Resumo
do Livro XXII – Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise e outros
trabalhos (1932-1936)
Nota
do editor inglês
_ Estas conferências diferem
da série original em diversos aspectos, e não apenas no fato de que jamais se
cogitou em pronunciá-las. Conforme assinala Freud, no prefácio que ele mesmo
escreveu, elas não possuem vida própria; são, na sua essência, suplementos.
(...) Se o leitor desejar ouvir o que Freud pensa sobre telepatia, educação,
religião e comunismo, ou se deseja conhecer os últimos pontos de vista de Freud
sobre o superego, sobre a ansiedade, sobre o instinto de morte e sobre a fase
pré-edipiana das meninas, certamente encontrará abundante material com que se
ocupar nestas conferências. – p. 14;
Prefácio
_ Minhas Conferências
Introdutórias sobre Psicanálise foram proferidas durante os dois períodos
de inverno de 1915-16 e 1916-17, em uma sala de conferências da Clínica
Psiquiátrica de Viena, perante ouvintes provenientes de todas as faculdades da
Universidade. As conferências da primeira metade foram improvisadas, sendo
providenciada a sua redação logo após; as da segunda metade foram delineadas
num esboço feito durante as férias do verão desse intervalo, em Salzburg, e
lidas palavra por palavra no inverno seguinte. Naquela época eu ainda tinha o
dom de uma memória fonográfica.
Estas novas conferências, diferentemente das
anteriores, nunca foram proferidas. Minha idade, nesse ínterim, havia-me
liberado da obrigação de expressar minha condição de membro da Universidade
(que, de qualquer modo, era uma condição periférica) fazendo conferências; e
uma operação cirúrgica havia-me impossibilitado de falar em público. Se,
portanto, mais uma vez tomo o meu lugar na sala de conferências, durante os
comentários que se seguem, é somente por um artifício de imaginação; isto pode
ajudar-me a não me esquecer de levar em conta o leitor, à medida que me
aprofundar mais em meu tema.
As novas conferências de modo algum pretendem
ocupar o lugar das anteriores. Em nenhum sentido elas formam uma entidade
independente, com a expectativa de encontrar um círculo de leitores apenas
seus; são continuações e suplementos que, em relação à série anterior, se
dividem em três grupos. – p. 15;
Conferência XXIX – Revisão da
Teoria dos Sonhos
_ Depois de um intervalo de
mais de quinze anos, se eu os reuni novamente para discutir com os senhores
quais novidades, e quais melhoramentos, talvez, o tempo intercorrente possa ter
introduzido na psicanálise, é correto e adequado, sob mais de um ponto de
vista, que devamos voltar nossa atenção primeiramente para a posição que ocupa
a teoria dos sonhos. Esta ocupa um lugar especial na história da psicanálise e
assinala um ponto decisivo; foi com ela que a psicanálise progrediu de método
psicoterapêutico para psicologia profunda. – p. 17;
_ Como vêem senhoras e
senhores, desta vez estou tomando o caminho não de uma exposição genética, mas
de uma exposição dogmática. Nosso primeiro passo consiste em estabelecer nossa
nova atitude para com o problema dos sonhos, introduzindo dois novos conceitos
e nomes. O que tem sido chamado de sonho descrevemos como texto do sonho, ou
sonho manifesto, e
aquilo que estamos procurando, o que suspeitamos existir, por assim dizer,
situado por trás do sonho, descreveremos como pensamentos oníricos latentes. Havendo feito
isto, podemos expressar nossas duas tarefas conforme se segue. Temos de
transformar o sonho manifesto em sonho latente, e explicar como, na mente do
sonhador, o sonho latente se tornou sonho manifesto. A primeira parte é uma
tarefa prática,
pela qual é responsável a interpretação de sonho; exige uma técnica. A segunda
parte é uma tarefa teórica,
cuja atribuição é explicar a hipotética elaboração onírica; e só pode ser uma
teoria. Ambas, a técnica de interpretação de sonhos e a teoria da elaboração
onírica, têm de ser recriadas. – p. 19/20;
_ Este, pois, é o nosso método
de interpretar sonhos. Uma primeira questão justificável é a seguinte: ‘Podemos
interpretar todos
os sonhos por meio desse método? E a resposta é: ‘Não, absolutamente não; mas
são tantos os que podemos interpretar, que nos sentimos confiantes na utilidade
e na correção do procedimento.’ ‘Mas por que não todos?’ A resposta a isto tem
algo importante a nos ensinar, que de imediato nos conduz aos fatores
determinantes psíquicos da formação dos sonhos: ‘Porque o trabalho de
interpretar é efetuado contra uma resistência, que varia desde dimensões banais
até a inexpugnabilidade (pelo menos até onde alcança a eficiência de nossos
métodos atuais).’ É impossível, durante o nosso trabalho, desprezar as
manifestações dessa resistência. – p. 23;
_ Há muito os senhores estão
cientes de que essa censura não é uma instituição exclusiva da vida onírica.
Sabem que o conflito entre as duas instâncias psíquicas, que nós –
impropriamente – descrevemos como o ‘reprimido inconsciente’ e o ‘consciente’,
domina toda a nossa vida mental e que a resistência contra a interpretação dos
sonhos, sinal de uma censura onírica, nada mais é que a resistência devida à
repressão, pela qual as duas instâncias estão separadas. Os senhores também
sabem que o conflito entre essas duas instâncias pode, sob determinadas
condições, produzir outras estruturas psíquicas que, assim como os sonhos, são
o resultado de conciliações; e os senhores não haverão de esperar que eu lhes
repita aqui tudo o que estava contido em minha introdução à teoria das
neuroses, a fim de lhes demonstrar o que sabemos acerca dos fatores
determinantes da formação de tais conciliações. Os senhores perceberam que o
sonho é um produto patológico, o primeiro membro da classe que inclui os
sintomas histéricos, as obsessões e os delírios, sendo, contudo, diferenciado
dos outros por sua transitoriedade e por sua ocorrência sob condições que fazem
parte da vida normal. Pois levemos na devida conta que, conforme já foi
assinalado por Aristóteles, a vida onírica é a forma como funciona nossa mente
durante o estado de sono. O estado de sono implica um afastamento do mundo
externo real, e aí temos a condição necessária para o desenvolvimento de uma
psicose. O mais cuidadoso estudo das psicoses graves não nos revelará um único
aspecto que seja mais característico desses estados patológicos. Nas psicoses,
porém, o apartar-se da realidade é levado a cabo por duas espécies de vias: ou
porque o reprimido inconsciente se tornou excessivamente forte, de modo a
dominar o consciente, que se liga à realidade; ou porque a realidade se tornou
tão intoleravelmente angustiante, que o ego ameaçado se lança nos braços das
forças instintuais inconscientes, em uma revolta desesperada. – p. 25;
_ A importância dessa
constatação foi ainda acrescida da descoberta de que, na construção dos
sintomas neuróticos, estão em atividade os mesmos mecanismos (não nos
aventuramos a dizer ‘processos de pensamento’) que aqueles que transformaram os
pensamentos oníricos latentes em sonho manifesto. – p. 27;
_ O deslocamento é o meio
principal usado na distorção onírica, à qual os pensamentos oníricos
devem submeter-se sob a influência da censura.
