Resumo
do Livro XXIII – Moisés e o monoteísmo, esboço de psicanálise e outros
trabalhos (1937-1939)
Moisés
e o monoteísmo – Três ensaios (1939[1934-38])
I – Moisés, um egípcio
_ O varão Moisés, que libertou
o povo judeu, que lhe deu suas leis e fundou sua religião, data de tempos tão
remotos que não podemos fugir a uma indagação preliminar quanto a saber se foi
ele personagem histórico ou criatura de lenda. Se viveu, foi no décimo terceiro
– embora possa ter sido no décimo quarto – século antes de Cristo. Não
possuímos informações sobre ele, exceto as oriundas dos livros sagrados dos
judeus e de suas tradições, tal como registradas por escrito. Embora à decisão
sobre o assunto falte certeza final, uma esmagadora maioria de historiadores
pronunciou-se em favor da opinião de que Moisés foi uma pessoa real e que o
Êxodo do Egito a ele associado realmente aconteceu. Argumenta-se que, se essa
premissa não fosse aceita, a história posterior do povo de Israel seria
incompreensível. Na verdade, a ciência hoje tornou-se em geral muito mais
circunspecta, e trata as tradições de modo muito mais indulgente do que nos
primeiros dias da crítica histórica.
A primeira coisa que atrai nossa atenção a respeito
da figura de Moisés é seu nome, que em hebraico é ‘Mosheh’. ‘Qual é a sua
origem’, podemos perguntar, ‘e o que significa?’ Como sabemos, a descrição
contida no segundo capítulo do Êxodo já fornece uma resposta. É-nos dito aí que
a princesa egípcia que salvou o menininho abandonado no Nilo deu-lhe esse nome,
fornecendo-se uma razão etimológica: ‘porque das águas o tenho tirado’. Essa
explicação, contudo, é claramente inadequada. ‘A interpretação bíblica do nome
como “o que foi tirado das águas”’, argumenta um autor no Jüdisches Lexikon,
‘constitui etimologia popular, com a qual, de início, é impossível harmonizar a
forma ativa da palavra hebraica, pois “Mosheh” pode significar, no máximo,
apenas “o que tira fora”. Podemos apoiar essa rejeição por dois outros
argumentos: em primeiro lugar, é absurdo atribuir a uma princesa egípcia uma
derivação do nome a partir do hebraico, e, em segundo, as águas de onde a
criança foi tirada muito provavelmente não foram as do Nilo. – p. 19;
_ Se, acompanhando Rank,
construirmos (por uma técnica um pouco semelhante à de Galton) uma ‘lenda
média’ que coloque em realce as características essenciais de todas essas
histórias, chegaremos ao quadro seguinte:
‘O herói é filho de pais muito aristocráticos;
geralmente, filho de um rei.
‘Sua concepção é precedida por dificuldades, tal
como a abstinência ou a esterilidade prolongada, ou seus pais têm de ter
relações em segredo, por causa de proibições ou obstáculos externos. Durante a
gravidez, ou mesmo antes, há uma profecia (sob a forma de sonho ou oráculo) que
alerta contra seu nascimento, que geralmente ameaça perigo para o pai.
‘Como resultado disso, a criança recém-nascida é
condenada à morte ou ao abandono, geralmente por ordem do pai ou de alguém
que o representa; via de regra é abandonada às águas, num cesto.
‘Posteriormente ele é salvo por animais ou por
gente humilde (tais como pastores) e amamentado por uma fêmea de animal
ou por uma mulher humilde.‘Após ter crescido, redescobre seus pais
aristocráticos depois de experiências altamente variadas, vinga-se do pai,
por um lado, é reconhecido, por outro, e alcança grandeza e fama.’Ver em
[[1]].A mais antiga das figuras históricas a quem esse mito de nascimento está
ligado é Sargão de Agade, fundador de Babilônia (por volta de 2800 a.C.) Para
nós, em particular, não deixará de ter interesse citar a descrição desse mito,
atribuída a ele próprio:
‘Sargão, o poderoso Rei, o Rei de Agade, sou eu. Minha
mãe era uma vestal, a meu pai não conheci, ao passo que o irmão de meu pai
morava nas montanhas. Em minha cidade, Azupirani, que fica à margem do
Eufrates, minha mãe, a vestal, concebeu-me. Em segredo ela me teve.
Depositou-me num caixote feito de caniços, tampou a abertura com piche, e
abandonou-me ao rio, que não me afogou. O rio me conduziu até Akki, o tirador
de água. Akki, o tirador de água, na bondade de seu coração, tirou-me para
fora. Akki, o tirador de água, criou-me como seu próprio filho.
Akki, o tirador de água, fez-me seu jardineiro. Enquanto eu trabalhava como
jardineiro, [a deusa] Istar ficou gostando de mim; tornei-me Rei e, por
quarenta e cinco anos, governei regiamente.’
Os nomes que nos são mais familiares na série que
começa com Sargão de Agade são Moisés, Ciro e Rômulo. Mas, além destes, Rank
reuniu grande número de outras figuras heróicas da poesia ou da lenda, de quem
se conta a mesma história a respeito de sua juventude, quer em sua totalidade
quer em fragmentos facilmente reconhecíveis, incluindo Édipo, Karna, Páris,
Telefos, Perseu, Héracles, Gilgamesh, Anfion e Zetos, e outros.
As pesquisas de Rank familiarizaram-nos com a fonte
e o propósito desse mito. Só preciso referir-me a elas por algumas breves
indicações. O herói é alguém que teve a coragem de rebelar-se contra o pai e,
ao final, sobrepujou-o vitoriosamente. Nosso mito faz essa luta remontar até a
pré-história do indivíduo, já que o representa como nascendo contra a vontade
do pai e salvo apesar das más intenções paternas. O abandono num cesto é uma
representação simbólica inequívoca do nascimento: cesto é o útero, e a água, o
líquido amniótico. O relacionamento genitor-criança é representado, em
incontáveis sonhos, por tirar para fora das águas ou delas salvar. Quando a
imaginação de um povo liga o mito de nascimento que estamos examinando a uma
figura fora do comum, está pretendendo, dessa maneira, reconhecê-la como herói
e anunciar que ela correspondeu ao modelo regular de uma vida de herói. Na
verdade, contudo, a fonte de toda ficção poética é aquilo que é conhecido como
o ‘romance familiar’ de uma criança, no qual o filho reage a uma modificação em
sua relação emocional com os genitores e, em especial, com o pai. Os primeiros
anos de uma criança são dominados por uma enorme supervalorização do pai; em
consonância com isso, rei e rainha nos sonhos e nos contos de fadas
invariavelmente representam os genitores. Mais tarde, sob a influência da
rivalidade e do desapontamento na vida real, a criança começa a desligar-se
deles e a adotar uma atitude crítica para com o pai. Assim, ambas as famílias
do mito – a aristocrática e a humilde – são reflexos da própria família da
criança, tal como lhe apareceram em períodos sucessivos de sua vida. – p. 22/24;
_ Moisés era um egípcio –
provavelmente um aristocrata – sobre quem a lenda foi inventada para
transformá-lo num judeu. E esta seria a nossa conclusão. O abandono às águas
estava em seu lugar correto na história, mas, a fim de ajustar-se à nova
intenção, seu objetivo teve de ser um tanto violentamente deformado. De maneira
de sacrificar a criança, transformou-se em meio de salvá-la. – p. 26;
II – Se Moisés fosse
egípcio...
_ Numa contribuição anterior a
esse periódico, tentei trazer à baila um novo argumento em apoio à hipótese de
que o homem Moisés, o libertador e legislador do povo judaico, não era judeu,
mas egípcio. Há muito tempo observou-se que seu nome derivava do vocabulário
egípcio, embora o fato não tenha sido devidamente apreciado. O que acrescentei
foi que a interpretação do mito do abandono vinculado a Moisés conduzia
necessariamente à inferência de que ele fora um egípcio a quem as necessidades
de um povo procuraram transformar em judeu. –
p. 29;
_ Outra possibilidade nos é
aberta por um acontecimento marcante na história da religião egípcia, um
acontecimento que só ultimamente foi reconhecido e apreciado. Continua sendo
possível que a religião que Moisés deu a seu povo judeu era, mesmo assim, a sua
própria, que era uma religião egípcia, embora não a religião egípcia.
Na gloriosa XVIII Dinastia, sob a qual o Egito se
tornou uma potência mundial, um jovem faraó subiu ao trono, por volta de 1375
a.C. Inicialmente ele foi chamado, tal como seu pai, Amenófis (IV); mais tarde,
porém, mudou seu nome, e não apenas seu nome. Esse rei dispôs-se a impor uma
religião a seus súditos egípcios, uma religião que ia de encontro às suas
tradições de milênios e a todos os hábitos familiares de suas vidas. Ela era um
monoteísmo escrito, a primeira tentativa dessa espécie, até onde sabemos, na
história do mundo, e, juntamente com a crença num deus único, nasceu
inevitavelmente a intolerância, que anteriormente fora alheia ao mundo antigo e
que por tão longo tempo permaneceu depois dele. O reino de Amenófis, contudo,
durou apenas 17 anos. Logo após sua morte, em 1358 a.C., a nova religião foi
varrida e proscrita a memória do rei herético. O pouco que sabemos dele
deriva-se das ruínas da nova capital real que construiu e dedicou a seu deus, e
das inscrições nas tumbas de pedra adjacentes a ela. Tudo o que pudemos
aprender sobre essa personalidade marcante e, na verdade, única, será merecedor
do mais elevado interesse. – p. 33;
_ Ora, tomando como certo que
a circuncisão era costume popular e universal no Egito, adotemos por um momento
a hipótese de que Moisés era judeu, de que buscou libertar da servidão seus
compatriotas no Egito e de que os conduziu a desenvolver uma existência
nacional independente e autoconsciente em outro país – que foi realmente o que
aconteceu. Que sentido poderia ter, nesse caso, o fato de que, ao mesmo tempo,
ele lhes tenha imposto um costume incômodo, que inclusive, até certo ponto, os
transformava em egípcios e devia manter permanentemente viva a lembrança deles
em relação ao Egito, ao passo que os esforços de Moisés só podiam visar à
direção oposta, isto é, a tornar alheio o povo à terra de sua servidão e a
superar o anseio pelas ‘panelas de carne’ do Egito? Não, o fato do qual
partimos e a hipótese que lhe acrescentamos são tão incompatíveis entre si, que
podemos atrever-nos a chegar a esta conclusão: se Moisés deu aos judeus não
apenas uma nova religião, como também o mandamento da circuncisão, ele não foi
um judeu mas um egípcio, e, nesse caso, a religião mosaica foi provavelmente
uma religião egípcia, que, em vista de seu contraste com a religião popular,
era a religião de Aten, com a qual a religião judaica posterior concorda em
alguns aspectos marcantes. Já indiquei que minha hipótese de que Moisés não era
judeu, mas egípcio, criou um novo enigma. O desenvolvimento de sua conduta, que
parecia facilmente inteligível num judeu, era incompreensível num egípcio. Se,
contudo, colocarmos Moisés na época de Akhenaten e o supusermos em contato com
esse faraó, o enigma se desfará, mostrando-se possíveis os motivos que
responderão a todas as nossas perguntas. –
p. 39/40;
_ De acordo com essa nossa
construção, o Êxodo do Egito teria ocorrido durante o período que vai de 1358 a
1350 a.C., isto é, após a morte de Akhenaten e antes do restabelecimento, por
Haremhab, da autoridade estatal. O objetivo da migração só poderia ter sido a
terra de Canaã. – p. 41;
_ Posteriormente, contudo, a
tradição judaica comportou-se como se tivesse sido posta em desvantagem pela
inferência que estivemos tirando. Caso se admita que a circuncisão foi um
costume egípcio introduzido por Moisés, isso será quase a mesma coisa que reconhecer
que a religião que lhes foi dada por ele, era também uma religião egípcia.
Houve bons motivos para negar esse fato, de maneira que a verdade sobre a
circuncisão também teve de ser contraditada. –
p. 42;
_ Nesse ponto, espero
defrontar-me com uma objeção a minha hipótese. Essa hipótese situou Moisés, um
egípcio, no período de Akhenaten. Fez sua decisão de assumir o povo judeu
derivar das circunstâncias políticas do país naquela ocasião, e identificou a
religião que ele apresentou ou impôs a seus protegés como a religião de Aten,
que, na realidade, tinha desmoronado no próprio Egito. Espero que me seja dito
que apresentei essa estrutura de conjecturas com excessiva positividade, para a
qual não existe base alguma no material. Acho que essa objeção não se
justifica. Já dei ênfase ao fator de dúvida em minhas observações
introdutórias; por assim dizer, coloquei esse fator fora dos colchetes e
pode-se permitir que eu me poupe o trabalho de repeti-lo em vinculação a cada
item dentro deles.
Posso continuar o exame com algumas considerações
críticas elaboradas por mim mesmo. O cerne de minha hipótese – a dependência do
monoteísmo judaico do episódio monoteísta na história egípcia – já fora
suspeitado e mencionado por diversos autores. – p. 43;
_ Inesperadamente, uma vez
mais um caminho de fuga apresenta-se aqui. Os esforços para ver em Moisés uma
figura que vai além do sacerdote de Cades, e confirmar a grandeza com que a
tradição o glorifica, não cessaram desde Eduard Meyer. (Cf. Gressmann [1913] e
outros.) Em 1922, Ernest Sellin fez uma descoberta que influenciou
decisivamente nosso problema. Descobriu no profeta Oséias (segunda metade do
século VIII a.C.) sinais inequívocos de uma tradição segundo a qual Moisés, o fundador
da religião dos judeus, encontrou um final violento num levante de seu povo
refratário e obstinado, ao mesmo tempo que a religião por ele introduzida era
repudiada. Essa tradição, contudo, não se restringe a Oséias; reaparece na
maioria dos profetas posteriores, e, na verdade, segundo Sellin, tornou-se a
base de todas as expectativas messiânicas mais tardias. Ao fim do cativeiro
babilônico, surgiu entre o povo judeu a esperança de que o homem que fora tão
vergonhosamente assassinado retornasse dentre os mortos e conduzisse seu povo
cheio de remorso, e talvez não apenas esse povo, para o reino da felicidade
duradoura. A vinculação óbvia disso com o destino do fundador de uma religião
mais tardia não nos interessa aqui. – p. 49;
_ Estamos, penso eu,
justificados em separar as duas figuras e em presumir que o Moisés egípcio
nunca esteve em Cades e nunca escutou o nome de Javé, e que o Moisés madianita
nunca esteve no Egito e nada sabia de Aten. A fim de soldar as duas figuras, a
tradição ou a lenda receberam a missão de trazer o Moisés egípcio a Madiã, e
vimos que mais de uma explicação disso era corrente. – p. 53;
_ De todos os acontecimentos
de tempos primitivos que posteriormente poetas, sacerdotes e historiadores
empreenderam elaborar, um se salienta, cuja supressão foi imposta pelos mais
imediatos e melhores motivos humanos. Trata-se do assassinato de Moisés, o
grande líder e libertador, descoberto por Sellin a partir de alusões nos
escritos dos profetas. A hipótese de Sellin não pode ser chamada de fantástica;
é bastante provável. Moisés, derivando-se da escola de Akhenaten, não empregou
métodos diferentes dos que o rei usara; ele ordenou, forçou sua fé ao povo. A
doutrina de Moisés pode ter sido inclusive mais dura do que a de seu mestre.
