quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Apólogo - A flauta e o violoncelo - Cristiane Caracas


Uma velha senhora solitária tinha por vizinho o imponente conservatório da pequena cidade onde morava.
Tinha vivido um grande amor na juventude que se foi juntamente com a guerra que o levou sem que ao menos pudesse dizer adeus. Essa era a sua bela e triste história que como todo amor, como diz o poeta, só é grande se for triste.
Guardava em um pesado baú de angelim todas as cartas que foram trocadas com seu amado, relíquias da paixão. Quantas declarações de amor e esperança de um reencontro próximo que nunca aconteceu. Sentimentos estampados em um papel que se amarelou, marcas do tempo, o mesmo tempo que enrugou a face da menina-moça, mas que não foi capaz de apagar da lembrança os sentimentos que lhes foram arrancados pela heroica covadia daqueles que promovem a guerra e esquecem que esta deixa rastros de corações dilacerados, herança do combate.
Vivia naquele pequeno sobrado cuja janela do quarto dava defronte ao salão principal do conservatório. Todas as noites costumava sentar-se ao lado da janela e, contemplando o céu, relia em voz alta as cartas já decoradas que ecoavam como uma toada de paz.
E foi assim que como por um milagre aqueles instrumentos musicais do salão, adormecidos pela quietude da noite, se compadeceram daquela menina/idosa e compuseram, com a letra das cartas, uma linda melodia de amor.
Todas as noites era aquilo: ela sentada ao lado da janela ouvia a sua história contada em um doce e suave canto e não se importava no quão insensato era tudo aquilo, devaneios do coração, notas musicais embriagadas de sentimentos que trazia o outrora ao presente.
Admitiu a si mesmo seus delírios e tinha medo de confessar, a quem quer que fosse, os rituais musicais ocorridos todas as noites defronte de sua janela.
Percebeu um certo enamoramento da flauta pelo violoncelo, ela pequena, frágil, ele, em contraste, enorme e forte.

Viu naqueles instrumentos sua historia de amor se eternizar em notas musicais. Amiúde, depois que os outros instrumentos musicais emudeciam, ficavam apenas os dois pretendendo que aquela magia nunca terminasse.
E ouvindo a harmonia, compreendeu que seu amado, assim, como o cello fora forte e destemido, mas não prescindia das cordas e do arco, tinha, pois, suas fraquezas e que, como os instrumentos, as pessoas também são desiguais não se podendo tirar de todos o mesmo som. A união do distinto é que forma a sinfonia.
Ela era a flauta, sobrevivia sozinha, solista por excelência! E foi aí que atinou para a perfeição dos desígnios de Deus. Ela sobreviveu aos agouros e desventuras de um amor perdido, ele não suportaria.
Ela-flauta, embora miúda, magra e aparentemente frágil tinha potência. Flauta-ela era forte e firme na essência e essa fortaleza a fez suportar a perda, a frustração e o vazio. O mesmo vazio que o cello causava quando se calava e deixava a flauta sozinha, tendo que arcar, por conta própria singular, com toda a responsabilidade pelo rompimento do silêncio.
E mesmo depois que ela se foi, durante algumas noites silentes, os vizinhos do conservatório podiam ouvir o compasso da flauta e do cello. Conta a lenda que foi desse apaixonamento que nasceu o violino.
Compreendeu o quão forte nos torna o abandono e a solidão, mas que, assim como aqueles instrumentos musicais, a cantiga da vida não para e cabe a nós dar o tom dessa melodia que por vezes é triste, mas pode ser alegre. Que independente do ritmo, do destino e das circunstâncias, só depende de nós, na orquestra da vida, aprender a dançar conforme a música.
Cristiane Caracas
14/01/2015

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