Após haverem essas influências sido aplicadas sobre
os pensamentos oníricos, o sonho está quase completo. Um fator adicional, um
tanto variável, também entra em jogo – o fator conhecido como ‘elaboração
secundária’ – depois de o sonho ter sido apresentado perante a consciência como
objeto da percepção. Neste ponto, tratamo-lo como em geral estamos acostumados
a tratar os conteúdos de nossa percepção: preenchemos as lacunas e introduzimos
conexões, e, ao fazê-lo, freqüentemente somos culpados de grandes equívocos. – p. 30;
_ O ponto mais controvertido
em toda a teoria foi, sem dúvida, a afirmação de que todos os sonhos são
realizações de desejos. A objeção inevitável e sempre recorrente, levantada
pelos leigos, de que, não obstante, há tantos sonhos de ansiedade, foi, penso
que posso dizê-lo, completamente eliminada em minhas conferências anteriores.
Com a divisão em sonhos de realização de desejos, sonhos de ansiedade e sonhos
de punição, mantivemos intacta nossa teoria.
Também os sonhos de punição constituem realizações
de desejo, embora não de desejos dos impulsos instintuais, mas de desejos da
instância crítica, censora e punidora da mente. Se temos diante de nós um sonho
de punição puro, uma operação mental fácil nos possibilitará restaurar o sonho
de realização de desejos ao qual o sonho de punição é a resposta correta, e
que, devido a esse repúdio, foi substituído como sonho manifesto. Como sabem,
senhoras e senhores, o estudo dos sonhos foi o que por primeiro nos auxiliou a
compreender as neuroses, e os senhores julgarão natural que nosso conhecimento
das neuroses, posteriormente, conseguiu influenciar nossa visão dos sonhos.
Conforme os senhores haverão de ouvir, fomos obrigados a postular a existência,
na mente, de uma especial instância crítica e proibidora, a qual denominamos de
‘superego’. Embora reconhecendo que a censura dos sonhos é também uma função
dessa instância, fomos levados a examinar, com maior cuidado, a parte
desempenhada pelo superego na construção dos sonhos.
Contra a teoria da realização de desejos dos sonhos
surgiram apenas duas dificuldades sérias. Uma discussão a respeito destas
afastar-nos-ia muito do caminho que seguimos e, na verdade, ainda não nos
proporcionou qualquer conclusão inteiramente satisfatória. – p. 36;
Conferência XXX – Sonhos e
Ocultismo
_ Dificilmente ficarão
surpresos com a notícia de que vou falar-lhes sobre a relação entre sonhos e
ocultismo. Os sonhos, na verdade, freqüentemente têm sido considerados como o
portão de entrada para o mundo do misticismo, e, mesmo hoje em dia, são vistos
por muitas pessoas como fenômeno oculto. Até nós próprios, que os transformamos
em tema de estudo científico, não impugnamos o fato de que um ou mais fios os
vinculam a essas matérias obscuras. Misticismo, ocultismo – que significam
essas palavras? Os senhores não devem esperar que eu faça alguma tentativa de
abarcar essa mal-circunscrita região com definições. Todos nós sabemos, de um
modo genérico e indefinido, o que essas palavras significam para nós.
Referem-se a alguma espécie de ‘outro mundo’, situado além deste mundo visível,
governado por leis imutáveis, construído para nós pela ciência.
O ocultismo afirma que existem, de fato, ‘mais
coisas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia’. Pois bem, não
precisamos nos sentir amarrados pela estreiteza de vistas da filosofia
acadêmica; estamos prontos a acreditar naquilo que nos é demonstrado de forma a
merecer crédito.
Propomos lidar com essas coisas da mesma forma como
o fazemos com qualquer outro material científico: antes de mais nada,
estabelecer se se pode realmente demonstrar que tais eventos acontecem, e
então, e somente então, quando sua natureza factual não pode ser posta em
dúvida, dedicar-nos à sua explicação. Não se pode negar, entretanto, que mesmo
o colocar em ação essa decisão se faz difícil para nós, devido a fatores
intelectuais, psicológicos e históricos. O caso não é o mesmo quando abordamos
outras investigações. – p. 39;
_ Percebemos que nem sempre se
deve reprovar os preconceitos, mas que, às vezes, eles se justificam e têm
utilidade de vez que nos poupam trabalho inútil. De fato, eles são apenas
conclusões baseadas em uma analogia com outros juízos bem fundamentados. – p. 40;
_ Desde o início, quando a
vida nos submete à sua rígida disciplina, dentro de nós se levanta uma
resistência contra a inflexibilidade e monotonia das leis do pensamento e
contra as exigências do teste de realidade. A razão se torna o inimigo que nos
priva de tantas possibilidades de prazer. Descobrimos quanto prazer nos dá
retrair-nos dela, temporariamente ao menos, e nos entregar aos atrativos do
absurdo. – p. 41;
_ No decorrer do tratamento
psicanalítico de pacientes, formei a concepção de que as atividades dos
adivinhos profissionais escondem uma oportunidade de fazer observações
especialmente irrefutáveis sobre transmissão de pensamento. Esses indivíduos
são pessoas insignificantes, e mesmo inferiores, que se aprofundam em
determinado tipo de representação – pôr as cartas, estudar a escrita ou as
linhas da palma da mão, ou fazer cálculos astrológicos – e, ao mesmo tempo,
após haverem-se mostrado conhecedores de partes do passado ou das
circunstâncias presentes do visitante, continuam profetizando seu futuro. Via
de regra, seus clientes mostram grande satisfação com esses efeitos e não
sentem qualquer ressentimento se, depois, essas profecias não se cumprem. – p. 47;
Conferência XXXI – A Dissecção
da Personalidade Psíquica
_ Sei que estão conscientes,
no que diz respeito aos seus próprios relacionamentos, seja com pessoas, seja
com coisas, da importância do ponto de partida dos senhores. Também foi isto o
que se passou com a psicanálise. Não foi uma coisa sem importância, para o
curso do seu desenvolvimento ou para a acolhida que ela encontrou, o fato de
ela ter começado seu trabalho sobre aquilo que é, dentre todos os conteúdos da
mente, o mais estranho ao ego – sobre os sintomas. Os sintomas são derivados do
reprimido, são, por assim dizer, seus representantes perante o ego; mas o
reprimido é território estrangeiro para o ego – território estrangeiro interno
– assim como a realidade (que me perdoem a expressão inusitada) é território
estrangeiro externo. A trajetória conduziu dos sintomas ao inconsciente, à vida
dos instintos, à sexualidade; e foi então que a psicanálise deparou com a
brilhante objeção de que os seres humanos não são simplesmente criaturas
sexuais, mas têm, também, impulsos mais nobres e mais elevados. Poder-se-ia
acrescentar que, exaltados por sua consciência desses impulsos mais elevados,
eles muitas vezes assumem o direito de pensar de modo absurdo e desprezar os
fatos. – p. 63;
_ Como seria se essas pessoas
insanas estivessem certas, se em cada um de nós estivesse presente no ego uma
instância como essa que observa e ameaça punir, e que nos doentes mentais se
tornou nitidamente separada de seu ego e erroneamente deslocada para a realidade
externa? – p. 65;
_ Seria difícil
familiarizarmo-nos com a idéia de um superego como este, que goza de um
determinado grau de autonomia, que age segundo suas próprias intenções e que é
independente do ego para a obtenção de sua energia; há, porém, um quadro
clínico que se impõe à nossa observação e que mostra nitidamente a severidade
dessa instância e até mesmo sua crueldade, bem como suas cambiantes relações
com o ego. Estou-me referindo à situação da melancolia, ou, mais precisamente,
dos surtos melancólicos, dos quais os senhores terão ouvido falar muito, ainda
que não sejam psiquiatras. O aspecto mais evidente dessa doença, de cujas
causas e de cujo mecanismo conhecemos quase nada, é o modo como o superego –
‘consciência’, podem denominá-la assim, tranqüilamente – trata o ego. – p. 66;
_ Conquanto a consciência seja
algo ‘dentro de nós’, ela, mesmo assim, não o é desde o início. Nesse ponto,
ela é um contraste real com a vida sexual, que existe de fato desde o início da
vida e não é apenas um acréscimo posterior. Pois bem, como todos sabem, as
crianças de tenra idade são amorais e não possuem inibições internas contra
seus impulsos que buscam o prazer. O papel que mais tarde é assumido pelo
superego é desempenhado, no início, por um poder externo, pela autoridade dos
pais. A influência dos pais governa a criança, concedendo-lhe provas de amor e
ameaçando com castigos, os quais, para a criança, são sinais de perda do amor e
se farão temer por essa mesma causa. Essa ansiedade realística é o precursor da
ansiedade moral subseqüente. Na medida em que ela é dominante, não há
necessidade de falar em superego e consciência. Apenas posteriormente é que se
desenvolve a situação secundária (que todos nós com demasiada rapidez havemos
de considerar como sendo a situação normal), quando a coerção externa é
internalizada, e o superego assume o lugar da instância parental e observa,
dirige e ameaça o ego, exatamente da mesma forma como anteriormente os pais
faziam com a criança.