Ele não tinha necessidade de manter o deus solar como apoio: a escola de On não
possuía significação para seu povo estrangeiro. Moisés, como Akhenaten,
defrontou-se com o mesmo destino que espera todos os déspotas esclarecidos. O
povo judeu, sob Moisés, era tão capaz de tolerar uma religião tão altamente
espiritualizada e encontrar satisfação de suas necessidades no que ele tinha a
oferecer quanto os egípcios da XVIII Dinastia. Em ambos os casos, aconteceu o
mesmo: aqueles que tinham sido dominados e mantidos em falta levantaram-se e
lançaram fora o fardo da religião que lhes fora imposta. Mas, ao passo que os
dóceis egípcios esperaram até que o destino removesse a figura sagrada de seu
faraó, os selvagens semitas tomaram o destino nas mãos e livraram-se de seu
tirano. – p. 59;
_ Temos agora de fazer uma
tentativa de elucidar as relações cronológicas desses acontecimentos. Colocamos
o Êxodo no período posterior ao fim da XVIII Dinastia (1350 a.C.). Ele pode ter
ocorrido então ou um pouco depois, já que os cronistas egípcios incluíram os
anos supervenientes de anarquia no reinado de Haremhab, que lhes pôs fim e
durou até 1315 a.C. O ponto fixado seguinte (mas também único) da cronologia é
fornecido pela estela de [o faraó] Merenptah (1225-15 a.C.), que se gaba de sua
vitória sobre Isiraal (Israel) e da dispersão de sua semente (?). O sentido a
ser ligado a essa inscrição é, infelizmente, duvidoso, supondo-se que prove que
as tribos israelitas já estavam, nessa época, estabelecidas em Canaã. Eduard Meyer,
corretamente, conclui a partir dessa estela que Merenptah não pode ter sido o
faraó do Êxodo, como levianamente foi anteriormente presumido. A data do Êxodo
deve ter sido anterior. A questão de saber quem foi o faraó do Êxodo, parece-me
inteiramente ociosa. Não houve faraó do Êxodo, porque este ocorreu durante um
interregno; tampouco a descoberta da estela de Merenptah lança qualquer luz
sobre a possível data da união e fundação da religião em Cades. Tudo o que
podemos dizer com certeza é que ocorreu em alguma ocasião entre 1350 e 1215
a.C. Desconfiamos de que o Êxodo ocorreu bastante perto do início desses cem
anos e os eventos de Cades não muito longe de seu fim. – p. 60;
_ E aqui, segundo parece,
cheguei à conclusão de meu estudo, que se dirigiu para o objetivo único de
introduzir a figura de um Moisés egípcio no nexo da história judaica. Nossos
achados podem ser assim expressos na fórmula mais concisa. A história judaica nos
é familiar por suas dualidades: dois grupos de pessoas que se reúnem para
formar a nação, dois reinos em que essa nação se divide, dois nomes de deuses
nas fontes documentárias da Bíblia. A elas, acrescentamos outras duas, novas: a
fundação de duas religiões – a primeira reprimida pela segunda, não obstante
emergindo depois vitoriosamente, por trás dela, e dois fundadores religiosos,
ambos chamados pelo mesmo nome de Moisés e cujas personalidades temos de
distinguir uma da outra. Todas essas dualidades são as conseqüências
necessárias da primeira: o fato de uma parte do povo ter tido uma experiência
que tem de ser considerada como traumática, à qual a outra parte escapou. Mais
além disso, haveria muita coisa a examinar, explicar e asseverar. Somente assim
um interesse em nosso estudo puramente histórico encontraria sua verdadeira
justificação. Em que reside a natureza real de uma tradição, em que repousa seu
poder especial, quão impossível é discutir a influência pessoal, sobre a
história mundial, dos grandes homens tomados individualmente, qual o sacrilégio
que se comete contra a esplêndida diversidade da vida humana se se reconhecerem
apenas os motivos que se originam das necessidades materiais, de que fontes
algumas idéias (e, especificamente, as religiosas) derivam seu poder de
submeter tanto homens quanto povos a seu jogo – estudar tudo isso no caso
especial da história judaica seria tarefa sedutora. Continuar meu trabalho
segundo linhas como essas seria descobrir um vínculo com as afirmativas que apresentei
vinte e cinco anos atrás em Totem e Tabu [1912-13], mas não mais sinto que
possua força para fazê-lo. – p. 63/64;
III – Moisés, o seu povo e a
religião monoteísta
Parte I – Nota Preambular
_ Com a audácia daquele que
tem pouco ou nada a perder, proponho-me pela segunda vez romper uma intenção
bem fundada e acrescentar a meus dois ensaios sobre Moisés aparecidos em Imagoa
parte final que retive. Terminei o último ensaio com a asserção de que sabia
que minhas forças não seriam suficientes para isso. Quis significar,
naturalmente, o debilitamento dos poderes criativos que acompanham a velhice, mas
pensava também em outro obstáculo.
Estamos vivendo num período especialmente marcante.
Descobrimos, para nosso espanto, que o progresso aliou-se à barbárie. Na Rússia
Soviética, dispuseram-se a melhorar as condições de vida de algumas centenas de
milhões de pessoas que eram mantidas firmemente em sujeição. Foram
suficientemente precipitados para retirar-lhes o ‘ópio’ da religião e avisados
o bastante para conceder-lhes uma razoável quantidade de liberdade sexual; ao
mesmo tempo, porém, submeteram-nas à mais cruel coerção e despojaram-nas de
qualquer possibilidade de pensamento. Com violência semelhante, o povo italiano
está sendo treinado na organização e no sentido de dever. Sentimos como um
alívio de uma apreensão opressiva quando vemos, no caso do povo alemão, que uma
recaída numa barbárie quase pré-histórica pode ocorrer também sem estar ligada
a quaisquer idéias progressistas. De qualquer modo, as coisas revelaram-se
tais, que, atualmente, as democracias conservadoras se tornaram as guardiãs do
progresso cultural e, estranho é dizê-lo, é precisamente a instituição da
Igreja Católica que ergue uma defesa poderosa contra a disseminação desse
perigo à civilização – a Igreja que até constituíra o incansável inimigo da
liberdade de pensamento e dos progressos no sentido da descoberta da verdade!
Estamos vivendo aqui, num país católico, sob a
proteção dessa Igreja, incertos quanto ao tempo que essa proteção resistirá.
Mas, enquanto durar, naturalmente hesitamos em fazer algo que estaria sujeito a
despertar a hostilidade da Igreja. Não se trata de covardia, mas de prudência.
O novo inimigo, que desejamos evitar servir, é mais perigoso do que o antigo,
com quem já havíamos aprendido a entrar em acordo. As pesquisas psicanalíticas
que conduzimos são, em todo caso, encaradas com atenção suspeitosa pelo
catolicismo. Não sustentarei que isso seja injusto. Se nosso trabalho nos leva
a uma conclusão que reduz a religião a uma neurose da humanidade e explica seu
enorme poder da mesma maneira que uma compulsão neurótica em nossos pacientes
individuais, podemos estar certos de atrair o ressentimento de nossos poderes
governantes sobre nós. Não que tenha algo a dizer que seja novo ou que não
tenha dito claramente um quarto de século atrás, mas isso foi esquecido nesse
ínterim e não poderia deixar de ter efeito se o repetisse hoje e o ilustrasse
por um exemplo que oferece um padrão para todos os fundamentos religiosos.
Conduziria provavelmente a sermos proibidos de exercer a psicanálise. Métodos
violentos de repressão desse tipo não são, em verdade, de maneira alguma
estranhos à Igreja; o fato é, antes, que ela sente como invasão de seus
privilégios alguém mais fazer uso desses métodos. Mas a psicanálise, que, no
decurso de minha longa vida, foi a todas as partes, ainda não possui um lar que
possa ser mais valioso para ela do que a cidade em que nasceu e se desenvolveu. – p. 65/66;
A – A premissa histórica
_ Aqui, pois, temos o pano de fundo
histórico dos acontecimentos que absorveram nosso interesse. Em resultado das
conquistas da XVIII Dinastia, o Egito tornou-se um império mundial. O novo
imperialismo refletiu-se no desenvolvimento das idéias religiosas, se não de
todo o povo, pelo menos de seu estrato superior governante e intelectualmente
ativo. Sob a influência dos sacerdotes do deus solar em On (Heliópolis),
fortalecida talvez por impulsos provindos da Ásia, surgiu a idéia de um deus
universal Aten, a quem a restrição a um único país e a um único povo não mais
se aplicava. No jovem Amenófis IV, chegou ao trono um faraó que não tinha
interesse mais alto do que o desenvolvimento dessa idéia de um deus. Ele
promoveu a religião de Aten a religião estatal e, através dele, o deus universal
tornou-se o único deus: tudo o que se contava dos outros deuses era
engano e mentira. Com magnífica inflexibilidade, ele resistiu a toda tentação
ao pensamento mágico, e rejeitou a ilusão, tão cara aos egípcios,
especificamente, de uma vida após a morte. Num espantoso pressentimento de
descobertas científicas posteriores, identificou na energia da radiação solar a
fonte de toda a vida sobre a Terra e adorou-a como símbolo do poder de seu
deus. Gabava-se de sua alegria na criação e de sua vida em Ma’at (Verdade e
Justiça).
Esse é o primeiro e talvez o mais claro caso de uma
religião monoteísta na história humana; uma compreensão interna (insight)
mais profunda dos determinantes históricos e psicológicos de sua origem seria
de valor incomensurável. Entretanto, cuidou-se de que informações demasiadas
sobre a religião de Aten não chegassem até nós. Já sob os débeis sucessores de
Akhenaten tudo o que ele havia criada entrou em colapso. A vingança da classe
sacerdotal que ele havia suprimido grassou contra sua memória; a religião de
Aten foi abolida, e a cidade capital do faraó, estigmatizado como um criminoso,
foi destruída e saqueada. Por volta de 1350 a.C., a XVIII Dinastia terminou;
após um período de anarquia, a ordem foi restaurada pelo general Haremhab, que
reinou até 1315 a.C. A reforma de Akhenaten parecia ser um episódio fadado ao
esquecimento.
Até aqui, o que está estabelecido historicamente;
agora, começa nossa seqüência hipotética. Entre os que compunham o entourage
de Akhenaten havia um homem talvez chamado Tuthmosis, como muitas outras
pessoas daquela época; o nome não é de grande importância, exceto o fato de que
seu segundo componente deve ter sido ‘-mose’. Achava-se ele numa elevada
posição e era um adepto convicto da religião de Aten, mas, em contraste com o
rei meditativo, era enérgico e apaixonado. Para ele, a morte de Akhenaten e a
abolição da religião deste significaram o fim de todas as suas esperanças. Só
poderia permanecer no Egito como fora-da-lei ou como renegado. Talvez, como governador
da província da fronteira, tenha entrado em contato com uma tribo semita que
imigrara para ela algumas gerações antes. Pela necessidade de seu
desapontamento e solidão, voltou-se para esses estrangeiros e neles buscou
compensação para suas perdas. Escolheu-os como seu povo e neles tentou realizar
seus ideais. Após ter abandonado o Egito com eles, acompanhado por seus
seguidores, transformou-os em santos pelo sinal da circuncisão, forneceu-lhe
leis e introduziu-os nas doutrinas da religião de Aten, que os egípcios tinham
acabado de rejeitar. Os preceitos que esse varão Moisés deu a seus judeus podem
ter sido ainda mais severos do que os de seu senhor e mestre Akhenaten, e ele
pode também ter abandonado a dependência do deus solar de On, que Akhenaten continuara
a seguir.
Devemos tomar o período do interregno posterior a
1350 a.C. como a data do Êxodo do Egito. O intervalo de tempo que se seguiu,
até o término da ocupação da terra de Canaã, é particularmente inescrutável. A
pesquisa histórica moderna foi capaz de extrair dois fatos da obscuridade que a
narrativa bíblica deixou, ou melhor, criou, nesse ponto. O primeiro desses
fatos, descobertos por Ernst Sellin é que os judeus, que, mesmo segundo a
descrição da Bíblia, eram obstinados e indisciplinados para com seu legislador
e líder, levantaram-se contra ele um dia, mataram-no e livraram-se da religião
de Aten que lhes fora imposta, tal como os egípcios se tinham livrado dela
anteriormente. O segundo fato, demonstrado por Eduard Meyer, é que esses judeus
que tinham retornado do Egito uniram-se mais tarde com tribos estreitamente
relacionadas na região entre a Palestina, a Península de Sinai e a Arábia, e
lá, numa localidade bem regada por águas, chamada Cades, sob a influência dos
madianitas árabes, assumiram uma nova religião, a adoração do deus vulcânico
Javé. Pouco depois disso, estavam prontos para invadir Canaã como
conquistadores.
As relações cronológicas entre esses dois eventos e
entre eles e o Êxodo do Egito são muito incertas. O ponto de referência
histórico mais aproximado é fornecido por uma estela do faraó Merenptah (que
reinou até 1215 a.C.), a qual, no correr de uma descrição de campanhas na Síria
e na Palestina, nomeia ‘Israel’ entre os inimigos derrotados. Se tomarmos a
data dessa estela como um terminus ad quem, ficamos com aproximadamente
um século (desde depois de 1350 até antes de 1215 a.C.) para todo o decorrer
dos acontecimentos, começando com o Êxodo. É possível, contudo, que o nome
‘Israel’ ainda não se relacionasse às tribos cuja sorte estamos acompanhando, e
que, de fato, tenhamos um intervalo mais longo à nossa disposição. O
estabelecimento, em Canaã, do que deveria ser mais tarde o povo judeu
certamente não foi uma conquista rapidamente completada, mas realizou-se em
ondas e durante consideráveis períodos de tempo. – p. 71/72/73;
_ Sob três importantes
aspectos, o deus posterior dos judeus tornou-se, ao final, semelhante ao velho
deus mosaico. O primeiro e decisivo ponto é que ele foi verdadeiramente
reconhecido como o único deus, ao lado do qual qualquer outro deus era
impensável. O monoteísmo de Akhenaten foi levado a sério por um povo inteiro;
na verdade, esse povo apegou-se tanto a essa idéia, que ela se tornou o
principal conteúdo de sua vida intelectual e não lhe deixou interesse para
outras coisas. Sobre isso, o povo e a classe sacerdotal que se tinha tornado
dominante entre ele estavam acordes. Mas, enquanto os sacerdotes exauriam
esforços em erguer o cerimonial para a sua adoração, entraram em oposição com
intensas correntes dentro do povo, que buscavam reviver duas outras das
doutrinas de Moisés sobre seu deus. As vozes dos Profetas nunca se cansaram de
declarar que Deus desprezava o cerimonial e o sacrifício, e exigia apenas que
as pessoas acreditassem nele e levassem uma vida de verdade e justiça. E quando
louvavam a simplicidade e a santidade da vida no deserto, estavam certamente
sob a influência dos ideais mosaicos. –
p. 76;
B – O período de latência e a
tradição
_ Confessamos a crença,
portanto, de que a idéia de um deus único, bem como a rejeição do cerimonial
magicamente eficaz e a ênfase dada às exigências éticas feitas em seu nome,
foram de fato doutrinas mosaicas, às quais de início nenhuma atenção foi prestada,
mas que, após um longo intervalo ter transcorrido, entraram em operação e
acabaram por tornar-se permanentemente estabelecidas. Como explicaremos um
efeito retardado desse tipo e onde nos deparamos com um fenômeno semelhante? – p. 79;
_ Não há dificuldade em
encontrar, na vida mental de um indivíduo, uma analogia que corresponde
exatamente a esse processo. Tal seria o caso se uma pessoa aprendesse algo de
novo para ela, que, com base em certas provas, teria de reconhecer como sendo
verdadeiro, mas que contradiz alguns de seus desejos e choca algumas convicções
que lhe são preciosas. A seguir, essa pessoa hesitará, buscará razões que a
capacitem a lançar dúvidas sobre essa coisa nova, e, por algum tempo, ela
lutará consigo mesma, até que, finalmente, admitirá para si: ‘De qualquer modo,
é assim, embora não me seja fácil aceitar, embora me seja aflitivo ter de
acreditar. O que a partir disso aprendemos é simplesmente que leva tempo para a
atividade raciocinante do ego superar as objeções sustentadas por intensas
catexias afetivas. A semelhança entre esse caso e aquele que estamos nos
esforçando por compreender não é muito grande. – p. 79/80;
C – Analogia
_ A única analogia
satisfatória com o notável curso de acontecimentos que encontramos na história
da religião judaica reside num campo aparentemente remoto, mas é bastante
completa e aproxima-se da identidade. Nela, mais uma vez nos deparamos com o
fenômeno da latência, o surgimento de manifestações ininteligíveis, a exigir
uma explicação, e um acontecimento precoce, e depois esquecido, como
determinante necessário. Encontramos também a característica da compulsão, que
se impõe à mente juntamente com uma subjugação do pensamento lógico, aspecto
que, por exemplo, não entrou em consideração na gênese do poema épico.
