo. Seria igualmente verdadeiro dizer que
o antigo ego está-se protegendo de um perigo mortal ao fugir para uma neurose
traumática, ou dizer que está defendendo-se do novo ego, o qual vê como uma
ameaça à sua vida. Dessa forma, a precondição das neuroses de guerra, o solo
que as nutre, pareceria ser um exército nacional [recrutado]; não haveria
possibilidade de surgirem neuroses num exército de soldados profissionais ou de
mercenários. – p. 218;
_ Nas neuroses de
transferência, em época de paz, o inimigo do qual o ego se defende é, na
verdade, a libido, cujas exigências lhe parecem ameaçadoras. Em ambos os casos,
o ego tem medo de ser prejudicado – no segundo caso, pela libido, e no
primeiro, pela violência externa. De fato, poder-se-ia dizer que, no caso das
neuroses de guerra, em contraste com as neuroses traumáticas puras e de modo
semelhante as neuroses de transferência, o que é temido é, não obstante, um
inimigo interno. As dificuldades teóricas que se erguem no caminho de uma
hipótese unificadora desse tipo não parecem insuperáveis: afinal de contas,
temos todo o direito de descrever a repressão, que está na base de cada
neurose, como uma reação ao trauma – como uma neurose traumática elementar. –
p. 226;
Apêndice - Memorandum sobre o
tratamento elétrico dos neuróticos de guerra (1955[1920])
_ Havia muitos pacientes,
mesmo em tempos de paz, que, depois de traumas (isto é, após experiências
assustadoras e perigosas, tais como acidentes ferroviários etc.), exibiam
graves distúrbios na vida mental e na atividade nervosa, sem que os médicos
tivessem chegado a um acordo sobre tais estados. – p. 227;
_ Aquilo que é conhecido como
escola psicanalítica de psiquiatria, que foi iniciada por mim, havia ensinado,
durante os últimos vinte e cinco anos, que as neuroses da paz podiam ser
atribuídas a perturbações da vida emocional. Essa explicação era aplicada
agora, de modo bastante geral, aos neuróticos de guerra. Afirmamos também que
os pacientes neuróticos sofriam de conflitos mentais e que os desejos e
inclinações que se expressavam nos sintomas eram desconhecidos dos próprios
pacientes – isto é, eram inconscientes. Foi fácil, portanto, inferir que a
causa imediata de todas as neuroses de guerra era uma inclinação inconsciente,
no soldado, para afastar-se das exigências perigosas ou ultrajantes para os
seus sentimentos, feitas sobre ele pelo serviço ativo. Medo de perder a própria
vida, oposição à ordem de matar outras pessoas, rebeldia contra a supressão
implacável da própria personalidade pelos seus superiores – eram estas as mais
importantes fontes afetivas das quais se nutria a tendência para escapar da
guerra. – p. 228;
O Estranho (1919)
_ Só raramente um psicanalista
se sente impelido a pesquisar o tema da estética, mesmo quando por estética se
entende não simplesmente a teoria da beleza, mas a teoria das qualidades do
sentir. O analista opera em outras camadas da vida mental e pouco tem a ver com
os impulsos emocionais dominados, os quais, inibidos em seus objetivos e
dependentes de uma hoste de fatores simultâneos, fornecem habitualmente o
material para o estudo da estética. Mas acontece ocasionalmente que ele tem de
interessar-se por algum ramo particular daquele assunto; e esse ramo geralmente
revela-se um campo bastante remoto, negligenciado na literatura especializada
da estética. – p. 237;
_ Esses últimos exemplos do
‘estranho’ devem ser referidos ao princípio que denominei ‘onipotência de
pensamento’, tomando o nome de uma expressão usada por um dos meus pacientes. E
agora encontramo-nos em terreno familiar. A nossa análise de exemplos do
estranho reconduziu-nos à antiga concepção animista do universo.
Caracterizava-se esta pela idéia de que o mundo era povoado por espíritos dos
seres humanos; pela supervalorização narcísica, do sujeito, de seus próprios
processos mentais, pela crença na onipotência dos pensamentos e a técnica de
magia baseada nessa crença; pela atribuição, a várias pessoas e coisas
externas, de poderes mágicos cuidadosamente graduados, ou ‘mana‘; bem como por todas as
outras criações, com a ajuda das quais o homem, no irrestrito narcisismo desse
estádio de desenvolvimento, empenhou-se em desviar as proibições manifestas da
realidade. É como se cada um de nós houvesse atravessado uma fase de
desenvolvimento individual correspondente a esse estádio animista dos homens
primitivos, como se ninguém houvesse passado por essa fase sem preservar certos
resíduos e traços dela, que são ainda capazes de se manifestar, e que tudo
aquilo que agora nos surpreende como ‘estranho’ satisfaz a condição de tocar
aqueles resíduos de atividade mental animista dentro de nós e dar-lhes
expressão.Neste ponto vou expor duas considerações que, penso eu, contêm a
essência deste breve estudo. Em primeiro lugar, se a teoria psicanalítica está
certa ao sustentar que todo afeto pertencente a um impulso emocional, qualquer
que seja a sua espécie, transforma-se, se reprimido, em ansiedade, então, entre
os exemplos de coisas assustadoras, deve haver uma categoria em que o elemento
que amedronta pode mostrar-se ser algo reprimido que retorna. – p. 258;
_ Pode ser verdade que o
estranho [unheimlich]
seja algo que é secretamente familiar [heimlich-heimisch],
que foi submetido à repressão e depois voltou, e que tudo aquilo que é estranho
satisfaz essa condição. – p. 262;
Prefácio a Ritual: estudos
psicanalíticos de Reik (1919)
Breves escritos (1919)
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