O superego, que assim assume o poder, a função e
até mesmo os métodos da instância parental, é, porém, não simplesmente seu
sucessor, mas também, realmente, seu legítimo herdeiro. Procede diretamente
dele, e verificaremos agora por que processo. Antes, porém, atentemos para uma
discrepância entre os dois. O superego parece ter feito uma escolha unilateral
e ter ficado apenas com a rigidez e severidade dos pais, com sua função
proibidora e punitiva, ao passo que o cuidado carinhoso deles parece não ter
sido assimilado e mantido. Se os pais realmente impuseram sua autoridade com
severidade, facilmente podemos compreender que a criança desenvolva, em troca,
um superego severo. Contrariando nossas expectativas, porém, a experiência
mostra que o superego pode adquirir essas mesmas características de severidade
inflexível, ainda que a criança tenha sido educada de forma branda e afetuosa,
e se tenham evitado, na medida do possível, ameaças e punições. Mais adiante,
retornaremos a essa contradição, quando tratarmos das transformações do
instinto durante a formação do superego.
Não posso dizer-lhes tanto quanto gostaria a
respeito da metamorfose do relacionamento parental em superego, em parte porque
esse processo é tão complexo, que uma exposição dele não cabe dentro do esquema
de trabalho de uma série de conferências de introdução, como a que tento
dar-lhes, mas em parte, também, porque não nos sentimos seguros de que
estejamos compreendendo-a por inteiro. Assim, devem satisfazer-se com o esboço
que se segue.
A base do processo é o que se chama ‘identificação’
– isto é, a ação de assemelhar um ego a outro ego, em conseqüência do que o
primeiro ego se comporta como o segundo em determinados aspectos, imita-o e, em
certo sentido, assimila-o dentro de si. – p. 67/68;
_ Tenho como certo que os
senhores já ouviram falar muito no sentimento de inferioridade, que se supõe
caracterize especialmente os neuróticos. Ele freqüenta, em particular, as
páginas do que se conhece como belles
lettres. Um autor, ao usar a expressão ‘complexo de inferioridade’,
pensa que com isto satisfez todas as exigências da psicanálise e elevou sua
criação literária a um plano mais elevado. De fato, ‘complexo de inferioridade’
é um termo técnico quase nunca usado em psicanálise. Para nós, ele não comporta
o significado de algo simples, nem, muito menos, de algo elementar. Atribuí-lo
à autopercepção de possíveis defeitos orgânicos, como pretende fazê-lo a escola
daqueles que são conhecidos como ‘psicólogos do indivíduo’, parece-nos um erro
insensato. O sentimento de inferioridade possui fortes raízes eróticas. Uma
criança sente-se inferior quando verifica que não é amada, e o mesmo se passa
com o adulto. O único órgão corporal realmente considerado inferior é o pênis
atrofiado, o clitóris da menina. A parte principal do sentimento de
inferioridade, porém, deriva-se da relação do ego com o superego; assim como o
sentimento de culpa, é expressão da tensão entre eles. Em conjunto, é difícil
separar o sentimento de inferioridade do sentimento de culpa. Talvez seja
correto considerar aquele como o complemento erótico do sentimento moral de
inferioridade. Deu-se pouca atenção, na psicanálise, à questão referente à
delimitação dos dois conceitos. – p. 70/71;
_ É comum as mães, a quem o
destino presenteou com um filho doentio ou portador de alguma outra
desvantagem, tentarem compensá-lo de sua injusta desvantagem com uma
superabundância de amor. – p. 71;
_ Retornemos, porém, ao
superego. Atribuímos-lhe as funções de auto-observação, de consciência e de
[manter] o ideal. Daquilo que dissemos sobre sua origem, segue-se que ele
pressupõe um fato biológico extremamente importante e um fato psicológico
decisivo; ou seja, a prolongada dependência da criança em relação a seus pais e
o complexo de Édipo, ambos intimamente inter-relacionados. O superego é para
nós o representante de todas as restrições morais, o advogado de um esforço
tendente à perfeição – é, em resumo, tudo o que pudemos captar psicologicamente
daquilo que é catalogado como o aspecto mais elevado da vida do homem. Como
remonta à influência dos pais, educadores, etc., aprendemos mais sobre seu
significado se nos voltamos para aqueles que são sua origem. Via de regra, os
pais, e as autoridades análogas a eles, seguem os preceitos de seus próprios
superegos ao educar as crianças. Seja qual for o entendimento a que possam ter
chegado entre si o seu ego e o seu superego, são severos e exigentes ao educar
os filhos. Esqueceram as dificuldades de sua própria infância e agora se sentem
contentes com identificar-se eles próprios, inteiramente, com seus pais, que no
passado impuseram sobre eles restrições tão severas. Assim, o superego de uma
criança é, com efeito, construído segundo o modelo não de seus pais, mas do
superego de seus pais; os conteúdos que ele encerra são os mesmos, e torna-se veículo
da tradição e de todos os duradouros julgamentos de valores que dessa forma se
transmitiram de geração em geração. Facilmente podem adivinhar que, quando
levamos em conta o superego, estamos dando um passo importante para a nossa
compreensão do comportamento social da humanidade – do problema da
delinqüência, por exemplo – e, talvez, até mesmo estejamos dando indicações
práticas referentes à educação. Parece provável que aquilo que se conhece como
visão materialista da história peque por subestimar esse fator. Eles o põem de
lado, com o comentário de que as ‘ideologias’ do homem nada mais são do que
produto e superestrutura de suas condições econômicas contemporâneas. Isto é
verdade, mas muito provavelmente não a verdade inteira. A humanidade nunca vive
inteiramente no presente. O passado, a tradição da raça e do povo, vive nas
ideologias do superego e só lentamente cede às influências do presente, no
sentido de mudanças novas; e, enquanto opera através do superego, desempenha um
poderoso papel na vida do homem, independentemente de condições econômicas. – p. 72/73;
_ Toda a teoria da
psicanálise, como sabem, é de fato construída sobre a percepção da resistência
que o paciente nos oferece, quando tentamos tornar-lhe consciente o seu
inconsciente. – p. 73;
_ Retorno, agora, ao nosso
tema. Em face da dúvida quanto a saber se o ego e o superego são inconscientes,
ou se simplesmente produzem efeitos inconscientes, decidimo-nos, por boas
razões, a favor da primeira possibilidade. E é realmente este o caso: grande
parte do ego e do superego pode permanecer inconsciente e é normalmente
inconsciente. Isto é, a pessoa nada sabe dos conteúdos dos mesmos, e é
necessário dispender esforços para torná-los conscientes. É um fato que o ego e
o consciente, o reprimido e o inconsciente não coincidem. Sentimos necessidade
de proceder a uma revisão fundamental de nossa atitude relativa a esse problema
consciente-inconsciente. Em primeiro lugar, sentimo-nos muito inclinados a
reduzir o valor do critério do ser consciente, de vez que se mostrou tão pouco
digno de fé. Mas estaríamos fazendo-lhe uma injustiça. E como se pode dizer de
nossa vida: não tem muito valor, mas é tudo o que temos. Sem a revelação
proporcionada pela qualidade da consciência, estaríamos perdidos na obscuridade
da psicologia profunda; devemos, contudo, encontrar nosso rumo.