A analogia é encontrada na psicopatologia, na
gênese das neuroses humanas, num campo, equivale a dizer, pertencente à
psicologia dos indivíduos, ao passo que os fenômenos religiosos, naturalmente,
têm de ser considerados como parte da psicologia grupal. Veremos que essa
analogia não é tão surpreendente como a princípio se poderia pensar; na
verdade, ela se assemelha mais a um postulado.
Denominanos traumas aquelas impressões, cedo
experimentadas e mais tarde esquecidas, a que concedemos tão grande importância
na etiologia das neuroses. Podemos deixar de lado a questão de saber se a
etiologia das neuroses em geral pode ser encarada como traumática. A objeção
óbvia a isso é que não é possível, em todos os casos, descobrir um trauma
manifesto na história primitiva do indivíduo neurótico. Com freqüência, devemos
resignar-nos a dizer que tudo o que temos perante nós é uma reação anormal,
fora do comum, a experiências e exigências que afetam a todos, mas são
elaboradas e tratadas por outras pessoas de uma outra maneira, que pode ser
chamada de normal. Quando não temos nada mais à nossa disposição para explicar
uma neurose, exceto disposições hereditárias e constitucionais, ficamos
naturalmente tentados a dizer que ela não foi adquirida, mas desenvolvida.
Quanto a isso, porém, dois pontos devem ser
enfatizados. Em primeiro lugar, a gênese de uma neurose invariavelmente remonta
a impressões muito primitivas da infância. – p. 85;
_ Esses três pontos – o
aparecimento bastante precoce dessas experiências (durante os cinco primeiros
anos de vida), o fato de serem esquecidas, e seu conteúdo sexual-agressivo –
estão estreitamente intervinculados. Os traumas são ou experiências sobre o
próprio corpo do indivíduo ou percepções sensórias, principalmente de algo
visto e ouvido, isto é, experiências ou impressões. A intervinculação desses
três pontos é estabelecida por uma teoria, um produto do trabalho de análise
que, apenas ele, pode provocar um conhecimento das experiências esquecidas, ou,
para expressá-lo do modo mais vivo, embora também mais incorretamente,
trazê-las de volta à memória. A teoria é que, em contraste com a opinião
popular, a vida sexual dos seres humanos (ou o que a ela corresponde mais
tarde) apresenta uma eflorescência precoce que chega ao fim por volta do quinto
ano, sendo seguida pelo que é conhecido como período de latência (até a
puberdade), em que não há desenvolvimento ulterior da sexualidade e, na verdade,
o que fora atingido experimenta uma retrogressão. – p. 87;
_ (2) Dois pontos devem ser
acentuados quanto às características ou peculiaridades comuns dos fenômenos
neuróticos: (a) Os efeitos dos traumas são de dois tipos, positivos e
negativos. Os primeiros são tentativas de pôr o trauma em funcionamento mais
uma vez, isto é, recordar a experiência esquecida ou, melhor ainda, torná-la
real, experimentar uma repetição dela de novo, ou, mesmo que ela seja apenas um
relacionamento emocional primitivo, revivê-la num relacionamento análogo com
outra pessoa. Resumimos esses esforços sob o nome de ‘fixações’ no trauma e
como uma ‘compulsão a repetir’. Eles podem ser percebidos no que passa por ser
um ego normal e, como tendências permanentes nele, podem emprestar-lhe traços
caracterológicos inalteráveis, embora, ou melhor, precisamente por causa disso,
sua verdadeira base e origem históricas estejam esquecidas. Assim, um homem que
passou a infância numa ligação excessiva e atualmente esquecida com a mãe pode
passar toda a vida procurando uma esposa de quem possa conseguir ser nutrido e
apoiado. Uma menina que foi tornada objeto de uma sedução sexual na infância
pode orientar sua vida sexual posterior de maneira a constantemente provocar
ataques semelhantes. Pode-se facilmente adivinhar que, a partir de tais
descobertas sobre o problema da neurose, podemos penetrar numa compreensão da
formação do caráter em geral.
As reações negativas seguem o objetivo oposto: que
nada dos traumas esquecidos seja recordado e repetido. Podemos resumi-las como
‘reações defensivas’. Sua expressão principal constitui aquilo que é chamado de
‘evitações’, que se podem intensificar em ‘inibições’ e ‘fobias’. Essas reações
negativas também efetuam as contribuições mais poderosas para a cunhagem do
caráter. Fundamentalmente, elas são fixações no trauma, tanto quanto seus
opostos, exceto por serem fixações com intuito contrário. Os sintomas de
neurose, no sentido mais estrito, são conciliações em que ambas as tendências
procedentes dos traumas se reúnem, de maneira que a cota, ora de uma, ora de
outra tendência, encontre nelas expressão preponderante. Essa oposição entre as
reações dá início a conflitos que, no curso comum dos acontecimentos, não
conseguem chegar a qualquer conclusão.
(b) Todos esses fenômenos, tanto os sintomas quanto
as restrições ao ego e as modificações estáveis de caráter, possuem uma
qualidade compulsiva: isso equivale a dizer que têm uma grande
intensidade psíquica e, ao mesmo tempo, apresentam uma independência de grandes
conseqüências quanto à organização dos outros processos mentais, que se ajustam
à exigências do mundo externo real e obedecem às leis do pensamento lógico.
Eles [os fenômenos patológicos] são insuficientemente ou de modo algum
influenciados pela realidade externa, não lhe concedeu atenção ou a seus
representantes psíquicos, de maneira que podem facilmente entrar em oposição
ativa a ambos. São, poder-se-ia dizer, um Estado dentro de um Estado, um
partido inacessível, com o qual a cooperação é impossível, mas que pode
alcançar êxito em dominar o que é conhecido como partido normal e forçá-lo a
seu serviço. Se isso acontecer, acarreta uma dominação, por parte de uma
realidade psíquica interna, sobre a realidade do mundo externo, e está aberto o
caminho para a psicose. Mesmo se as coisas não vão até esse ponto, a inibição
prática dessa situação dificilmente pode ser superestimada. A inibição sobre a
vida daqueles que são dominados por uma neurose e sua incapacidade de viver
constituem fator muito importante numa sociedade humana, e podemos identificar
em seu estado uma expressão direta de sua fixação numa parte primitiva de seu
passado.
E agora investiguemos a latência, que, em vista da
analogia, está fadada a nos interessar especialmente. Um trauma na infância pode
ser imediatamente seguido por um desencadeamento neurótico, uma neurose
infantil, com uma abundância de esforços de defesa, e acompanhada pela formação
de sintomas. Esta neurose pode durar um tempo considerável e provocar
perturbações acentuadas, mas pode também seguir um curso latente e não ser
notada.
– p. 88/89;
D – Aplicação
_ Trauma primitivo – defesa –
latência – desencadeamento da doença neurótica – retorno parcial reprimido: tal
é a fórmula que estabelecemos para o desenvolvimento de uma neurose. – p. 93;
_ O primeiro passo para longe
do totemismo foi a humanização do ser que era adorado. Em lugar dos animais,
aparecem deuses humanos, cuja derivação do totem não é escondida. – p. 95;
_ considerações sobre a
introdução do monoteísmo no judaísmo e no cristianismo. – p. 97/99;
_ O triunfo do cristianismo
foi um novo triunfo dos sacerdotes de Amun sobre o deus de Akhenaten, após um
intervalo de mil e quinhentos anos e num palco mais amplo. E, contudo, na
história da religião – isto é, com referência ao retorno do reprimido – o
cristianismo constituía um avanço e, a partir dessa época, a religião judaica
foi, até certo ponto, um fóssil. – p. 100;
E – Dificuldades
_ Talvez, pelo que disse,
tenha tido sucesso em estabelecer a analogia entre os processos neuróticos e os
acontecimentos religiosos e, assim, em indicar a origem insuspeitada dos
últimos. Nessa transferência da psicologia individual para a de grupo, duas dificuldades
surgem, a diferirem em natureza e importância, para as quais agora nos devemos
voltar. – p. 104;
_ A diferença entre um
processo psíquico ser consciente ou inconsciente serviu-nos como critério e
meio de orientação. O reprimido é inconsciente. Ora, simplificaria
agradavelmente as coisas se essa frase admitisse inversão, isto é, se a
diferença entre qualidades de consciente (Cs.) e inconsciente (Ics.)
coincidisse com a distinção existente entre ‘pertencente ao ego’ e ‘reprimido’.
O fato de existirem coisas isoladas e inconscientes como essas em nossa vida
mental já seria suficientemente novo e importante. Na realidade, porém, a
posição é mais complicada. É verdade que tudo que é reprimido é inconsciente,
mas não é verdade que tudo que pertença ao ego seja consciente. Constatamos que
a consciência é uma qualidade transitória, que se liga a um processo psíquico
apenas de passagem. Para nossos fins, portanto, temos de substituir
‘consciente’ por ‘capaz de ser consciente’ e chamamos essa qualidade de ‘pré-consciente’
(Pcs.). Dizemos, então, de modo mais correto, que o ego é principalmente
pré-consciente (virtualmente consciente), mas que partes do ego são
inconscientes.
O estabelecimento desse último fato nos demonstra
que as qualidades sobre as quais até aqui nos apoiamos são insuficientes para
nos orientar na obscuridade da vida psíquica. Temos de introduzir uma outra
distinção que não é mais qualitativa, mas topográfica e, o que lhe dá
valor especial, simultaneamente genética. Distinguimos, agora, em nossa
vida psíquica (que encaramos como um aparelho composto de diversas instâncias,
distritos ou províncias) uma determinada região que chamamos de ego
propriamente dito e uma outra que denominamos de id. O id é a mais
antiga das duas; o ego desenvolveu-se a partir dele, como uma camada cortical,
através da influência do mundo externo. É no id que todos os nossos instintos
primários estão em ação; todos os processos no id se realizam
inconscientemente. O ego, como já dissemos, coincide com a região do pré-consciente;
inclui partes que normalmente permanecem inconscientes. O curso dos
acontecimentos no id e sua interação mútua são governados por leis inteiramente
diferentes das que prevalecem no ego. Foi, na verdade, a descoberta dessas
diferenças que nos conduziu à nossa visão e que a justifica.
O reprimido deve ser considerado como
pertencente ao id e sujeito aos mesmos mecanismos; distingue-se dele apenas
quanto à sua gênese. A diferenciação se cumpre no mais primitivo período da
vida, enquanto o ego se está desenvolvendo a partir do id. Nessa época, uma
parte do conteúdo do id é absorvida pelo ego e elevada ao estado
pré-consciente; outra parte é afetada por esse traslado e permanece atrás, no
id, como o inconsciente propriamente dito. No curso ulterior da formação do
ego, contudo, certas impressões e processos psíquicos do ego são excluídos
[isto é, expelidos] dele através de um processo defensivo; a característica de
serem pré-conscientes é deles retirada, de modo que são mais uma vez reduzidos
a serem partes componentes do id. Aqui, então, temos o ‘reprimido’ no id. No
que concerne à relação entre as duas províncias mentais, presumimos, portanto
que, por um lado, processos inconscientes do id são levados ao nível do
pré-consciente e incorporados ao ego, e que, por outro lado, material
pré-consciente do ego pode seguir o caminho oposto e ser devolvido ao id. O
fato de posteriormente uma região especial – a do ‘superego’ – separar-se do
ego está fora de nosso interesse atual. – p. 106/108;
Parte II – Resumo e
recapitulação
_ A parte deste estudo que se
segue não pode ser entregue ao público sem extensas explicações e desculpas,
pois ela nada mais é do que uma repetição fiel (e, quase sempre, palavra por
palavra) da primeira parte [do terceiro Ensaio], abreviada em algumas de suas
indagações críticas e aumentada com acréscimos referentes ao problema de saber
como surgiu o caráter especial do povo judeu. Estou ciente de que um método de
exposição como esse é tão inconveniente quanto pouco artístico, e eu mesmo o deploro
sem reservas. Por que não o evitei? Não me é difícil descobrir a resposta para
isso, mas não é fácil confessar. Descobri-me incapaz de apagar os traços da
história da origem da obra, o que foi, de qualquer modo, fora do comum. – p. 115;
A – O povo de Israel
_ Com base em nossos debates
anteriores, podemos agora asseverar que foi o varão Moisés que imprimiu esse
traço – significante para todo o tempo – no povo judeu. Ele elevou a sua
auto-estima, assegurando-lhe ser o povo escolhido de Deus, prescreveu-lhe a santidade,ver
em [[1]],e comprometeu-o a ser separado dos outros. Não que aos outros povos
faltasse auto-estima. Tal como acontece hoje, também naqueles dias cada nação
se julgava melhor do que qualquer outra. Mas a auto-estima dos judeus recebeu
de Moisés um arrimo religioso: ela tornou-se parte de sua fé religiosa. Devido
à sua relação especialmente íntima com seu Deus, adquiriram uma parcela da
grandeza dele. E visto sabermos que por trás do Deus que escolhera os judeus e
os libertara do Egito ergue-se a figura de Moisés, que fizera precisamente isso
ostensivamente por ordem de Deus, aventuramo-nos a declarar que foi esse homem
Moisés que criou os judeus. É a ele que esse povo deve não só sua tenacidade de
vida, mas também muito da hostilidade que experimentou e ainda experimenta. –
p. 118;
B – O grande homem
_ Permitam-nos, portanto,
tomar como certo que um grande homem influencia seus semelhantes por duas
maneiras: por sua personalidade e pela idéia que ele apresenta. Essa idéia pode
acentuar alguma antiga imagem de desejo das massas, ou apontar um novo objetivo
de desejo para elas, ou lançar de algum outro modo seu encantamento sobre as
mesmas. Ocasionalmente – e esse é indubitavelmente o caso mais primário -, a
personalidade funciona por si só e a idéia desempenha papel bastante trivial.
