Frondosa e com galhos
longilíneos uma jovem cerejeira compunha a paisagem de um parque da cidade. Naqueles
dias de outono ninguém prestava muita atenção a ela, passando-se por uma árvore
qualquer, dentre tantas outras do lugar. É bem verdade que produzia, com sua
copa, uma enorme sombra, mas esse detalhe também era despercebido aos olhos de
todos, não era importante.
Pois bem! Foi nesse cenário
de pouco interesse que uma cotovia, logo cedinho, pousou nos galhos da
cerejeira e começou a cantar seu canto de alvorada, saudando o Sol que acabava
de raiar. A árvore não gostou nem um pouco daquela intrusa que se assenhorou de
seus galhos e, por isso, tratou logo de reclamar.
_Quem pensa que és? Não te
dei licença para pousares em mim e muito menos usufruir de meus galhos!
A cotovia, não acostumada
com tanta grosseria, foi logo se desculpando:
_ Me perdoe, Dona Cerejeira,
não sabia que te importunavas, ao contrário, pensei que estivesses gostando já
que com meu canto ofereço o que há de mais perfeito e puro em mim. É que
costumo escolher a dedo a árvore para a qual dedicarei meu canto e tu me
parecias tão linda! Merecedora do meu melhor.
A cerejeira encabulou-se com
a delicadeza da cotovia e replicou:
_ Eu, linda? De onde tiras tal
tolice, sou uma árvore qualquer no meio de tantas outras, sem nada especial,
não vês?
A cotovia insistiu:
_ De certo não consegues te
enxergar como és porque não conheces a ti mesmo. Buscas dentro de ti a tua
essência e verás o quão és bela. Vou-me indo agora, não quero mais incomodar-te.
A cerejeira, arrependendo-se
de sua arrogância inicial disse timidamente, quase querendo não ser ouvida: Podes
voltar e declamar tuas poesias em canto, quem sabe um dia não aprendo a ver-me
da forma que me enxergastes e não apenas a minha sombra que por vezes me sufoca?
A cotovia respondeu: Não cabe a mim desnudar-te, essa tarefe pertence somente a
ti, é personalíssima, enquanto não libertares a tua consciência para os
segredos da alma ninguém será capaz de te mostrar a luz, razão da tua sombra.
Busca tuas raízes, descortina os esconderijos, desvenda teus cativeiros e saberás
quem de fato és.
A cotovia foi-se e deixou a
cerejeira reflexiva acerca daquela prosa esquisita e ao mesmo tempo
perturbadora.
Passados alguns dias, com a
chegada do verão, pousou na cerejeira um bando de pássaros migratórios, uma
centena deles, sem pedir licença invadiu a árvore em ensurdecedores grunhidos
que mais pareciam gritos de terror, puseram–se a agitar seus galhos e muitos
ali deixaram rastros fétidos em uma imundície jamais experimentada antes pela
cerejeira. Depois se foram sem qualquer interesse na árvore que lhes dera abrigo
contra os raios do Sol.
A cerejeira nada fez,
portou-se de forma passiva, permitindo tamanho abuso e desrespeito, calou-se de
forma vil e foi aí que se lembrou da cotovia. A cotovia tinha razão, ela me
confiou o seu melhor e eu me ofendi com sua prenda, mas, ao revés, com os
pássaros forasteiros permiti que deixassem seus excretos porque projetei a
porção pior, somos, assim, espelhos do nosso “eu” interior ora se fazendo belos,
ora se fazendo caricaturas de nós mesmos.
Chegada a primavera a
cotovia regressou e encontrou a cerejeira revestida em flor, num verdadeiro
espetáculo da natureza. Era aquela linda árvore que a cotovia havia avistado
porque a contemplou com lentes de amor, renascida e destacada de qualquer outra
do lugar, reflexo do seu âmago, agora liberto da sombra e pronto para, assim
como no canto de alvorada da cotovia que é prenúncio de um novo dia, acolher a
aurora da sua vida.
Cristiane Caracas
31/05/2014
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