Não há necessidade de discutir o que se deva
denominar consciente: não pairam dúvidas sobre isto. O mais antigo e o melhor
significado da palavra ‘inconsciente’ é o significado descritivo. Denominamos
inconsciente um processo psíquico cuja existência somos obrigados a supor –
devido a algum motivo tal que o inferimos a partir de seus efeitos -, mas do
qual nada sabemos. Nesse caso, temos para tal processo a mesma relação que
temos com um processo psíquico de uma outra pessoa, exceto que, de fato, se
trata de um processo nosso, mesmo. Se quisermos ser ainda mais corretos,
modificaremos nossa assertiva dizendo que denominamos inconsciente um processo
se somos obrigados a supor que ele está sendo ativado no momento, embora
no momento não saibamos nada a seu respeito. Essa restrição faz-nos
raciocinar que a maioria dos processos conscientes são conscientes apenas num
curto espaço de tempo; muito em breve se tornam latentes, podendo,
contudo, facilmente tornar-se de novo conscientes. Também poderíamos dizer que
se tornaram inconscientes, se fosse absolutamente certo que, na condição de
latência, ainda constituem algo de psíquico. – p. 74/75;
_ Com a finalidade de evitar a
ambigüidade no sentido de estarmo-nos referindo, a um ou a outro inconsciente,
de estarmos usando a palavra no sentido descritivo ou no sentido dinâmico,
utilizamo-nos de um expediente permissível e simples. O inconsciente que está
apenas latente, e portanto facilmente se torna consciente, denominamo-lo
‘pré-consciente’, e reservamos o termo ‘inconsciente’ para o outro. Temos,
agora, três termos, ‘consciente’, ‘pré-consciente’ e ‘inconsciente’, com os
quais podemos ser bem-sucedidos em nossa descrição dos fenômenos mentais.
Repetindo: o pré-consciente também é inconsciente no sentido puramente
descritivo, mas não lhe atribuímos esse nome, exceto quando falamos sem a
preocupação de conferir-lhe precisão, ou quando temos de fazer a defesa da
existência, na vida mental, de processos inconscientes em geral. – p. 76;
_ Assim sendo, não usaremos
mais o termo ‘inconsciente’ no sentido sistemático e daremos àquilo que até
agora temos assim descrito um nome melhor, um nome que não seja mais passível
de equívocos. Aceitando uma palavra empregada por Nietzsche e acolhendo uma
sugestão de George Groddeck [1923], de ora em diante chama-lo-emos de ‘id’.
Esse pronome impessoal parece especialmente bem talhado para expressar a
principal característica dessa região da mente – o fato de ser alheia ao ego. O
superego, o ego e o id – estes são, pois, os três reinos, regiões, províncias
em que dividimos o aparelho mental de um indivíduo, e é das suas relações
mútuas que nos ocuparemos a seguir. – p. 77;
_ Os senhores não haverão de
esperar que eu tenha muita coisa nova a dizer-lhes acerca do id, exceto o seu
nome novo. É a parte obscura, a parte inacessível de nossa personalidade; o
pouco que sabemos a seu respeito, aprendemo-lo de nosso estudo da elaboração
onírica e da formação dos sintomas neuróticos, e a maior parte disso é de caráter
negativo e pode ser descrita somente como um contraste com o ego. Abordamos o
id com analogias; denominamo-lo caos, caldeirão cheio de agitação fervilhante.
Descrevemo-lo como estando aberto, no seu extremo, a influências somáticas e
como contendo dentro de si necessidades instintuais que nele encontram
expressão psíquica; não sabemos dizer, contudo, em que substrato. Está repleto
de energias que a ele chegam dos instintos, porém não possui organização, não
expressa uma vontade coletiva, mas somente uma luta pela consecução da
satisfação das necessidades instintuais, sujeita à observância do princípio de
prazer. As leis lógicas do pensamento não se aplicam ao id, e isto é
verdadeiro, acima de tudo, quanto à lei da contradição. Impulsos contrários
existem lado a lado, sem que um anule o outro, ou sem que um diminua o outro:
quando muito, podem convergir para formar conciliações, sob a pressão econômica
dominante, com vistas à descarga da energia. No id não há nada que se possa
comparar à negativa e é com surpresa que percebemos uma exceção ao teorema
filosófico segundo o qual espaço e tempo são formas necessárias de nossos atos
mentais. No id, não existe nada que corresponda à idéia de tempo; não há
reconhecimento da passagem do tempo, e – coisa muito notável e merecedora de
estudo no pensamento filosófico nenhuma alteração em seus processos mentais é
produzida pela passagem do tempo. Impulsos plenos de desejos, que jamais
passaram além do id, e também impressões, que foram mergulhadas no id pelas
repressões, são virtualmente imortais; depois de se passarem décadas,
comportam-se como se tivessem ocorrido há pouco. Só podem ser reconhecidos como
pertencentes ao passado, só podem perder sua importância e ser destituídos de
sua catexia de energia, quando tornados conscientes pelo trabalho da análise, e
é nisto que, em grande parte, se baseia o efeito terapêutico do tratamento
analítico.
Muitíssimas vezes, tive a impressão de que temos
feito muito pouco uso teórico desse fato, estabelecido além de qualquer dúvida,
da inalterabilidade do reprimido com o passar do tempo. Isto parece oferecer um
acesso às mais profundas descobertas. E, infelizmente, eu próprio não fiz
qualquer progresso nessa parte.
Naturalmente, o id não conhece nenhum julgamento de
valores: não conhece o bem, nem o mal, nem moralidade. Domina todos os seus
processos o fator econômico ou, se preferirem, o fator quantitativo, que está
intimamente vinculado ao princípio de prazer. Catexias instintuais que procuram
a descarga – isto, em nossa opinião, é tudo o que existe no id. – p.