Nem por um só momento nos achamos às escuras quanto a saber por que um grande
homem se torna um dia importante. Sabemos que na massa humana existe uma
poderosa necessidade de uma autoridade que possa ser admirada, perante quem nos
curvemos, por quem sejamos dirigidos e, talvez, até maltratados. Já aprendemos
com a psicologia dos indivíduos qual é a origem dessa necessidade das massas.
Trata-se de um anseio pelo pai que é sentido por todos, da infância em diante,
do mesmo pai a quem o herói da lenda se gaba de ter derrotado. E pode então
começar a raiar em nós que todas as características com que aparelhamos os
grandes homens são características paternas, e que a essência dos grandes
homens, pela qual em vão buscamos, reside nessa conformidade. A decisão de
pensamento, a força de vontade, a energia da ação fazem parte do retrato de um
pai – mas, acima de tudo, a autonomia e a independência do grande homem, sua
indiferença divina que pode transformar-se em crueldade. Tem-se de admirá-lo,
pode-se confiar nele, mas não se pode deixar de temê-lo, também. Deveríamos ter
sido levados a entender isso pela própria expressão: quem, senão o pai, pode
ter sido o ‘homem grande’ na infância? – p. 121/122;
C – O avanço em
intelectualidade
_ Isso pode não parecer óbvio
à primeira vista, e, antes que possa proporcionar convicção, temos de recordar
outros processos do mesmo caráter no desenvolvimento da civilização humana. O
mais antigo desses, e talvez o mais importante, está fundido à obscuridade das
eras primevas. Seus assombrosos efeitos compelem-nos a asseverar sua
ocorrência. Em nossos filhos, em adultos que são neuróticos, bem como em povos
primitivos, deparamo-nos com o fenômeno mental que descrevemos como sendo uma
crença na ‘onipotência de pensamentos’. Em nosso juízo, esse fenômeno reside numa
superestimação da influência que nossos atos mentais (nesse caso, intelectuais)
podem exercer na alteração do mundo externo. No fundo, toda a magia, precursora
de nossa tecnologia, repousa nessa premissa. Também toda a magia das palavras
encontra aqui seu lugar, e a convicção do poder ligado ao conhecimento e à
pronúncia de um nome. A ‘onipotência de pensamentos’ foi, supomos nós,
expressão do orgulho da humanidade no desenvolvimento da fala, que resultou em
tão extraordinário avanço das atividades intelectuais. Escancarou-se o novo
reino da intelectualidade, no qual idéias, lembranças e inferências se tornaram
decisivas, em contraste com a atividade psíquica inferior que tinha como seu
conteúdo as percepções diretas pelos órgãos sensórios. Esse foi, indiscutivelmente,
um dos mais importantes estádios no caminho da hominização.
Podemos muito mais facilmente apreender outro
processo, de data posterior. Sob a influência de fatores externos nos quais não
precisamos ingressar aqui e que também, em parte, são insuficientemente
conhecidos, aconteceu que a ordem social matriarcal foi sucedida pela
patriarcal, o que, naturalmente, acarretou uma revolução nas condições
jurídicas até então predominantes. Um eco dessa revolução parece ainda ser
audível na Oréstia, de Ésquilo. Mas esse afastamento da mãe para o pai
aponta, além disso, para uma vitória da intelectualidade sobre a sensualidade –
isto é, para um avanço em civilização, já que a maternidade é provada pela
evidência dos sentidos, ao passo que a paternidade é uma hipótese, baseada numa
inferência e numa premissa. Tomar partido, dessa maneira, por um processo de
pensamento, de preferência a uma percepção sensória, provou ser um passo
momentoso. – p. 125/126;
D – A renúncia ao instinto
_ Acreditamos que podemos
entender o mecanismo desse rendimento de prazer. O superego é o sucessor e o
representante dos pais (e educadores) do indivíduo, que lhe supervisionaram as
ações no primeiro período de sua vida; ele continua as funções deles quase sem
mudança. Mantém o ego num permanente estado de dependência e exerce pressão
constante sobre ele. Tal como na infância, o ego fica apreensivo em pôr em
risco o amor de seu senhor supremo; sente sua aprovação como libertação e
satisfação, e suas censuras como tormentos de consciência. Quando o ego traz ao
superego o sacrifício de uma renúncia instintual, ele espera ser recompensado
recebendo mais amor deste último. A consciência de merecer esse amor é sentida
por ele como orgulho. Na época em que a autoridade ainda não fora internalizada
como superego, poderia ter havido a mesma relação entre a ameaça de perda do
amor e as reivindicações do instinto; havia um sentimento de segurança e
satisfação quando se conseguia uma renúncia instintual por amor ao país. Mas
esse sentimento feliz só poderia assumir o peculiar caráter narcísico de
orgulho depois que a própria autoridade se tivesse tornado parte do ego. – p. 129/130;
_ A religião que começou com a
proibição de fabricar uma imagem de Deus transforma-se cada vez mais, no
decurso dos séculos, numa religião de renúncias instintuais. Não é que ela
exija abstinência sexual;
contenta-se com uma acentuada restrição da liberdade sexual. Deus, contudo,
afasta-se inteiramente da sexualidade e eleva-se para o ideal de perfeição
ética. Mas a ética é uma limitação do instinto. Os profetas nunca se cansaram
de asseverar que Deus nada exige de seu povo senão uma conduta de vida justa e
virtuosa – isto é, abstenção de toda satisfação instintual, que ainda é
condenada como impura também por nossa mortalidade atual. E mesmo a exigência
de crença nele parece ficar em segundo lugar, em comparação com a seriedade
desses requisitos éticos. Dessa maneira, a renúncia instintual parece
desempenhar um papel preeminente na religião, mesmo que não se tivesse salientado
nela desde o início. – p. 131;
E – O que é verdadeiro em
religião
_ Quão invejáveis, para
aqueles de nós que são pobres de fé, parecem ser aqueles investigadores que
estão convencidos da existência de um Ser Supremo! – p. 135;
F - O retorno do reprimido
_ há sempre uma identificação
com o pai na primeira infância. Esta é posteriormente repudiada e até mesmo
supercompensada, mas, ao final, mais uma vez se estabelece.
Há muito tempo é do conhecimento comum que as
experiências dos cinco primeiros anos de uma pessoa exercem efeito determinante
sobre sua vida, efeito que mais tarde pode enfrentar. Muita coisa que merece
ser sabida poderia ser dita sobre a maneira como essas impressões precoces se
mantêm contra quaisquer influências em períodos mais maduros da vida – mas isso
não seria pertinente aqui. Contudo, pode ser menos conhecido que a influência
compulsiva mais forte surge de impressões que incidem na criança numa época em
que teríamos de encarar seu aparelho psíquico como ainda não completamente
receptivo. O fato, em si, não pode ser posto em dúvida, mas é tão enigmático
que podemos torná-lo mais compreensível comparando-o a uma exposição
fotográfica que pode ser revelada após qualquer intervalo de tempo e
transformada num retrato. Não obstante, fico contente em indicar que essa nossa
incômoda descoberta foi antecipada por um escritor imaginativo, com a audácia
que é permitida aos poetas. E.T.A. Hoffmann costumava fazer remontar a riqueza
das figuras que se lhe punham à disposição para seus escritos criativos a
imagens e impressões mutantes que experimentara durante uma viagem de algumas
semanas, numa carruagem de correio, quando ainda era um bebê ao seio da mãe. O
que as crianças experimentaram na idade de dois anos e não compreenderam, nunca
precisa ser recordado por elas, exceto em sonhos; elas só podem vir a saber
disso através do tratamento psicanalítico. Em alguma época posterior,
entretanto, isso irromperá em sua vida com impulsos obsessivos, governará suas
ações, decidirá de suas simpatias e antipatias e, com muita freqüência,
determinará sua escolha de um objeto amoroso, para a qual quase sempre é
impossível encontrar uma base racional. Não podemos enganar-nos sobre os dois
pontos em que esses fatos fazem aflorar nosso problema.
Em primeiro lugar, há a distância do período em
apreço, que é reconhecido aqui como o verdadeiro determinante – no estado
especial da lembrança que, por exemplo, no caso dessas experiências infantis,
classificamos de ‘inconsciente’. Esperamos encontrar nisso uma analogia com o
estado que estamos procurando atribuir à tradição na vida mental do povo. Não
foi fácil, com efeito, introduzir a idéia do inconsciente na psicologia de
grupo.
[Em segundo lugar], contribuições regulares são
feitas aos fenômenos de que estamos à procura pelos mecanismos que levam à
formação das neuroses. Aqui, mais uma vez, os acontecimentos determinantes
ocorrem nas primeiras épocas infantis; só que o acento não se coloca sobre o tempo
mas sobre os processos pelos quais o acontecimento é enfrentado, pela reação a
ele. Esquematicamente, podemos descrevê-lo da seguinte maneira. Em resultado da
experiência, surge uma experiência instintual que reclama satisfação. O ego
recusa essa satisfação, seja porque está paralisado pela magnitude da
exigência, seja porque a reconhece como um perigo. O primeiro desses
fundamentos é o mais primário; ambos equivalem à evitação de uma situação de
perigo. O ego desvia o perigo pelo processo da repressão. O impulso instintual
é, de alguma maneira, inibido, e esquecida sua causa precipitante, com suas
percepções e idéias concomitantes. Isso, contudo, não constitui o fim do
processo: o instinto ou reteve suas forças ou as reúne novamente ou é
redespertado por alguma nova causa precipitante. Logo após, ele renova sua
exigência, e, como o caminho à satisfação normal lhe permanece fechado pelo que
podemos chamar de cicatriz da repressão, alhures, em algum ponto fraco, ele
abre para si outro caminho ao que é conhecido como satisfação substitutiva, que
vem à luz como sintoma, sem a aquiescência do ego, mas também sem sua
compreensão. Todos os fenômenos da formação de sintomas podem ser justamente
descritos como o ‘retorno do reprimido’. Sua característica distintiva, contudo,
é a deformação, de grandes conseqüências, a qual o material que retorna foi
submetido, quando comparado com o original. Pensar-se-á talvez que esse último
grupo de fatos nos levou para muito longe da semelhança com a tradição, mas não
devemos lamentar se nos trouxe para mais perto dos problemas da renúncia ao
instinto. – p. 137/139;
G – Verdade histórica
_ Aprendemos das psicanálises
de indivíduos que suas impressões mais primitivas, recebidas numa época em que
a criança mal era capaz de falar, produzem, numa ou noutra ocasião efeitos de
um caráter compulsivo, sem serem, elas próprias, conscientemente recordadas.
Acreditamos que temos o direito de fazer a mesma presunção sobre as
experiências mais primitivas da totalidade da humanidade. Um desses efeitos
seria o surgimento da idéia de um único e grande deus – idéia que deve ser
reconhecida como uma lembrança que foi deformada. Uma idéia como essa possui um
caráter compulsivo: ela deve ser
acreditada. Até o ponto em que é deformada, ela pode ser descrita como um delírio; na medida em que
traz um retorno do passado, deve ser chamada de verdade. Também os delírios psiquiátricos
contêm um pequeno fragmento de verdade e a convicção do paciente estende-se
dessa verdade para seus invólucros delirantes. – p. 142;
H – O desenvolvimento
histórico
_ E, impulsionados pela
necessidade de satisfazer esse sentimento de culpa, que era insaciável e
provinha de fontes muito mais profundas, tinham de fazer com que esses
mandamentos se tornassem ainda mais estritos, mais meticulosos e, até mesmo
mais triviais. Num novo arroubo de ascetismo moral, impuseram-se mais e mais
novas renúncias instintuais e por essa maneira atingiram – em doutrina e
preceito, pelo menos – alturas éticas que permaneceram inacessíveis aos outros povos
da Antiguidade. Muitos judeus consideram essa consecução de alturas éticas como
a segunda característica principal e a segunda grande realização de sua
religião. A maneira pela qual ela está vinculada à primeira – a idéia de um
deus único – deveria ficar clara a partir de nossas considerações. Essas idéias
éticas não podem, contudo, renegar sua origem a partir do sentimento de culpa
sentido por causa de uma hostilidade recalcada para com Deus. Elas possuem a
característica – incompleta e incapaz de conclusão – de formações reativas
neuróticas obsessivas; podemos adivinhar também que servem aos propósitos
secretos de punição. – p. 146;
_ O cristianismo, tendo
surgido de uma religião paterna, tornou-se uma religião filial. Não escapou ao
destino de ter de livrar-se do pai. – p. 148;
Esboço de psicanálise
(1940[1938])
Prefácio
_ O objetivo deste trabalho
breve é reunir os princípios da Psicanálise e enunciá-los, por assim dizer,
dogmaticamente, sob a forma mais concisa e nos termos mais inequívocos. Sua
intenção, naturalmente, não é compelir à crença ou despertar convicção. – p. 155;
Parte I – A mente e seu
funcionamento
Capítulo I – O aparelho
psíquico
_ Chegamos ao nosso
conhecimento deste aparelho psíquico pelo estudo do desenvolvimento individual
dos seres humanos. À mais antiga destas localidades ou áreas de ação psíquica
damos o nome de id. Ele contém tudo o que é herdado, que se acha
presente no nascimento, que está assente na constituição – acima de tudo,
portanto, os instintos, que se originam da organização somática e que aqui [no
id] encontram uma primeira expressão psíquica, sob formas que nos são
desconhecidas.
Sob a influência do mundo externo que nos cerca,
uma porção do id sofreu um desenvolvimento especial. Do que era
originalmente uma camada cortical, equipada com órgãos para receber estímulos e
com disposições para agir como um escudo protetor contra estímulos, surgiu uma
organização especial que, desde então, atua como intermediária entre o id
e o mundo externo. A esta região de nossa mente demos o nome de ego.
