Uma velha senhora solitária
tinha por vizinho o imponente conservatório da pequena cidade onde morava.
Tinha vivido um grande amor na
juventude que se foi juntamente com a guerra que o levou sem que ao menos
pudesse dizer adeus. Essa era a sua bela e triste história que como todo amor,
como diz o poeta, só é grande se for triste.
Guardava em um pesado baú de angelim
todas as cartas que foram trocadas com seu amado, relíquias da paixão. Quantas
declarações de amor e esperança de um reencontro próximo que nunca aconteceu.
Sentimentos estampados em um papel que se amarelou, marcas do tempo, o mesmo
tempo que enrugou a face da menina-moça, mas que não foi capaz de apagar da
lembrança os sentimentos que lhes foram arrancados pela heroica covadia daqueles
que promovem a guerra e esquecem que esta deixa rastros de corações
dilacerados, herança do combate.
Vivia naquele pequeno sobrado
cuja janela do quarto dava defronte ao salão principal do conservatório. Todas
as noites costumava sentar-se ao lado da janela e, contemplando o céu, relia em
voz alta as cartas já decoradas que ecoavam como uma toada de paz.
E foi assim que como por um
milagre aqueles instrumentos musicais do salão, adormecidos pela quietude da
noite, se compadeceram daquela menina/idosa e compuseram, com a letra das
cartas, uma linda melodia de amor.
Todas as noites era aquilo:
ela sentada ao lado da janela ouvia a sua história contada em um doce e suave
canto e não se importava no quão insensato era tudo aquilo, devaneios do
coração, notas musicais embriagadas de sentimentos que trazia o outrora ao presente.
Admitiu a si mesmo seus
delírios e tinha medo de confessar, a quem quer que fosse, os rituais musicais
ocorridos todas as noites defronte de sua janela.
Percebeu um certo enamoramento
da flauta pelo violoncelo, ela pequena, frágil, ele, em contraste, enorme e forte.
Viu naqueles instrumentos sua
historia de amor se eternizar em notas musicais. Amiúde, depois que os outros
instrumentos musicais emudeciam, ficavam apenas os dois pretendendo que aquela
magia nunca terminasse.
E ouvindo a harmonia, compreendeu
que seu amado, assim, como o cello fora forte e destemido, mas não prescindia
das cordas e do arco, tinha, pois, suas fraquezas e que, como os instrumentos,
as pessoas também são desiguais não se podendo tirar de todos o mesmo som. A
união do distinto é que forma a sinfonia.
Ela era a flauta, sobrevivia
sozinha, solista por excelência! E foi aí que atinou para a perfeição dos desígnios
de Deus. Ela sobreviveu aos agouros e desventuras de um amor perdido, ele não
suportaria.
Ela-flauta, embora miúda, magra
e aparentemente frágil tinha potência. Flauta-ela era forte e firme na essência
e essa fortaleza a fez suportar a perda, a frustração e o vazio. O mesmo vazio
que o cello causava quando se calava e deixava a flauta sozinha, tendo que
arcar, por conta própria singular, com toda a responsabilidade pelo rompimento
do silêncio.
E mesmo depois que ela se foi,
durante algumas noites silentes, os vizinhos do conservatório podiam ouvir o
compasso da flauta e do cello. Conta a lenda que foi desse apaixonamento que
nasceu o violino.
Compreendeu o quão forte nos
torna o abandono e a solidão, mas que, assim como aqueles instrumentos musicais,
a cantiga da vida não para e cabe a nós dar o tom dessa melodia que por vezes é
triste, mas pode ser alegre. Que independente do ritmo, do destino e das
circunstâncias, só depende de nós, na orquestra da vida, aprender a dançar
conforme a música.
Cristiane Caracas
14/01/2015
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