78/79;
_ A relação com o tempo, tão
difícil de descrever, também é introduzida no ego pelo sistema perceptual;
dificilmente pode-se duvidar de que o modo de atuação desse sistema é o que dá
origem à idéia de tempo. O que, contudo, muito particularmente distingue o ego
do id é uma tendência à síntese de seu conteúdo, à combinação e à unificação
nos seus processos mentais, o que está totalmente ausente no id. Quando, agora,
abordarmos os instintos na vida mental, conseguiremos, segundo espero,
reconstituir essa característica essencial do ego em sua origem. Somente ela
produz o alto grau de organização que o ego requer para suas melhores
realizações. O ego evolui da percepção dos instintos para o controle destes;
esse controle, porém, apenas é realizado pelo representante [psíquico] do
instinto quando tal representante se situa no lugar que lhe é próprio, num
amplo conjunto de elementos, quando tomado em um contexto coerente. Para adotar
um modo popular de falar, poderíamos dizer que o ego significa razão e bom
senso, ao passo que o id significa as paixões indomadas. – p. 80/81;
_ A relação do ego para com o
id poderia ser comparada com a de um cavaleiro para com seu cavalo. – p. 81;
_ Há uma parte do id da qual o
ego separou-se por meio de resistências devidas à repressão. A repressão,
contudo, não se estende para dentro do id: o reprimido funde-se no restante do
id.
Adverte-nos um provérbio de que não sirvamos a dois
senhores ao mesmo tempo. O pobre do ego passa por coisas ainda piores: ele
serve a três severos senhores e faz o que pode para harmonizar entre si seus
reclamos e exigências. Esses reclamos são sempre divergentes e freqüentemente
parecem incompatíveis. Não é para admirar se o ego tantas vezes falha em sua
tarefa. Seus três tirânicos senhores são o mundo externo, o superego e o id.
Quando acompanhamos os esforços do ego para satisfazê-los simultaneamente – ou
antes, para obedecer-lhes simultaneamente -, não podemos nos arrepender por
termo-lo personificado ou por termo-lo erigido em um organismo separado. Ele se
sente cercado por três lados, ameaçado por três tipos de perigo, aos quais
reage, quando duramente pressionado, gerando ansiedade. – p. 82;
_ Assim, o ego, pressionado
pelo id, confinado pelo superego, repelido pela realidade, luta por exercer
eficientemente sua incumbência econômica de instituir a harmonia entre as
forças e as influências que atuam nele e sobre ele; e podemos compreender como
é que com tanta freqüência não podemos reprimir uma exclamação: ‘A vida não é
fácil!’. Se o ego é obrigado a admitir sua fraqueza, ele irrompe em ansiedade –
ansiedade realística referente ao mundo externo, ansiedade moral referente ao
superego e ansiedade neurótica referente à força das paixões do id. – p. 82;
_ Também é fácil imaginar que
determinadas práticas místicas possam conseguir perturbar as relações normais
entre as diferentes regiões da mente, de modo que, por exemplo, a percepção
pode ser capaz de captar acontecimentos, nas profundezas do ego e no id, os
quais de outro modo lhe seriam inacessíveis. Pode-se, porém, com segurança,
duvidar se a esse caminho nos levará às últimas verdades das quais é de se
esperar a salvação. Não obstante, pode-se admitir que os intentos terapêuticos
da psicanálise têm escolhido uma linha de abordagem semelhante. Seu propósito
é, na verdade, fortalecer o ego, fazê-lo mais independente do superego, ampliar
seu campo de percepção e expandir sua organização, de maneira a poder
assenhorear-se de novas partes do id. Onde estava o id, ali estará o ego. – p. 84;
Conferência XXXII – Ansiedade
e Vida Instintual
_ Não se surpreenderão se
saberem que tenho muitas novidades a relatar-lhes a respeito de nossa concepção
[Auffassung] da ansiedade e dos instintos básicos da vida mental; e não
se surpreenderão ao verificar que nenhuma dessas novidades pode pretender
oferecer uma solução definitiva para esses problemas não solucionados. Tenho um
motivo especial para usar a palavra ‘concepção’, aqui. Estes são os problemas
mais difíceis que se nos apresentam, mas sua dificuldade não está em alguma
insuficiência de observações; o que nos propõem esses enigmas são realmente os
fenômenos mais comuns e mais conhecidos. Nem a dificuldade se situa na natureza
recôndita das especulações a que eles dão origem; a reflexão especulativa
desempenha uma parte insignificante nessa esfera. É, contudo, verdadeiramente
uma questão de concepções – isto é, de introduzir as idéias abstratas corretas,
cuja aplicação ao material bruto da observação nele produzirá ordem e clareza.
Dediquei uma conferência (a vigésima quinta), em
minha série anterior, à ansiedade; e preciso recapitular rapidamente o que ali
disse. Descrevemos a ansiedade como um estado afetivo – isto é, uma combinação
de determinados sentimentos da série prazer-desprazer, com as correspondentes
inervações de descarga, e uma percepção dos mesmos, mas, provavelmente, também
como um precipitado de um determinado evento importante, incorporado por
herança – algo que pode, por conseguinte, ser assemelhado a um ataque histérico
individualmente adquirido. – p. 85;
_ Por outro lado, temos
verificado de bom grado um desejável elemento de correspondência no fato de que
as três principais espécies de ansiedade, a realística, a neurótica e a moral,
podem com tanta facilidade ser correlacionadas com as três relações dependentes
que o ego mantém – com o mundo externo, com o id e com o superego. – p. 89;
_ O temor de castração não é,
naturalmente, o único motivo para repressão: na verdade, não sucede nas
mulheres, pois, embora tenham elas um complexo de castração, não podem ter medo
de serem castradas. Em seu sexo, o que sucede é o temor à perda do amor, o que
é, evidentemente, um prolongamento posterior de ansiedade da criança quando constata
a ausência da mãe. – p. 90;
_ Otto Rank, a quem a
psicanálise deve muitas contribuições excelentes, também tem o mérito de haver
expressamente acentuado a importância do ato do nascimento e da separação da
mãe [Rank, 1924]. Todavia, achamos de todo impossível aceitar as conclusões
extremas que extraiu desse fator, com relação à teoria das neuroses e, mesmo,
ao tratamento analítico. O cerne dessa teoria – de que a experiência de
ansiedade no nascimento é o modelo de todas as subseqüentes situações de perigo
-, ele já o encontrou pronto. Se nos detivermos um pouco nessas situações de
perigo, podemos dizer que, de fato, para cada estádio do desenvolvimento está
reservado, como sendo adequado para esse desenvolvimento, um especial fator
determinante de ansiedade. O perigo de desamparo psíquico ajusta-se ao estádio
da imaturidade inicial do ego; o perigo de perda de um objeto (ou perda do
amor) ajusta-se à falta de auto-suficiência dos primeiros anos da infância; o
perigo de ser castrado ajusta-se à fase fálica; e, finalmente, o temor ao
superego, que assume uma posição especial, ajusta-se ao período de latência. No
decorrer do desenvolvimento, os antigos fatores determinantes de ansiedade
deveriam sumir, pois as situações de perigo correspondentes a eles perderam sua
importância devido ao fortalecimento do ego. Isto, contudo, só ocorre de forma
muito incompleta. Muitas pessoas são incapazes de superar o temor da perda do
amor; nunca se tornam suficientemente independentes do amor de outras pessoas
e, nesse aspecto, comportam-se como crianças. O temor ao superego normalmente
jamais deve cessar, pois, sob a forma de ansiedade moral, é indispensável nas
relações sociais, e somente em casos muito raros pode um indivíduo tornar-se
independente da sociedade humana. Algumas das antigas situações de perigo
também conseguem sobreviver em períodos posteriores, fazendo modificações
concomitantes nos fatores determinantes de ansiedade. Assim, por exemplo, o
perigo de castração persiste sob a marca da fobia à sífilis. É verdade que,
como adulto, se sabe que a castração não mais faz parte do costume de punir
excessos de desejos sexuais, mas, por outro lado, verifica-se que a liberdade
instintual desse tipo é ameaçada por graves doenças. Não há dúvida de que as
pessoas que qualificamos como neuróticas, permanecem infantis em sua atitude
relativa ao perigo e não venceram as obsoletas causas determinantes de
ansiedade. Podemos tomar isto como contribuição concreta para a caracterização
dos neuróticos; não é muito fácil dizer por que isto tem de ser assim. (...) E
nisto aprendemos duas coisas novas: primeiro, que a ansiedade faz a repressão e
não, conforme costumávamos pensar, o oposto; e [segundo], que a situação
instintual temida remonta basicamente a uma situação de perigo externa. – p. 91/92;
_ A teoria dos instintos é,
por assim dizer, nossa mitologia. Os instintos são entidades míticas,
magníficos em sua imprecisão. Em nosso trabalho, não podemos desprezá-los, nem
por um só momento, de vez que nunca estamos seguros de os estarmos vendo
claramente. Os senhores sabem como o pensamento popular lida com os instintos.