São estas as principais características do ego: em
conseqüência da conexão preestabelecida entre a percepção sensorial e a ação
muscular, o ego tem sob seu comando o movimento voluntário. Ele tem a tarefa de
autopreservação. Com referência aos acontecimentos externos, desempenha
essa missão dando-se conta dos estímulos, armazenando experiências sobre eles
(na memória), evitando estímulos excessivamente intensos (mediante a fuga),
lidando com os estímulos moderados (através da adaptação) e, finalmente, aprendendo
a produzir modificações convenientes no mundo externo, em seu próprio benefício
(através da atividade). Com referência aos acontecimentos internos, em
relação ao id, ele desempenha essa missão obtendo controle sobre as exigências
dos instintos, decidindo se elas devem ou não ser satisfeitas, adiando essa
satisfação para ocasiões e circunstâncias favoráveis no mundo externo ou
suprimindo inteiramente as suas excitações. É dirigido, em sua atividade, pela
consideração das tensões produzidas pelos estímulos, estejam essas tensões nele
presentes ou sejam nele introduzidas. A elevação dessas tensões é, em geral,
sentida como desprazer, e o seu abaixamento, como prazer. É provável,
contudo, que aquilo que é sentido como prazer ou desprazer não seja a altura absoluta
dessa tensão, mas sim algo no ritmo das suas modificações. O ego se esforça
pelo prazer e busca evitar o desprazer. Um aumento de desprazer esperado e
previsto é enfrentado por um sinal de ansiedade; a ocasião de tal
aumento, quer ele ameace de fora ou de dentro, é conhecida como um perigo.
De tempos em tempos, o ego abandona sua conexão com um mundo externo e se
retira para o estado de sono, no qual efetua alterações de grande alcance em
sua organização. É de inferir-se do estado de sono que essa organização
consiste numa distribuição específica de energia mental.
O longo período da infância, durante o qual o ser
humano em crescimento vive na dependência dos pais, deixa atrás de si, como um
precipitado, a formação, no ego, de um agente especial no qual se prolonga a
influência parental. Ele recebeu o nome de superego. Na medida em que
este superego se diferencia do ego ou se lhe opõe, constitui uma terceira força
que o ego tem de levar em conta.
Uma ação por parte do ego é como deve ser se ela
satisfaz simultaneamente as exigências do id, do superego e da realidade – o
que equivale a dizer: se é capaz de conciliar as suas exigências umas com as
outras. Os pormenores da relação entre o ego e o superego tornam-se
completamente inteligíveis quando são remontados à atitude da criança para com
os pais. Esta influência parental, naturalmente, inclui em sua operação não
somente a personalidade dos próprios pais, mas também a família, as tradições
raciais e nacionais por eles transmitidas, bem como as exigências do milieu social
imediato que representam. Da mesma maneira, o superego, ao longo do
desenvolvimento de um indivíduo, recebe contribuições de sucessores e
substitutos posteriores aos pais, tais como professores e modelos, na vida
pública, de ideais sociais admirados. Observar-se-á que, com toda a sua
diferença fundamental, o id e o superego possuem algo comum: ambos representam
as influências do passado – o id, a influência da hereditariedade; o superego,
a influência, essencialmente, do que é retirado de outras pessoas, enquanto o
ego é principalmente determinado pela própria experiência do indivíduo, isto é,
por eventos acidentais e contemporâneos.
Pode-se supor que este quadro esquemático geral de
um aparelho psíquico aplique-se também aos animais superiores que se assemelham
mentalmente ao homem. Temos de presumir que um superego se acha presente onde
quer que, como é o caso do homem, exista um longo período de dependência na
infância. Uma distinção entre o ego e id é uma suposição inevitável. A Psicologia
Animal ainda não tomou a seu cargo o interessante problema que é aqui
apresentado. – p. 156/157;
Capítulo II – A teoria dos
Instintos
_ O poder do id expressa o
verdadeiro propósito da vida do organismo do indivíduo. Isto consiste na
satisfação de suas necessidades inatas. Nenhum intuito tal como o de manter-se
vivo ou de proteger-se dos perigos por meio da ansiedade pode ser atribuído ao
id. Essa é a tarefa do ego, cuja missão é também descobrir o método mais
favorável e menos perigoso de obter a satisfação, levando em conta o mundo
externo. O superego pode colocar novas necessidades em evidência, mas sua
função principal permanece sendo a limitação das satisfações. – p. 159;
Capítulo III – O
desenvolvimento da função sexual
_ Bem se pode acreditar que a
Psicanálise tenha provocado espanto e oposição quando, em parte com base nesses
fatos negligenciados, contradisse todas as opiniões populares sobre a
sexualidade. Os seus principais achados são os seguintes:
(a) A vida sexual não começa apenas na puberdade,
mas inicia-se, com manifestações claras, logo após o nascimento.
(b) É necessário fazer uma distinção nítida entre
os conceitos de “sexual” e “genital”. O primeiro é o conceito mais amplo e
inclui muitas atividades que nada têm que ver com os órgãos genitais.
(c) A vida sexual inclui a função de obter prazer
das zonas do corpo, função que, subseqüentemente, é colocada a serviço da
reprodução. As duas funções muitas vezes falham em coincidir completamente. – p.
163;
_ Seria um erro supor que
essas três fases se sucedem de forma clara. Uma pode aparecer em aditamento a
outra; podem sobrepor-se e podem estar presentes lado a lado. Nas primeiras
fases, os diferentes componentes dos instintos empenham-se na busca de prazer
independente uns dos outros; na fase fálica, há os primórdios de uma
organização que subordina os outros impulsos à primazia dos órgãos genitais e
determina o começo de uma coordenação do impulso geral em direção ao prazer na
função sexual. A organização completa só se conclui na puberdade, numa quarta
fase, a genital. Estabelece-se então um estado de coisas em que (1) algumas
catexias libidinais primitivas são retidas, (2) outras são incorporadas à
função sexual como atos auxiliares, preparatórios, cuja satisfação produz o que
é conhecido como pré-prazer, e (3) outros impulsos são excluídos da
organização, e são ou suprimidos inteiramente (reprimidos) ou empregados no ego
de outra maneira, formando traços de caráter ou experimentando a sublimação,
com deslocamento de seus objetivos.
Este processo nem sempre é realizado de modo
perfeito. As inibições em seu desenvolvimento manifestam-se como os muitos
tipos de distúrbio da vida sexual. Quando é assim, encontramos fixações da
libido a condições de fases anteriores, cujo impulso, que é independente do
objetivo sexual normal, é descrito como perversão. Uma dessas inibições
do desenvolvimento é, por exemplo, a homossexualidade, quando ela é manifesta.
A análise mostra que em todos os casos um vínculo objetal de caráter
homossexual esteve presente e, na maioria dos casos, persistiu em estado latente.
A situação complica-se porque, via de regra, os processos necessários a um
desfecho normal não se acham completamente presentes ou ausentes, mas parcialmente
presentes, de maneira que o resultado final fica dependente dessas relações quantitativas.
Nessas circunstâncias, a organização genital é, na verdade, obtida, mas
faltam-lhe aquelas porções da libido que não avançaram com o resto e
permaneceram fixadas em objetos e metas pré-genitais. Este enfraquecimento
revela-se numa tendência, se há ausência de satisfação genital ou se existem
dificuldades no mundo externo real, de a libido retornar a suas catexias
pré-genitais anteriores (regressão).
Durante o estudo das funções sexuais, chegamos a
uma certeza preliminar, ou melhor, a uma suspeita, de duas descobertas que logo
mais se verá serem de importância para todo o nosso campo. Em primeiro lugar,
as manifestações normais e anormais por nós observadas (isto é, fenomenologia
do assunto) necessitam ser descritas do ponto de vista de sua dinâmica e
economia (em nosso caso, do ponto de vista da distribuição quantitativa da
libido). E, em segundo, a etiologia dos distúrbios que estudamos deve ser
procurada na história do desenvolvimento do indivíduo – ou seja, no começo de
sua vida. – p. 166/167;
Capítulo IV – Qualidades
psíquicas
_ considerações sobre o
consciente, pré-conscientes e inconscientes. –
p. 169/173;
_ A única qualidade
predominante no id é a de ser inconsciente. Id e inconsciente acham-se tão
intimamente ligados quanto ego e pré-consciente; na verdade, no primeiro caso,
a vinculação é ainda mais exclusiva. Se voltarmos o olhar para a história do
desenvolvimento de um indivíduo e de seu aparelho psíquico, poderemos perceber
uma distinção importante no id. Originalmente, com efeito, tudo era id; o ego
desenvolveu-se a partir dele, através da influência contínua do mundo externo.
No decurso desse lento desenvolvimento, alguns dos conteúdos do id foram
transformados no estado pré-consciente e assim incorporados ao ego; outros de
seus conteúdos permaneceram no id, imutáveis, como o seu núcleo dificilmente
acessível. Durante esse desenvolvimento, entretanto, o jovem e débil ego
devolveu ao estado inconsciente algo do material que havia incorporado,
abandonou-o, e comportou-se da mesma maneira em relação a algumas novas
impressões que poderia ter
incorporado, de modo que estas, havendo sido rejeitadas, só podiam deixar um
vestígio no id. Em consideração à sua origem, falamos desta última parte do id
como o reprimido.
Pouco importa que não possamos sempre traçar uma linha nítida entre essas duas
categorias de conteúdos do id. Elas coincidem aproximadamente com a distinção
entre o que se achava originalmente presente, inato, e o que foi adquirido ao
longo do desenvolvimento do ego. – p. 174/175;
_ Parecemos reconhecer que a
energia nervosa ou psíquica ocorre de duas formas, uma livremente móvel, e
outra, em comparação, presa; falamos de catexias e hipercatexias do material
psíquico, e até mesmo aventuramo-nos a supor que uma hipercatexia ocasiona uma
espécie de síntese de processos diferentes – uma síntese no curso da qual a
energia livre é transformada em energia presa. Mais longe que isto, ainda não
avançamos. De qualquer modo, atemo-nos firmemente à opinião de que a distinção
entre o estado inconsciente e o pré-consciente reside em relações dinâmicas
desse tipo, que explicariam como é que, espontaneamente ou com a nossa
assistência, um pode se transformar no outro.
Por trás de todas essas incertezas, contudo, reside
um fato novo, cuja descoberta devemos à pesquisa psicanalítica. Descobrimos que
os processos no inconsciente ou no id obedecem a leis diferentes daqueles do
ego pré-consciente. Denominamos essas leis, em sua totalidade, de processo
primário, em contraste com o processo secundário, que dirige o curso
das ocorrências no pré-consciente, no ego. No cômputo geral, portanto, o estudo
das qualidades psíquicas provou, afinal de contas, não ser infrutífero. – p. 175;
Capítulo V – A interpretação
de sonho como ilustração
_ O estudo da elaboração
onírica nos ensinou muitas outras características dos processos do inconsciente
que são tão notáveis quanto importantes, mas só devemos mencionar aqui algumas
delas. As regras que regem a lógica não têm peso no inconsciente; ele poderia
ser chamado de Reino do Ilógico. Impulsos com objetivos contrários coexistem
lado a lado no inconsciente, sem que surja qualquer necessidade de acordo entre
eles. Ou não têm nenhuma influência um sobre o outro, ou, se têm, nenhuma
decisão é tomada, mas acontece um acordo que é absurdo, visto envolver detalhes
mutuamente incompatíveis. A isso está ligado o fato de que os contrários não
são mantidos separados, mas tratados como se fossem idênticos, de maneira que,
no sonho manifesto, qualquer elemento pode também possuir o significado do seu
oposto. Certos filólogos descobriram que o mesmo é válido nas línguas mais
antigas e que contrários tais como “forte-fraco”, “claro-escuro” e
“alto-profundo” foram originalmente expressos pelas mesmas raízes, até que duas
modificações diferentes da palavra primitiva estabeleceram a distinção entre os
dois significados. Resíduos desse duplo significado original parecem ter
sobrevivido mesmo numa língua altamente desenvolvida como o latim, no uso de
palavras como “altus”
(“alto” e “profundo”) e “sacer”
(“sagrado” e “infame”). –
p. 180/181;
_ Encerrarei estas
considerações com um comentário que justificará o tempo que concedi ao problema
da interpretação de sonhos. A experiência mostrou que os mecanismos
inconscientes que viemos a conhecer através do estudo da elaboração onírica e
que nos forneceram a explicação da formação dos sonhos também nos auxiliam a
entender os enigmáticos sintomas que atraem nosso interesse para neuroses e
psicoses. Uma semelhança dessa espécie não pode deixar de despertar grandes
esperanças em nós. – p. 183;
Parte II – O trabalho prático
Capítulo VI – A técnica da
psicanálise
_ Um sonho, então, é uma
psicose, com todos os absurdos, delírios e ilusões de uma psicose. Uma psicose
de curta duração sem dúvida, inofensiva, até mesmo dotada de uma função útil,
introduzida com o consentimento do indivíduo e concluída por um ato de sua vontade.
Ainda assim é uma psicose e com ela aprendemos que mesmo uma alteração da vida
mental tão profunda como essa pode ser desfeita e dar lugar à função normal.
Será então uma ousadia muito grande pretender que também deve ser possível
submeter as temidas doenças espontâneas da vida mental à nossa influência e
promover a sua cura?
Já conhecemos certo número de coisas preliminares a
esse empreendimento. De acordo com nossa hipótese, é função do ego enfrentar as
exigências levantadas por suas três relações de dependência – da realidade, do
id e do superego – e não obstante, ao mesmo tempo, preservar a sua própria
organização e manter a sua própria autonomia. – p. 185;
_ Nosso plano de cura
baseia-se nessas descobertas. O ego acha-se enfraquecido pelo conflito interno
e temos de ir em seu auxílio. A posição é semelhante à de uma guerra civil que
tem de ser decidida pela assistência de um aliado vindo de fora. O médico
analista e o ego enfraquecido do paciente, baseando-se no mundo externo real,
têm de reunir-se num partido contra os inimigos, as exigências instintivas do
id e as exigências conscienciosas do superego. Fazemos um pacto um com o outro.
O ego enfermo nos promete a mais completa sinceridade – isto é, promete colocar
à nossa disposição todo o material que a sua autopercepção lhe fornece;
garantimos ao paciente a mais estrita discrição e colocamos a seu serviço a
nossa experiência em interpretar material influenciado pelo inconsciente. Nosso
conhecimento destina-se a compensar a ignorância do paciente e a devolver a seu
ego o domínio sobre regiões perdidas de sua vida mental. Esse pacto constitui a
situação analítica. – p. 185/186;
_ Com os neuróticos, então,
fazemos nosso pacto: sinceridade completa de um lado e discrição absoluta do
outro. Isso soa como se estivéssemos apenas visando ao posto de um padre
confessor. Mas há uma grande diferença, porque o que desejamos ouvir de nosso
paciente não é apenas o que sabe e esconde de outras pessoas; ele deve
dizer-nos também o que não
sabe. Com este fim em vista, fornecemos-lhe uma definição mais detalhada do que
queremos dizer com sinceridade. Fazemo-lo comprometer-se a obedecer à regra fundamental da
análise, que dali em diante deverá dirigir o seu comportamento para conosco.
Deve dizer-nos não apenas o que pode dizer intencionalmente e de boa vontade,
coisa que lhe proporcionará um alívio semelhante ao de uma confissão, mas
também tudo o mais que a sua auto-observação lhe fornece, tudo o que lhe vem à
cabeça, mesmo que lhe seja desagradável
dizê-lo, mesmo que lhe pareça sem
importância ou realmente absurdo. Se, depois dessa injunção,
conseguir pôr sua autocrítica fora de ação, nos apresentará uma massa de
material – pensamentos, idéias, lembranças – que já estão sujeitos à influência
do inconsciente, que, muitas vezes, são seus derivados diretos, e que assim nos
colocam em condição de conjeturar sobre o material inconsciente reprimido do
paciente e de ampliar, através das informações que lhe fornecemos, o
conhecimento do ego a respeito do inconsciente. – p. 186/187;
_ E, agora, o outro lado da
situação. Uma vez que a transferência reproduz a relação do paciente com seus
pais, ela assume também a ambivalência dessa relação. – p. 188;
_ O método pelo qual
fortalecemos o ego enfraquecido tem como ponto de partida uma ampliação do
autoconhecimento. Isso, naturalmente, não é toda a história, mas apenas seu
primeiro passo. – p. 189;
_ A superação das resistências
é a parte de nosso trabalho que exige mais tempo e maior esforço. – p. 191;
_ Não ficaremos desapontados,
mas, pelo contrário, acharemos perfeitamente inteligível, se chegarmos à
conclusão de que o desfecho final da luta em que nos empenhamos depende de
relações quantitativas
da cota de energia que podemos mobilizar no paciente, em nosso favor, comparada
à soma de energia das forças que trabalham contra nós. Aqui, mais uma vez, Deus
acha-se do lado dos grandes batalhões. É verdade que nem sempre conseguimos
ganhar, mas, pelo menos, podemos geralmente identificar por que foi que não
vencemos. Aqueles que estiverem acompanhando a nossa exposição apenas por
interesse terapêutico provavelmente se afastarão com desprezo, após esta
admissão. Aqui, porém, estamos interessados na terapia apenas na medida em que
ela funciona através de meios psicológicos e, por enquanto, não possuímos
outra. O futuro pode ensinar-nos a exercer influência direta, através de
substâncias químicas específicas, nas quantidades de energia e na sua
distribuição no aparelho mental. Pode ser que existam outras possibilidades
ainda não imaginadas de terapia. De momento, porém, nada temos de melhor à
nossa disposição do que a técnica da psicanálise, e, por essa razão, apesar de
suas limitações, ela não deve ser menosprezada. – p. 194;
Capítulo VII – Um exemplo de
trabalho psicanalítico
_ Chegamos a uma familiaridade
geral com o aparelho psíquico, com as partes, órgãos e áreas de ação de que se
compõe, com as forças que nele operam e com as funções atribuídas às partes. As
neuroses e as psicoses são os estados em que se manifestam distúrbios no funcionamento
do aparelho. Escolhemos as neuroses como assunto de nosso estudo porque somente
elas parecem acessíveis aos métodos psicológicos de nossa intervenção. Enquanto
estamos tentando influenciá-las, coligimos observações que nos proporcionam um
quadro de sua origem e da maneira como elas surgem.
Enunciarei antecipadamente um de nossos principais
achados, antes de prosseguir com minha descrição. As neuroses (diferentemente
das moléstias infecciosas, por exemplo) não possuem determinantes específicos.
Seria ocioso buscar nelas excitantes patogênicos. Elas se transformam
gradualmente, através de fáceis transições, no que é descrito como normal, e,
por outro lado, dificilmente existe qualquer estado reconhecido como normal em
que indicações de traços neuróticos não possam ser apontadas. Os neuróticos possuem
aproximadamente as mesmas disposições inatas que as outras pessoas, têm as
mesmas experiências e as mesmas tarefas a desempenhar. Por que é, então, que
vivem de modo tão pior e com tão grande dificuldade, e, no processo, padecem de
mais sentimentos de desprazer, ansiedade e sofrimento?
Não precisamos embaraçar-nos para encontrar uma
resposta a esta pergunta. O que deve ser tido como responsável pela inadequação
e sofrimentos dos neuróticos são desarmonias quantitativas. A causa
determinante de todas as formas assumidas pela vida mental humana deve, na
verdade, ser buscada na ação recíproca entre as disposições inatas e as
experiências acidentais. Ora, um determinado instinto pode ser inatamente forte
ou fraco demais, ou uma determinada capacidade pode ser sustada ou desenvolvida
de modo insuficiente na vida. Por outro lado, as impressões e experiências
externas podem fazer exigências de intensidade diferente a pessoas diferentes e
aquilo que é passível de ser manejado pela constituição de uma pessoa pode ser
uma tarefa impossível para a de outra. Essas diferenças quantitativas
determinarão a variedade dos resultados. – p. 195;
_ Podemos falar com um bom
grau de certeza sobre o papel desempenhado pelo período da vida. Parece que as
neuroses são adquiridas somente na tenra infância (até a idade de seis anos),
ainda que seus sintomas possam não aparecer até muito mais tarde. A neurose da
infância pode tornar-se manifesta por um curto tempo ou pode mesmo nem ser
notada. Em todo caso, a doença neurótica posterior se liga ao prelúdio na
infância. É possível que aquelas que são conhecidas como neuroses traumáticas
(devido a um susto excessivo ou graves choques somáticos, tais como desastres
ferroviários, soterramentos, etc.) constituem exceção a isto; suas relações com
determinantes na infância até aqui fugiram à investigação. Não há dificuldade
em explicar esta preferência etiológica pelo primeiro período da infância. As
neuroses são, como sabemos, distúrbios do ego e não é de admirar que o ego,
enquanto é débil, imaturo e incapaz de resistência, fracasse em lidar com
tarefas que, posteriormente, seria capaz de enfrentar com a máxima facilidade.
Nessas circunstâncias, exigências instintivas provenientes do interior, não
menos que excitações oriundas do mundo externo, operam como “traumas”,
particularmente se certas disposições inatas as vão encontrar a meio caminho. O
ego desamparado defende-se delas por meio de tentativas de fuga (repressões), que
posteriormente se mostram ineficazes e que envolvem restrições permanentes ao
futuro desenvolvimento. O dano infligido ao ego por suas primeiras experiências
dá-nos a impressão de ser desproporcionadamente grande, mas podemos fazer uma
analogia com as diferenças dos resultados produzidos pela picada de uma agulha
numa massa de células no ato da divisão celular (como nas experiências de Roux)
e no animal crescido que se desenvolveu a partir delas. Nenhum indivíduo humano
é poupado de tais experiências traumáticas; nenhum escapa às repressões a que
elas dão origem. Essas reações discutíveis por parte do ego podem talvez ser
indispensáveis para a consecução de outro objetivo que é estabelecido para o
mesmo período da vida: no espaço de poucos anos, a pequena criatura primitiva
deve transformar-se num ser humano civilizado; ela tem de atravessar um período
imensamente longo de desenvolvimento cultural humano de uma forma abreviada de
maneira quase misteriosa. Isso se torna possível pela disposição hereditária,
mas quase nunca pode ser conseguido sem o auxílio adicional da educação, da
influência parental, que, como precursora do superego, restringe a atividade do
ego mediante proibições e punições, e incentiva ou força o estabelecimento de
repressões. Não devemos, portanto, esquecer de incluir a influência da
civilização entre os determinantes da neurose. É fácil, como podemos ver, a um
bárbaro ser sadio; para um homem civilizado, a tarefa é árdua. O desejo de um
ego poderoso e desinibido pode parecer-nos inteligível, mas, tal como nos é
ensinado pelos tempos em que vivemos, ele é, no sentido mais profundo, hostil à
civilização. E visto que as exigências da civilização são representadas pela
educação familiar, não devemos esquecer o papel desempenhado por essa
característica biológica da espécie humana – o prolongado período de sua
dependência infantil – na etiologia das neuroses. – p. 196/197;
_ Os sintomas das neuroses,
poder-se-ia dizer, são, sem exceção, ou uma satisfação substitutiva de algum
impulso sexual ou medidas para impedir tal satisfação, e, via de regra, são
conciliações entre as duas, do tipo que ocorre em consonância com as leis que
operam entre contrários, no inconsciente. – p. 197;
_ A experiência analítica
convenceu-nos da completa verdade da afirmação, ouvida com tanta freqüência, de
que a criança psicologicamente é pai do adulto e de que os acontecimentos de
seus primeiros anos são de importância suprema em toda a sua vida posterior.
Terá, assim, interesse especial para nós algo que possa ser descrito como a
experiência central deste período da infância. Nossa atenção é atraída primeiro
pelos efeitos de certas influências que não se aplicam a todas as crianças,
embora sejam bastante comuns – tais como o abuso sexual de crianças por
adultos, sua sedução por outras crianças (irmãos ou irmãs) ligeiramente mais
velhas que elas e, o que não esperaríamos, ficarem elas profundamente excitadas
por ver ou ouvir, em primeira mão, um comportamento sexual entre adultos (seus
pais), principalmente numa época em que não se pensaria que pudessem
interessar-se por tais impressões ou compreendê-las, ou serem capazes de
recordá-las mais tarde. É fácil confirmar até onde essas experiências despertam
a suscetibilidade de uma criança e forçam os seus próprios impulsos sexuais
para certos canais dos quais depois não se podem safar. Visto essas impressões
estarem sujeitas à repressão, seja em seguida, seja logo que buscam retornar
como lembranças, constituem elas o determinante para a compulsão neurótica que
depois tornará impossível ao ego controlar a função sexual e provavelmente o
fará voltar as costas permanentemente a essa função. Se ocorre esta última
reação, o resultado será uma neurose; se não ocorre, desenvolver-se-á uma
variedade de perversões, ou a função, que é de importância imensa não apenas
para a reprodução, mas também para toda a modelação da vida, tornar-se-á
impossível de manejar. – p. 198/199;
_ Aventuro-me a dizer que, se
a Psicanálise não pudesse gabar-se de mais nenhuma realização além da
descoberta do complexo de Édipo reprimido, só isso já lhe daria direito a ser
incluída entre as preciosas nova aquisições da humanidade. – p. 204;
_ Se perguntarmos a um
analista o que a sua experiência demonstrou serem as estruturas mentais menos
acessíveis à influência em seus pacientes, a resposta será: numa mulher, o
desejo de um pênis; num homem, a atitude feminina para com o seu próprio sexo,
cuja pré-condição, naturalmente, seria a perda do pênis. – p. 205;
Parte III – O rendimento
teórico
Capítulo VIII – O aparelho
psíquico e o mundo externo
_ Repetidamente tivemos de
insistir no fato de que o ego deve a sua origem, bem como a mais importante de
suas características adquiridas, à sua relação com o mundo externo real.
Estamos assim preparados para presumir que os estados patológicos do ego, nos
quais ele mais se aproxima novamente do id, fundamentam-se numa cessação ou num
afrouxamento dessa relação com o mundo externo. Isto harmoniza-se muito bem com
o que aprendemos da experiência clínica – a saber, que a causa precipitadora da
irrupção de uma psicose é ou que a realidade tornou-se insuportavelmente penosa
ou que os instintos se tornaram extraordinariamente intensificados – ambas as
quais, em vista das reivindicações rivais feitas ao ego pelo id e pelo mundo
externo, devem conduzir ao mesmo resultado. O problema das psicoses seria
simples e claro se o desligamento do ego em relação à realidade pudesse ser
levado a cabo completamente. Mas isso parece só acontecer raramente ou, talvez,
nunca. – p. 213;
_ Seja o que for que o ego
faça em seus esforços de defesa, procure ele negar uma parte do mundo externo
real ou busque rejeitar uma exigência instintiva oriunda do mundo interno, o
seu sucesso nunca é completo e irrestrito. O resultado sempre reside em duas
atitudes contrárias, das quais a derrotada, a mais fraca, não menos que a
outra, conduz a complicações psíquicas. Para concluir, é necessário apenas
apontar quão pouco de todos estes processos se torna conhecido de nós através
de nossa percepção consciente. – p. 216;
Capítulo IX – O mundo interno
_ O superego é, na verdade,
herdeiro do complexo de Édipo e só se estabelece após a pessoa haver-se
libertado desse complexo. Por essa razão, a sua excessiva severidade não segue
um modelo real, mas corresponde à força da defesa utilizada contra a tentação
do complexo de Édipo. Fora de dúvida, uma certa suspeita desse estado de coisas
reside, no fundo, na afirmação feita pelos filósofos e crentes de que o senso
moral não é instalado nos homens pela educação ou por eles adquirido na vida
social, mas lhes é implantado de uma fonte mais alta. – p. 217;
_ Aqueles que têm gosto por
generalizações e distinções nítidas podem dizer que o mundo externo, no qual o
indivíduo se descobre exposto, após desligar-se dos pais, representa o poder do
presente; que o id, com suas tendências herdadas, representa o passado
orgânico, e que o superego, que vem a juntar-se a eles posteriormente,
representa, mais do que qualquer outra coisa, o passado cultural, que uma
criança tem por assim dizer, de repetir como pós-experiência durante os poucos
anos do início de sua vida. É pouco provável que essas generalizações possam
ser universalmente corretas. – p. 218;
_ Assim, o superego assume uma
espécie de posição intermediária entre o id e o mundo externo; ele une em si as
influências do presente e do passado. No estabelecimento do superego, temos
diante de nós, por assim dizer, um exemplo da maneira como o presente se
transforma no passado (…) – p. 219;
Análise terminável e
interminável (1937)
Nota do editor inglês
_ comentários sobre as
limitações da psicanálise e do fato de Freud ter dito que nunca fora um
terapeuta entusiasta. – p. 223/224;
I
_ A experiência nos ensinou
que a terapia psicanalítica – a libertação de alguém de seus sintomas, inibições
e anormalidades de caráter neuróticas – é um assunto que consome tempo. Daí,
desde o começo, tentativas terem sido feitas para encurtar a duração das
análises. Tais esforços não exigiam justificação; podiam alegar que se baseavam
nas mais fortes considerações de razão e conveniência. Provavelmente, porém,
havia também em ação neles algum traço do desprezo impaciente com que a ciência
médica de dias anteriores encarava as neuroses como conseqüências importunas de
danos invisíveis. Se agora se tornou necessário atendê-las, deveríamos, pelo
menos, livrar-nos delas tão rapidamente quanto possível.
Uma tentativa particularmente enérgica nesse
sentido foi efetuada por Otto Rank, secundando seu livro O Trauma do
Nascimento (1924). Supôs ele que a verdadeira fonte da neurose era o ato do
nascimento, uma vez que este envolvia a possibilidade de a ‘fixação primeva’ de
uma criança à mãe não ser superada, mas persistir como ‘repressão primeva’.
Rank tinha esperança de que, se lidássemos com esse trauma primevo através de
uma análise subseqüente, nos livraríamos de toda a neurose. – p. 229;
_ considerações de como
acelerar o tratamento psicanalítico. – p. 230;
II
_ A discussão do problema
técnico de saber como acelerar o lento progresso de uma análise nos conduz a
outra questão, mais profundamente interessante: existe algo que se possa chamar
de término de uma análise – há alguma possibilidade de levar uma análise a tal
término? A julgar pela conversa comum dos analistas, assim pareceria ser, já
que freqüentemente os ouvimos dizer, quando deploram ou desculpam as
imperfeições reconhecidas de algum mortal seu colega: ‘Sua análise não foi
terminada’ ou ‘ele nunca se analisou até o fim.’