As pessoas supõem existirem tantos e tão diversos instintos quantos aqueles de
que elas necessitam no momento – um instinto de auto-afirmação, um instinto de
imitação, um instinto lúdico, um instinto gregário e muitos outros semelhantes.
– p. 98;
_ considerações sobre os dois
estágios da fase sádico-anal. – p. 101/102;
_ a defecação é o modelo do
ato do nascimento. – p. 103;
_ considerações sobre o
erotismo uretral. – p. 104;
_ considerações sobre a
agressividade tolhida. – p. 107;
_ considerações sobre a
compulsão à repetição. – p. 108/109;
_ considerações sobre a origem
da necessidade inconsciente de punição e do sentimento de culpa. – p. 111;
Conferência XXXIII -
Feminilidade
_ considerações sobre as
conferências anteriores. – p. 113;
_ considerações sobre as fases
iniciais do desenvolvimento libidinal. – p. 118/120;
_ considerações sobre a fase
pré-edipiana nas meninas. – p. 120/121;
_ A descoberta de que é castrada representa um marco decisivo no
crescimento da menina. Daí partem três linhas de desenvolvimento possíveis: uma
conduz à inibição sexual ou à neurose, outra, à modificação do caráter no
sentido de um complexo de masculinidade, a terceira, finalmente, à feminilidade
normal. Temos aprendido uma quantidade considerável, embora não tudo, a
respeito das três. – p. 126;
_ O complexo de castração prepara para o complexo de Édipo, em vez de
destruí-lo; a menina é forçada a abandonar a ligação com sua mãe através da
influência de sua inveja do pênis, e entra na situação edipiana como se esta
fora um refúgio. Na ausência do temor de castração, falta o motivo principal
que leva o menino a superar o complexo de Édipo. As meninas permanecem nele por
um tempo indeterminado; destroem-no tardiamente e, ainda assim, de modo
incompleto. Nessas circunstâncias, a formação do superego deve sofrer um
prejuízo; não consegue atingir a intensidade e a independência, as quais lhe
conferem sua importância cultural, e as feministas não gostam quando lhes
assinalamos os efeitos desse fator sobre o caráter feminino em geral. – p. 129;
_ A identificação de uma mulher com sua mãe permite-nos distinguir duas
camadas: a pré-edipiana, sobre a qual se apóia a vinculação afetuosa com a mãe
e esta é tomada como modelo, e a camada subseqüente, advinda do complexo de
Édipo, que procura eliminar a mãe e tomar-lhe o lugar junto ao pai. Sem dúvida
justifica-se dizermos que muita coisa de ambas subsiste no futuro e que nenhuma
das duas é adequadamente superada no curso do desenvolvimento. A fase da
ligação afetuosa pré-edipiana, contudo, é decisiva para o futuro de uma mulher:
durante essa fase são feitos os preparativos para a aquisição das
características com que mais tarde exercerá seu papel na função sexual e
realizará suas inestimáveis tarefas sociais. É também nessa identificação que
ela adquire aquilo que constitui motivo de atração para um homem; a ligação
edipiana deste à sua mãe transfigura a atração da mulher em paixão. No entanto,
com quanta freqüência sucede que apenas o filho obtém aquilo a que o homem
aspirava! Tem-se a impressão de que o amor do homem e o amor da mulher
psicologicamente sofrem de uma diferença de fase. – p. 133;
Conferência XXXIV –
Explicações, aplicações e orientações
_ considerações como se
comportar em relação à psicanálise. – p. 135/137;
_ Há um ditado corrente segundo o qual nós deveríamos aprender com os
nossos inimigos. Confesso que nunca consegui fazer isso; mas pensei que, de
qualquer modo, seria instrutivo para os senhores se eu empreendesse um estudo
de todas as acusações e objeções que os adversários da psicanálise levantaram
contra ela, e se também assinalasse as injustiças e ofensas contra a lógica que
tão facilmente nelas poderiam ser reveladas. – p. 138;
_ Bem, procurarei fazê-lo; só que com brevidade, pois contribuem menos
para uma compreensão da análise do que os senhores poderiam esperar. Estou
certo de que os senhores estarão pensando, em primeiro lugar, na ‘Individual
Psychology’, de Adler, que, na América, por exemplo, é considerada uma linha de
pensamento colateral com a nossa psicanálise e no mesmo nível desta, sendo
regularmente mencionada ao lado da psicanálise. Na realidade, a psicologia do
indivíduo muito pouco tem a ver com a psicanálise, mas, como decorrência de
determinadas circunstâncias históricas, leva, em relação a esta e às suas
custas, uma espécie de existência parasita. – p. 139;
_ críticas a Adler. – p. 139/141;
_ considerações sobre a
compulsão à repetição da psicologia do indivíduo de Adler. – p. 141;
_ Uma das primeiras aplicações da psicanálise consistiu em nos ensinar a
compreender a oposição que os nossos contemporâneos nos movem pelo fato de
exercermos a psicanálise. Outras aplicações, de natureza objetiva, podem
reivindicar um interesse mais geral. Nosso primeiro propósito, naturalmente,
foi o de compreender os distúrbios da mente humana, porque uma notável
experiência mostrara que, aqui, a compreensão e a cura quase coincidem, que
existe reciprocidade entre uma e outra. E por muito tempo este foi nosso único
propósito. Depois, no entanto, percebemos as estreitas relações, a própria
identidade interna entre processos patológicos e aquilo que se conhece como processos
normais. A psicanálise tornou-se psicologia profunda; e, de vez que nada
daquilo que o homem cria ou faz, é compreensível sem a cooperação da
psicologia, as aplicações da psicanálise a numerosas áreas do conhecimento, em
especial àquelas das ciências mentais, ocorreram espontaneamente, entraram em
cena e requereram debate. – p. 143;
_ considerações sobre a
aplicação da psicanálise à educação. – p. 145;
_ Portanto, víamo-nos compelidos a conhecer as peculiaridades da infância;
aprendemos uma grande quantidade de coisas, que não poderíamos aprender senão