Temos, primeiro, de decidir o que se quer dizer
pela expressão ambígua ‘o término de uma análise’. – p. 232;
_ Uma força constitucional do
instinto e uma alteração desfavorável do ego, adquirida em sua luta defensiva,
no sentido de ele ser deslocado e restringido, são os fatores prejudiciais à
eficácia da análise e que podem tornar interminável sua duração. Fica-se
tentado a tornar o primeiro fator – força do instinto – responsável também pelo
surgimento do segundo – a alteração do ego -, mas parece que também este último
possui sua própria etiologia. E, na verdade, tem-se de admitir que nosso
conhecimento desses assuntos ainda é insuficiente. Só agora eles se estão
tornando matéria de estudo analítico. Nesse campo, parece-me que o interesse
dos analistas está bastante erradamente dirigido. Em vez de indagar como se dá
uma cura pela análise (assunto que acho ter sido suficientemente elucidado), se
deveria perguntar quais são os obstáculos que se colocam no caminho de tal
cura. – p. 233;
_ Talvez se possa lançar
alguma luz sobre elas mediante considerações teóricas. Mas outro ponto já se tornou
claro: se quisermos atender às exigências mais rigorosas feitas à terapia
analítica, nossa estrada não nos conduzirá a um abreviamento de sua duração,
nem passará por ele. – p. 236;
III
_ Uma experiência
analítica que agora se estende por diversas décadas, e uma modificação que se
efetuou na natureza e no modo de minha atividade incentivaram-me a tentar
responder as questões que se nos apresentam. Em dias passados, tratei um número
bastante grande de pacientes, os quais, como era natural, desejavam ser
tratados tão rapidamente quanto possível. Nos últimos anos, dediquei-me
principalmente a análises didáticas; no entanto, um número relativamente
pequeno de casos graves de doença permaneceu comigo para tratamento contínuo,
interrompido, embora, por intervalos mais breves. Com eles, o objetivo
terapêutico já não era o mesmo. Não se tratava mais de abreviar o tratamento; o
intuito era, radicalmente, o de exaurir as possibilidades de doença neles e
ocasionar uma alteração profunda de sua personalidade.
Dos três fatores que reconhecemos como sendo
decisivos para o sucesso ou não do tratamento analítico – a influência dos
traumas, a força constitucional dos instintos e as alterações do ego -, o que
nos interessa aqui é apenas o segundo, a força dos instintos. Um instante de
reflexão levanta uma dúvida quanto a saber se o uso restritivo do adjetivo
‘constitucional’ (ou ‘congênito’) é essencial. Por verdadeiro que possa ser que
o fator constitucional seja de importância decisiva desde o próprio início, é
concebível que um reforço instintual que chegue tarde na vida possa produzir os
mesmos efeitos. Se assim for, teremos de modificar nossa fórmula e dizer ‘a
força dos instintos na ocasião‘, em vez de ‘a força constitucional dos
instintos’. A primeira de nossas questões foi: ‘É possível, mediante a terapia
analítica, livrar-se de um conflito entre um instinto e o ego, ou de uma
exigência instintual patogênica ao ego, de modo permanente e definitivo?’ Para
evitar a má compreensão é necessário, talvez, explicar mais exatamente o que se
quer dizer por ‘livrar-se permanentemente de uma exigência instintual’.
Certamente não é ‘fazer-se com que a exigência desapareça, de modo que nada
mais se ouça dela novamente’. Isso em geral é impossível, e tampouco, de modo
algum, é de se desejar. Queremos dizer outra coisa, algo que pode ser
grosseiramente descrito como um ‘amansamento’ do instinto. Isso equivale a
dizer que o instinto é colocado completamente em harmonia com o ego, torna-se
acessível a todas as influências das outras tendências neste último e não mais
busca seguir seu independente caminho para a satisfação. Se nos perguntarem por
quais métodos e meios esse resultado é alcançado, não será fácil achar uma
resposta. Podemos apenas dizer: ‘So muss denn doch die Hexe dran!’ – a
Metapsicologia da Feiticeira. Sem especulação e teorização metapsicológica –
quase disse ‘fantasiar’ -, não daremos outro passo à frente. Infelizmente, aqui
como alhures, o que a Feiticeira nos revela não é muito claro nem muito
minucioso. Temos apenas uma única pista para começar – embora seja uma pista do
mais alto valor -, a saber, a antítese entre o processo primário e o
secundário, e é para essa antítese que me voltarei neste ponto.
Se agora retomarmos nossa primeira questão,
descobriremos que nossa nova linha de abordagem nos conduz inevitavelmente a
uma conclusão específica. A questão era a de saber se é possível livrar-se de
modo permanente e definitivo de um conflito instintual – isto é, ‘amansar’
desse modo uma exigência instintual. Formulada nesses termos, a questão não faz
menção alguma à força do instinto, mas é precisamente disso que o resultado
depende. Partamos da presunção de que aquilo que a análise realiza para os
neuróticos nada mais é do que aquilo que as pessoas normais ocasionam para si
próprias sem o auxílio dela. A experiência cotidiana, contudo, nos ensina que,
numa pessoa normal, qualquer solução de um conflito instintual só é válida para
uma força específica de instinto, ou, mais corretamente, só para uma relação
específica entre a força do instinto e a força do ego. Se a força deste
diminui, quer pela doença, quer pela exaustão, ou por alguma causa semelhante,
todos os instintos, que até então haviam sido amansados com êxito, podem
renovar suas exigências e esforçar-se por obter satisfações substitutivas
através de maneiras anormais. Uma prova irrefutável dessa afirmação é fornecida
por nossos sonhos noturnos; eles reagem à atitude de sono assumida pelo ego com
um despertar das exigências instintuais.
O material do outro lado [a força dos instintos] é
igualmente sem ambigüidade. Duas vezes no curso do desenvolvimento individual
certos instintos são consideravelmente reforçados: na puberdade e, nas
mulheres, na menopausa. De modo algum ficamos surpresos se uma pessoa, que
antes não era neurótica, assim se torna nessas ocasiões. Quando seus instintos
não eram tão fortes, ela teve sucesso em amansá-los, mas quando são reforçados,
não mais pode fazê-lo. As repressões comportam-se como represas contra a
pressão da água. Os mesmos efeitos produzidos por esses dois reforços
fisiológicos do instinto podem ser ocasionados, de maneira irregular, por
causas acidentais em qualquer outro período da vida. Tais reforços podem ser
estabelecidos por novos traumas, frustrações forçadas ou a influência colateral
e mútua dos instintos. O resultado é sempre o mesmo, e ele salienta o poder
irresistível do fator quantitativo na causação da doença. – p.
237/238/239;
_ Todas as repressões se
efetuam na primeira infância; são medidas primitivas de defesa, tomadas pelo
ego imaturo, débil. Nos anos posteriores, não são levadas a cabo novas
repressões, mas as antigas persistem, e seus serviços continuam a ser
utilizados pelo ego para o domínio dos instintos. Livramo-nos de novos
conflitos através daquilo que chamamos de ‘repressão ulterior’. Podemos aplicar
a essas repressões infantis nossa afirmação geral de que as repressões dependem
absoluta e inteiramente do poder relativo das forças envolvidas, e que elas não
se podem manter contra um aumento na força dos instintos. A análise, contudo,
capacita o ego, que atingiu maior maturidade e força, a empreender uma revisão
dessas antigas repressões; algumas são demolidas, ao passo que outras são
identificadas, mas construídas de novo, a partir de material mais sólido. O
grau de firmeza dessas novas represas é bastante diferente do das anteriores;
podemos confiar em que não cederão facilmente ante uma maré ascendente da força
instintual. Dessa maneira, a façanha real da terapia analítica seria a
subseqüente correção do processo original de repressão, correção que põe fim à
dominância do fator quantitativo. – p. 240;
_ Se essa for a resposta
correta à nossa questão, podemos dizer que a análise, ao reivindicar a cura das
neuroses assegurando o controle sobre o instinto, está sempre correta na
teoria, mas nem sempre na prática, e isso porque ela nem sempre obtém êxito em
garantir, em grau suficiente, as fundações sobre as quais um controle do
instinto se baseia. É fácil descobrir a causa de tal fracasso parcial. No
passado, o fator quantitativo da força instintual opôs-se aos esforços
defensivos do ego; por essa razão, convocamos o auxílio do trabalho da análise.
Agora, o mesmo fator estabelece um limite à eficácia desse novo esforço. Se a
força do instinto é excessiva, o ego maduro, apoiado pela análise, fracassa em
sua missão, tal como o ego desamparado anteriormente fracassara. Seu controle
sobre o instinto é melhorado, mas permanece imperfeito porque a transformação
no mecanismo defensivo é apenas incompleta. Nada há de surpreendente nisso,
visto que o poder dos instrumentos com que a análise opera não é ilimitado mas
restrito, e o resultado final depende sempre da força relativa dos agentes
psíquicos que estão lutando entre si.
Sem dúvida, é desejável abreviar a duração do
tratamento analítico, mas só podemos conseguir nosso intuito terapêutico
aumentando o poder da análise em vir em assistência do ego. A influência
hipnótica pareceu ser um instrumento excelente para nossos fins, mas as razões
por que tivemos de abandoná-la são bem conhecidas. Ainda não foi encontrado
substituto algum para a hipnose. Desse ponto de vista, podemos compreender como
um mestre da análise como Ferenczi veio a dedicar os últimos anos de sua vida a
experimentos terapêuticos, os quais, infelizmente, se mostraram vãos. – p.
242/243;
IV
_ As duas outras questões –
se, enquanto estamos tratando determinado conflito instintual, podemos proteger
o paciente de futuros conflitos e se é viável e conveniente, para fins
profiláticos, despertar um conflito que não está manifesto na ocasião – devem
ser tratadas em conjunto, pois obviamente a primeira tarefa só pode ser levada
a cabo na medida em que a segunda o é – ou seja, na medida em que um possível
conflito futuro se transforma em conflito concreto e atual, ao qual a
influência é então aplicada. Essa nova maneira de enunciar o problema é, no
fundo, apenas uma ampliação da anterior. Ao passo que, no primeiro caso,
estivemos considerando como nos resguardarmos contra um retorno do mesmo
conflito, estamos agora considerando como nos resguardarmos contra sua possível
substituição por outro conflito. Isso soa como uma proposição muito ambiciosa,
mas tudo o que estamos tentando fazer é tornar claros quais os limites
estabelecidos à eficácia da terapia analítica. – p. 244;
V
_ Partimos da questão de saber
como podemos abreviar a duração inconvenientemente longa do tratamento
analítico e, ainda com essa questão em mente, passamos a considerar se é
possível conseguir uma cura permanente ou mesmo impedir uma doença futura
através do tratamento profilático. Assim procedendo, descobrimos que os fatores
decisivos para o sucesso de nossos esforços terapêuticos foram a influência da
etiologia traumática, a força relativa dos instintos que têm de ser
controlados, e algo que denominamos de alteração do ego. Apenas o segundo
desses fatores foi pormenorizadamente examinado por nós, e, em conexão com ele,
tivemos ocasião de reconhecer a importância suprema do fator quantitativo e de
acentuar a reivindicação da linha de abordagem metapsicológica a ser levada em
consideração em qualquer tentativa de explicação.
Quanto ao terceiro fator, a alteração do ego, ainda
não dissemos nada. Quando voltamos nossa atenção para ele, a primeira impressão
que recebemos é a de que há muito a perguntar e muito a responder aqui, e a de
que o que temos a dizer sobre ele mostrará ser bastante inadequado. Essa
primeira impressão é confirmada quando ingressamos no problema. Como é bem
sabido, a situação analítica consiste em nos aliarmos com o ego da pessoa em
tratamento, a fim de submeter partes de seu id que não estão controladas, o que
equivale a dizer, incluí-las na síntese de seu ego. O fato de uma cooperação
desse tipo habitualmente fracassar no caso dos psicóticos, nos fornece uma
primeira base sólida para nosso julgamento. O ego, se com ele quisermos poder
efetuar um pacto desse tipo, deve ser um ego normal. Mas um ego normal dessa
espécie é, como a normalidade em geral, uma ficção ideal. O ego anormal, inútil
para nossos fins, infelizmente não é ficção. Na verdade, toda pessoa normal é
apenas normal na média. Seu ego aproxima-se do ego do psicótico num lugar ou
noutro e em maior ou menor extensão, e o grau de seu afastamento de determinada
extremidade da série e de sua proximidade da outra nos fornecerá uma medida
provisória daquilo que tão indefinidamente denominamos de ‘alteração do ego’.
Se perguntarmos qual a fonte da grande variedade de
tipos e graus de alteração do ego, não poderemos fugir à primeira alternativa
óbvia, ou seja, a de que tais alterações são congênitas ou adquiridas. Desta, o
segundo tipo seria o mais fácil de tratar. Se forem alterações adquiridas, isso
certamente terá acontecido no decurso do desenvolvimento, a partir dos
primeiros anos de vida, pois o ego tem de tentar, desde o próprio início,
desempenhar sua tarefa de mediar entre seu id e o mundo externo, a serviço do
princípio de prazer, e de proteger o id contra os perigos do mundo externo. Se,
no decurso desses esforços, o ego aprende a adotar uma atitude defensiva também
para com seu próprio id, e a tratar as exigências instintuais deste último como
perigos externos, isso acontece, pelo menos em parte, porque ele compreende que
uma satisfação do instinto conduziria a conflitos com o mundo externo.
Posteriormente, sob a influência da educação, o ego se acostuma a remover a
cena da luta de fora para dentro e a dominar o perigo interno antes que se
tenha tornado externo, e, provavelmente, com mais freqüência, tem razão em
assim proceder. Durante essa luta em duas frentes – posteriormente haverá
também uma terceira frente -, o ego faz uso de diversos procedimentos para
desempenhar sua tarefa, que, para exprimi-la em termos gerais, consiste em
evitar o perigo, a ansiedade e o desprazer. Chamamos esses procedimentos de ‘mecanismos
de defesa‘. Nosso conhecimento deles ainda não é suficientemente completo. O
livro de Anna Freud (1936) forneceu-nos uma primeira compreensão interna
(insight) de sua multiplicidade e significação multilateral. – p.
248/249;
_ O aparelho psíquico não
tolera o desprazer; tem de desviá-lo a todo custo, e se a percepção da
realidade acarreta desprazer, essa percepção – isto é, a verdade – deve ser
sacrificada. No que se refere a perigos externos, o indivíduo pode ajudar-se
durante algum tempo através da fuga e evitando a situação de perigo, até ficar
suficientemente forte, mais tarde, para afastar a ameaça alterando ativamente a
realidade. Mas não é possível fugir de si próprio; a fuga não constitui auxílio
contra perigos internos. E, por essa razão, os mecanismos defensivos do ego
estão condenados a falsificar nossa percepção interna e a nos dar somente uma
representação imperfeita e deformada de nosso próprio id. Em suas relações com
o id, portanto, o ego é paralisado por suas restrições ou cegado por seus
erros, e o resultado disso, na esfera dos eventos psíquicos, só pode ser
comparado a caminhar num país que não se conhece, sem dispor de um bom par de
pernas. – p. 250;
_ O ego do adulto, com sua
força aumentada, continua a se defender contra perigos que não mais existem na
realidade; na verdade, vê-se compelido a buscar na realidade as situações que
possam servir como substituto aproximado ao perigo original, de modo a poder
justificar, em relação àquelas, o fato de ele manter suas modalidades habituais
de reação. Assim, podemos facilmente entender como os mecanismos defensivos,
por ocasionarem uma alienação cada vez mais ampla quanto ao mundo externo e um
permanente enfraquecimento do ego, preparam o caminho para o desencadeamento da
neurose e o incentivam. – p. 251;
_ O efeito terapêutico depende
de tornar consciente o que está reprimido (no sentido mais amplo da palavra) no
id. Preparamos o caminho para essa conscientização mediante interpretações e
construções, mas interpretamos apenas para nós próprios, não para o paciente,
enquanto o ego se apega a suas defesas primitivas e não abandona suas
resistências. Ora, essas resistências, embora pertençam ao ego, são
inconscientes e, em certo sentido, isoladas dentro do ego. O analista as
identifica mais facilmente do que o faz com o material oculto no id.