por meio da análise, e pudemos corrigir muitas opiniões, geralmente aceitas,
acerca da infância. Reconhecemos que os primeiros anos da infância possuíam uma
importância especial – até a idade de cinco anos, possivelmente – por diversos
motivos. Em primeiro lugar, porque esses anos incluíam o primeiro surgimento da
sexualidade, que deixa após si fatores causais decisivos para a vida sexual da
maturidade. Em segundo lugar, porque as impressões desse período incidem sobre
um ego imaturo e débil e atuam sobre este como traumas. O ego não consegue
desviar as tempestades emocionais que esses traumas de algum modo provocam,
exceto por meio da repressão, e assim adquire na infância todas as disposições
para uma doença ulterior e para distúrbios funcionais. Percebemos que a
dificuldade da infância reside no fato de que, num curto espaço de tempo, uma
criança tem de assimilar os resultados de uma evolução cultural que se estende
por milhares de anos, incluindo-se aí a aquisição do controle de seus instintos
e a adaptação à sociedade – ou, pelo menos, um começo dessas duas coisas. Só
pode efetuar uma parte dessa modificação através do seu desenvolvimento; muitas
coisas devem ser impostas à criança pela educação. – p. 145;
_ Proponho-me, ainda, senhoras
e senhores, dizer-lhes algumas palavras a respeito da psicanálise como forma de
terapia. Discuti o lado teórico da questão, há quinze anos atrás, e não consigo
formulá-lo de nenhuma outra maneira, hoje; agora, tenho de contar-lhes a nossa
experiência durante esse intervalo. Como sabem, a psicanálise originou-se como
método de tratamento; ela o desenvolveu muito, mas não abandonou seu chão de
origem e ainda está vinculada ao seu contato com os pacientes para aumentar sua
profundidade e se desenvolver mais. As informações acumuladas, de que derivamos
nossas teorias, não poderiam ser obtidas de outra maneira. As falhas que nós,
na qualidade de terapeutas, encontramos, constantemente nos propõem novas
tarefas, e as exigências da vida real estão efetivamente em guarda contra um
exagero da especulação, da qual não podemos, afinal, prescindir em nosso
trabalho. Já faz muito tempo, debati os meios usados pela psicanálise para
auxiliar os pacientes, quando os auxilia, e o método pelo qual o faz; hoje
perguntarei sobre quanto ela realiza.
Talvez os senhores saibam que nunca fui um
terapeuta entusiasta; não há o perigo de eu fazer mau uso desta conferência
excedendo-me em elogios. De preferência, diria antes pouco do que muito. Durante
o período em que eu era o único analista, as pessoas ostensivamente amáveis
para com minhas idéias costumavam dizer-me: ‘Tudo isto é muito bonito e
inteligente, mas me mostre um caso que o senhor tenha curado pela
análise.’ – p. 149;
_ A radical inacessibilidade das psicoses ao tratamento analítico, tendo
em vista a estreita relação delas com as neuroses, deveria limitar nossas
pretensões com referência às últimas. A eficácia terapêutica da psicanálise
permanece tolhida por numerosos fatores de peso e dificilmente abordáveis.
Quanto ao caso das crianças, em que se pode contar com os maiores êxitos, as
dificuldades são externas, influenciadas pelo relacionamento com os pais,
embora tais dificuldades, afinal, necessariamente façam parte da condição da
criança. Quanto aos adultos, as dificuldades surgem, em primeiro lugar, de dois
fatores: o montante da rigidez psíquica presente e a forma da doença, com tudo
o que isto abrange em termos de fatores determinantes mais profundos. –
p. 151;
Conferência XXXV – A questão
de uma Weltanschauung
_ considerações sobre a
relação da psicanálise com a filosofia, a ciência e em especial com a religião.
– p. 155/177;
A aquisição e o controle do
fogo (1932[1931])
_ A correlação entre fogo e
micção, que é o aspecto central deste estudo sobre o mito de Prometeu, há muito
tempo era assunto familiar a Freud. Proporciona a chave para a análise do
primeiro sonho no caso clínico de ‘Dora’ (1905e [1901]), Edição Standard Brasileira, Vol. VII, pág. 61 e segs.,
IMAGO Editora, 1972, e reaparece, mais uma vez, na análise bem posterior do
‘Homem dos Lobos’ (1918b)
[1914]), ibid., Vol. XVII, pág. 116, IMAGO Editora, 1976. Em ambos esses casos,
o tópico enurese está envolvido, e este se liga a uma linha principal do
presente artigo – a estreita associação, fisiológica e psicológica, entre as
duas funções do pênis. Esse aspecto também possui uma longa história, que se
encontra nos escritos anteriores de Freud, de vez que igualmente está
comentado, de forma explícita, na análise de ‘Dora’ (ibid., Vol. VII, pág. 29).
E já anteriormente, em uma carta a Fliess, em 27 de setembro de 1898, Freud
declarara que ‘uma criança que regularmente urina na cama até os sete anos…,
deve ter experimentado excitação sexual na infância’ (Freud, 1950a, Carta 97). Repetidamente
insistiu, em diversas ocasiões, na equivalência entre enurese e masturbação,
assim por exemplo: no caso ‘Dora’, Edição Standard
Brasileira, Vol. VII, págs. 76-7, IMAGO Editora, 1972; nos Três Ensaios (1905d), ibid., pág. 195; no artigo
sobre os ataques histéricos (1909a),
Standard Ed., 9,
233, e, bem posteriormente, em ‘A Dissolução do Complexo de Édipo’ (1924d), Edição Standard Brasileira, Vol.
XIX, pág. 219, IMAGO Editora, 1976, e no artigo sobre a diferença anatômica
entre os sexos (1925j),
ibid., Vol. XIX, pág. 311. – p. 181/182;
_ Em meu trabalho O
Mal-Estar na Civilização [1930a], em nota de rodapé, mencionei,
embora apenas de passagem, uma conjetura que se poderia formular, com base em
material psicanalítico, a respeito da fundamental aquisição humana do controle
sobre o fogo. Sou levado a mais uma vez retomar o tema em virtude da
contestação feita por Albrecht Schaeffer (1930) e da surpreendente referência
de Erlenmeyer, no artigo precedente, à lei mongol contra ‘mijar nas cinzas’.