Poder-se-ia supor que seria suficiente tratá-las como partes do id e,
tornando-as conscientes, colocá-las em conexão com o restante do ego. Dessa
maneira, suporíamos, metade da tarefa da análise estaria realizada; não devemos
contar com enfrentar uma resistência contra a revelação das resistências.
Contudo, o que acontece é isso. Durante o trabalho sobre as resistências, o ego
se retrai – com maior ou menor grau de seriedade – do acordo em que a situação
analítica se funda. Ele deixa de apoiar nossos esforços para revelar o id;
opõe-se a eles, desobedece a regra fundamental da análise e não permite que
surjam novos derivados do reprimido. Não podemos esperar que o paciente possua
uma forte convicção do poder curativo da análise. Pode ter trazido consigo uma
certa confiança em seu analista, que será fortalecida até um ponto eficaz pelos
fatores de transferência positiva que nele serão despertados. Sob a influência
dos impulsos desprazerosos que sente em resultado da nova ativação de seus
conflitos defensivos, as transferências negativas podem agora levar a melhor e
anular completamente a situação analítica. O paciente agora encara o analista
como não mais do que um estranho que lhe está fazendo exigências desagradáveis,
e comporta-se para com ele exatamente como uma criança que não gosta do
estranho e não acredita em nada do que este diz. Se o analista tenta explicar
ao paciente uma das deformações por este efetuadas para fins de defesa, e
corrigi-la, encontra-o incompreensivo e inacessível a argumentos bem fundados.
Assim, percebemos que há uma resistência contra a revelação das resistências e
que os mecanismos defensivos realmente merecem o nome que lhe demos
originalmente, antes de terem sido examinados mais de perto. Constituem
resistências não apenas à conscientização dos conteúdos do id, mas também à
análise como um todo, e, assim, ao restabelecimento. – p. 252;
VI
_ A questão seguinte a que
chegamos é a de saber se toda alteração do ego – em nosso sentido do termo – é
adquirida durante as lutas defensivas dos primeiros anos. Não pode haver dúvida
sobre a resposta. Não temos razão para discutir a existência e a importância de
características distintivas, originais e inatas do ego. Isso é certificado pelo
ato singular de que cada pessoa faz uma seleção dos mecanismos possíveis de
defesa, de que ela sempre utiliza apenas alguns deles, sempre os mesmos. Isso
pareceria indicar que cada ego está dotado, desde o início, com disposições e
tendências individuais, embora seja verdade que não podemos especificar sua
natureza ou o que as determina. Ademais, sabemos que não devemos exagerar a
diferença existente entre caracteres herdados e adquiridos, transformando-a
numa antítese; o que foi adquirido por nossos antepassados decerto forma parte
importante do que herdamos. Quando falamos numa ‘herança arcaica’ geralmente
estamos pensando apenas no id e parecemos presumir que, no começo da vida do
indivíduo, ainda não existe ego algum. Mas não desprezaremos o ato de que id e
ego são originalmente um só; tampouco implica qualquer supervalorização mística
da hereditariedade acharmos crível que, mesmo antes de o ego surgir, as linhas
de desenvolvimento, tendências e reações que posteriormente apresentará, já
estão estabelecidas para ele. As peculiaridades psicológicas de famílias, raças
e nações, inclusive em sua atitude para com a análise, não permitem outra
explicação. Em verdade, mais do que isso: a experiência analítica nos impôs a
convicção de que mesmo conteúdos psíquicos específicos, tais como o simbolismo,
não possuem outras fontes senão a transmissão hereditária, e pesquisas em
diversos campos da antropologia social tornam plausível supor que outros
precipitados, igualmente especializados, deixados pelo primitivo
desenvolvimento humano, também estão presentes na herança arcaica. – p. 254;
_ Por outro lado, não existe
maior perigo para a função heterossexual de um homem do que o de ser perturbada
por sua homossexualidade latente. – p. 257;
VII
_ Em 1927, Ferenczi leu um
instrutivo artigo sobre o problema da terminação das análises. Ele finda com a
confortadora garantia de que ‘a análise não é um processo sem fim, mas um
processo que pode receber um fim natural, com perícia e paciência suficientes
por parte do analista’. O artigo como um todo, contudo, parece-me ter a
natureza de uma advertência a não visar a abreviar a análise, mas a
aprofundá-la. Ferenczi demonstra ainda o importante ponto de que o êxito
depende muito de o analista ter aprendido o suficiente de seus próprios ‘erros
e equívocos’ e de ter levado a melhor sobre ‘os pontos fracos de sua própria
personalidade’. Isso fornece um suplemento importante a nosso tema. Entre os
fatores que influenciam as perspectivas do tratamento analítico e se somam às
suas dificuldades da mesma maneira que as resistências, deve-se levar em conta
não apenas a natureza do ego do paciente, mas também a individualidade do
analista. – p. 261;
_ E, finalmente, não devemos
esquecer que o relacionamento analítico se baseia no amor à verdade – isto é,
no reconhecimento da realidade – e que isso exclui qualquer tipo de impostura
ou engano. – p. 262;
VIII
_ Tanto em análises
terapêuticas quanto em análises de caráter, observamos que dois temas vêm a ter
preeminência especial e fornecem ao analista quantidade inusitada de trabalho.
Logo se torna evidente que aqui um princípio geral está em ação. Os dois temas
estão ligados à distinção existente entre os sexos; um deles é tão
característico dos homens quanto o outro o é das mulheres. Apesar da
dessemelhança de seu conteúdo, há uma correspondência óbvia entre eles. Algo
que ambos os sexos possuem em comum foi forçado, pela diferença entre eles, a
formas diferentes de expressão.
Os dois temas correspondentes são, na mulher, a
inveja do pênis – um esforço positivo por possuir um órgão genital masculino –
e, no homem, a luta contra sua atitude passiva ou feminina para com outro
homem. O que é comum nos dois temas foi distinguido pela nomenclatura
psicanalítica, em data precoce, como sendo uma atitude para com o complexo de
castração. Subseqüentemente, Alfred Adler colocou o termo ‘protesto masculino’
em uso corrente. Ele se ajusta perfeitamente ao caso dos homens, mas penso que,
desde o início, ‘repúdio da feminilidade’ teria sido a descrição correta dessa
notável característica da vida psíquica dos seres humanos. – p.
264;
Construções em análise (1937)
_ Sempre me pareceu ser algo
grandemente a crédito de certo bem-conhecido homem de ciência ter ele tratado a
psicanálise com justiça, numa época em que a maioria das outras pessoas não se
sentiam em tal obrigação. Em determinada ocasião, todavia, expressou ele uma
opinião sobre a técnica analítica que foi, ao mesmo tempo, depreciativa e
injusta. Disse que, ao fornecermos interpretações a um paciente, tratamo-lo
segundo o famoso princípio do ‘Heads I win, tails you lose‘. Isso
equivale a dizer que se o paciente concorda conosco, então a interpretação está
certa, mas, se nos contradiz, isso constitui apenas sinal de sua resistência, o
que novamente demonstra que estamos certos. Desse modo, estamos sempre com a
razão contra o pobre e desamparado infeliz que estamos analisando, não
importando como ele reaja ao que lhe apresentamos. Ora, de uma vez que é
realmente verdade que um ‘não’ de nossos pacientes não é, via de regra,
suficiente para nos fazer abandonar uma interpretação como incorreta, uma
revelação como essa sobre a natureza de nossa técnica foi muito bem acolhida
pelos opositores da análise. Vale a pena, portanto, fornecer uma descrição
pormenorizada de como estamos acostumados a chegar a uma avaliação do ‘sim’ ou
do ‘não’ de nossos pacientes durante o tratamento analítico – de sua expressão
de concordância ou de negação. No correr dessa apologia, naturalmente, o
analista militante nada aprenderá que já não saiba.
É terreno familiar que o trabalho da análise visa a
induzir o paciente a abandonar as repressões (empregando a palavra no sentido
mais amplo) própria a seu primitivo desenvolvimento e a substituí-las por
reações de um tipo que corresponda a uma condição psiquicamente madura. Com
esse intuito em vista, ele deve ser levado a recordar certas experiências e os
impulsos afetivos por ela invocados, os quais, presentemente, ele esqueceu.
Sabemos que seus atuais sintomas e inibições são conseqüências de repressões
desse tipo; que constituem um substituto para aquelas coisas que esqueceu. Que
tipo de material põe ele à nossa disposição, de que possamos fazer uso para
colocá-lo no caminho da recuperação das lembranças perdidas? Todos os tipos de
coisa. Fornece-nos fragmentos dessas lembranças em seus sonhos, valiosíssimos
em si mesmos, mas via de regra seriamente deformados por todos os fatores
relacionados à formação dos sonhos. Se ele se entrega à ‘associação livre’,
produz ainda idéias em que podemos descobrir alusões às experiências reprimidas
e derivados dos impulsos afetivos recalcados, bem como das reações contra eles.
Finalmente, há sugestões de repetições dos afetos pertencentes ao material
reprimido que podem ser encontradas em ações desempenhadas pelo paciente,
algumas bastante importantes, outras, triviais, tanto dentro quanto fora da
situação analítica. Nossa experiência demonstrou que a relação de
transferência, que se estabelece com o analista, é especificamente calculada para
favorecer o retorno dessas conexões emocionais. É dessa matéria-prima – se
assim podemos descrevê-la – que temos de reunir aquilo de que estamos à
procura.
– p. 271/272;
A divisão do ego no processo
de defesa (1940[1938])
_ Suponhamos, portanto, que o
ego de uma criança se encontra sob a influência de uma poderosa exigência
instintual que está acostumado a satisfazer, e que é subitamente assustado por
uma experiência que lhe ensina que a continuação dessa satisfação resultará num
perigo real quase intolerável. O ego deve então decidir reconhecer o perigo
real, ceder-lhe passagem e renunciar à satisfação instintual, ou rejeitar a
realidade e convencer-se de que não há razão para medo, de maneira a poder
conservar a satisfação. Existe assim um conflito entre a exigência por parte do
instinto e a proibição por parte da realidade. Na verdade, porém, a criança não
toma nenhum desses cursos, ou melhor, toma ambos simultaneamente, o que
equivale à mesma coisa. Ela responde ao conflito por duas reações contrárias, ambas
válidas e eficazes. Por um lado, com o auxílio de certos mecanismos, rejeita a
realidade e recusa-se a aceitar qualquer proibição; por outro, no mesmo alento,
reconhece o perigo da realidade, assume o medo desse perigo como um sintoma
patológico e subseqüentemente tenta desfazer-se do medo. Deve-se confessar que
se trata de uma solução bastante engenhosa da dificuldade. Ambas as partes na
disputa obtêm sua cota: permite-se que o instinto conserve sua satisfação e
mostra-se um respeito apropriado pela realidade. Mas tudo tem de ser pago de
uma maneira ou de outra, e esse sucesso é alcançado ao preço de uma fenda no
ego, a qual nunca se cura, mas aumenta à medida que o tempo passa. As duas
reações contrárias ao conflito persistem como ponto central de uma divisão (splitting) do ego. Todo esse
processo nos parece tão estranho porque tomamos por certa a natureza sintética
dos processos do ego. Quanto aisso, porém, estamos claramente em falta. A
função sintética do ego, embora seja de importância tão extraordinária, está
sujeita a condições particulares e exposta a grande número de distúrbios. – p.
289/290;
Algumas lições elementares de
psicanálise (1940[1938])
A natureza do psíquico
_ A psicanálise constitui uma
parte da ciência mental da psicologia. Também é descrita como ‘psicologia
profunda’; mais tarde, descobriremos por quê. Se alguém perguntar o que
realmente significa ‘o psíquico’, será fácil responder pela enumeração de seus
constituintes: nossas percepções, idéias, lembranças, sentimentos e atos
volitivos – todos fazem parte do que é psíquico. Mas se o interrogador for mais
longe e perguntar se não existe alguma qualidade comum, possuída por todos
esses processos, que torne possível chegar mais perto da natureza, ou, como as
pessoas às vezes dizem, da essência
do psíquico, então será mais difícil fornecer uma resposta. – p. 298;
_ A psicanálise escapou a
dificuldades como essas, negando energicamente a igualação entre o que é
psíquico e o que é consciente. Não; ser consciente não pode ser a essência do
que é psíquico. É apenas uma qualidade
do que é psíquico, e uma qualidade inconstante – uma qualidade que está com
muito mais freqüência ausente do que presente. O psíquico, seja qual for sua
natureza, é em si mesmo inconsciente e provavelmente semelhante em espécie a
todos os outros processos naturais de que obtivemos conhecimento. – p. 299;
_ Em conseqüência do caráter
especial de nossas descobertas, nosso trabalho científico em psicologia
consistirá em traduzir processos inconscientes em conscientes, e assim
preencher as lacunas da percepção consciente… – p. 302;
Um comentário sobre o
anti-semitismo (1938)
_ ‘Confesso que não fiquei
satisfeito com nenhuma dessas demonstrações. À parte a religião do amor e da
humanidade, há também uma religião da verdade, e ela tem-se saído muito mal
nesses protestos. Mas a verdade é que, por longos séculos, tratamos o povo
judeu injustamente, e que assim continuamos a proceder por julgá-los
injustamente. Quem quer de nós que não comece por admitir nossa culpa não
cumpriu seu dever quanto a isso. Os judeus não são piores do que nós; eles
possuem características um tanto diferentes e defeitos um tanto diferentes,
mas, no total, não temos direito a olhá-los de cima. Sob alguns aspectos, na
verdade, são superiores a nós. Não necessitam de tanto álcool quanto nós para
tornar tolerável a vida; crimes de brutalidade, assassinato, roubo e violência
sexual são raridades entre eles; sempre concederam alto valor à realização e
aos interesses intelectuais; sua vida familiar é mais íntima; cuidam melhor dos
pobres; para eles, a caridade é um dever sagrado. Tampouco podemos chamá-los,
em qualquer sentido, de inferiores. Desde que permitimos que eles cooperassem
em nossas tarefas culturais, granjearam méritos por contribuições valiosas em
todas as esferas da ciência, arte e tecnologia, e reembolsaram abundantemente
nossa tolerância. Assim, cessemos por fim de lhes conceder favores, quando têm
direito à justiça.’ – p. 308;
Breves escritos (1937-1938)
Lou Andreas-Salomé (1937)
Achados, ideias, problemas
(1941[1938])
Anti-semitismo na Inglaterra
(1938)
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