Pois eu penso que a minha hipótese – de que, com a
finalidade de conseguir controle sobre o fogo, os homens tiveram de renunciar
ao desejo, mesclado de homossexualismo, de apagá-lo com um jato de urina – pode
ser confirmada mediante uma interpretação do mito grego de Prometeu, contanto
que tenhamos em mente as distorções que se deve esperar ocorram na transição
dos fatos ao conteúdo de um mito. Essas distorções são da mesma espécie, e não
piores, que aquelas que reconhecemos diariamente, quando reconstruímos a partir
dos sonhos dos pacientes as experiências de sua infância reprimidas, porém
extremamente importantes. Os mecanismos utilizados nas distorções a que me
refiro são a representação simbólica e a transformação no oposto. – p. 183;
_ A transformação no oposto
está mais radicalmente representada num terceiro aspecto da lenda, na punição
do Portador do Fogo. Prometeu foi acorrentado a um rochedo, e todos os dias um
abutre vinha comer-lhe uma parte do fígado. Também nas lendas referentes ao
fogo, em outros povos, entra em cena um pássaro, que deve ter algo a ver com o
assunto; mas, por enquanto, não tentarei uma interpretação. Por outro lado,
sentimo-nos em chão firme quando se trata de explicar por que o fígado foi
escolhido como o local do castigo. Em épocas primitivas, o fígado era
considerado a sede de todas as paixões e desejos; daí, uma punição como a de
Prometeu ter sido a correta para um criminoso que se deixara arrastar pelo
instinto, que havia cometido uma ofensa sob a instigação de maus desejos. – p. 185;
_ O órgão sexual masculino tem
duas funções; e existem pessoas para as quais essa duplicidade constitui motivo
de desagrado. Serve para o esvaziamento da bexiga e realiza o ato de amor que
satisfaz o desejo da libido genital. A criança ainda acredita que pode unir as
duas funções. Segundo uma teoria infantil, as crianças são feitas quando o
homem urina dentro do corpo da mulher. Entretanto, o adulto sabe que, na
realidade, esses atos são mutuamente inconciliáveis – como são incompatíveis o
fogo e a água. Quando o pênis se encontra no estado de excitação, que o levou a
ser comparado a um pássaro, e enquanto estão sendo experimentadas sensações que
sugerem o calor do fogo, a micção é impossível; e, ao contrário, quando o órgão
está servindo para eliminar urina (a água do corpo), toda as suas conexões com
a função genital parecem ter-se extinguido. A antítese entre as duas funções
poderia levar-nos a dizer que o homem apaga o seu próprio fogo com sua própria
água. E o homem primitivo, que tinha de compreender o mundo externo com ajuda
de suas próprias sensações e estados corporais, certamente não teria deixado de
perceber e utilizar as analogias que lhe foram mostradas mediante o
comportamento do fogo. – p. 188;
Por que a guerra? (1933[1932])
_ correspondência trocada
entre Freud e Einstein. – p. 193/208;
_ De acordo com nossa
hipótese, os instintos humanos são de apenas dois tipos: aqueles que tendem a
preservar e a unir – que denominamos ‘eróticos’, exatamente no mesmo sentido em
que Platão usa a palavra ‘Eros’ em seu Symposium,
ou ‘sexuais’, com uma deliberada ampliação da concepção popular de
‘sexualidade’ -; e aqueles que tendem a destruir e matar, os quais agrupamos
como instinto agressivo ou destrutivo. Como o senhor vê, isto não é senão uma
formulação teórica da universalmente conhecida oposição entre amor e ódio, que
talvez possa ter alguma relação básica com a polaridade entre atração e
repulsão, que desempenha um papel na sua área de conhecimentos. Entretanto, não
devemos ser demasiado apressados em introduzir juízos éticos de bem e de mal.
Nenhum desses dois instintos é menos essencial do que o outro; os fenômenos da
vida surgem da ação confluente ou mutuamente contrária de ambos. – p. 202/203;
_ Nossa teoria mitológica dos
instintos facilita-nos encontrar a fórmula para métodos indiretos de combater a
guerra. Se o desejo de aderir à guerra é um efeito do instinto destrutivo, a
recomendação mais evidente será contrapor-lhe o seu antagonista, Eros. Tudo o
que favorece o estreitamento dos vínculos emocionais entre os homens deve atuar
contra a guerra. Esses vínculos podem ser de dois tipos. Em primeiro lugar,
podem ser relações semelhantes àquelas relativas a um objeto amado, embora não
tenham uma finalidade sexual. A psicanálise não tem motivo porque se
envergonhar se nesse ponto fala de amor, pois a própria religião emprega as
mesmas palavras: ‘Ama a teu próximo como a ti mesmo.’ Isto, todavia, é mais
facilmente dito do que praticado. O segundo vínculo emocional é o que utiliza a
identificação. Tudo o que leva os homens a compartilhar de interesses
importantes produz essa comunhão de sentimento, essas identificações. E a
estrutura da sociedade humana se baseia nelas, em grande escala. – p. 205;
Meu contato com Josef
Popper-Lynkeus (1932)
_ Devo pedir desculpas se até
aqui falei tanto a respeito de mim mesmo e de meu trabalho relativo aos
problemas do sonho; mas isto foi um preliminar necessário para o que vem a
seguir. Minha explicação da distorção onírica parecia-me nova: em parte alguma
eu encontrara qualquer coisa parecida. Anos depois (já não consigo lembrar
quando), encontrei o livro de Josef Popper-Lynkeus Phantasien eines Realisten. Uma das histórias
deste livro tinha como título ‘Träumen wie Wachen’ [‘Sonhar Acordado’], e não
podia deixar de suscitar meu mais profundo interesse. Havia nele a descrição de
um homem que podia gabar-se de jamais ter sonhado qualquer coisa absurda. Seus
sonhos podiam ser fantásticos, como contos de fadas, mas não eram tão
desprovidos de concordância com o mundo desperto, que fosse possível dizer
terminantemente que ‘eram impossíveis ou absurdos em si mesmos’. Traduzindo
para a minha forma de expressar, isto significa que, no caso desse homem, não
ocorria distorção onírica; o motivo apresentado para a ausência desta explicava
ao mesmo tempo o motivo de sua ocorrência. Popper deu ao homem uma compreensão
interna (insight)
completa dos motivos de sua peculiaridade. Fê-lo dizer: ‘A ordem e a harmonia
reinam tanto em meus pensamentos como em meus sentimentos, e esses dois não
lutam entre si… Eu sou um só e indiviso. Outras pessoas estão divididas e suas
duas partes – vigília e sonho – estão quase permanentemente em guerra uma com a
outra.’ E ainda, quanto à interpretação dos sonhos: ‘Certamente que essa não é
uma fácil tarefa; mas com um pouco de atenção por parte daquele que sonha, deve
sem dúvida alcançar êxito. – Você pergunta por que é que na sua maioria não
alcança êxito? Em outros como você, sempre parece haver algo que jaz oculto em
seus sonhos, algo de impuro num sentido especial e mais elevado, uma certa
qualidade secreta em seu ser que é difícil de acompanhar. E eis por que seus
sonhos, tão amiúde, parecem estar destituídos de significado ou mesmo ser
absurdos. Mas no sentido mais profundo não é isso de modo algum o que ocorre;
realmente, não pode ser assim absolutamente – pois é sempre o mesmo homem, quer
esteja acordado, quer sonhando.’ – p. 216;
_ Onde não houvesse um
conflito desse tipo e não fosse necessária a repressão, os sonhos não poderiam
ser estranhos nem absurdos. O homem que sonhasse de modo não diverso do modo
como pensa quando acordado, teria garantido para si, segundo Popper, a própria
condição de harmonia interna que, na qualidade de reformador social, almejava
na formação do corpo político. E se a ciência nos informa que um homem assim,
inteiramente isento de maldade e falsidade, isento de repressões, não existe e
não poderia sobreviver, podemos, não obstante, suspeitar que, na medida em que
é possível uma aproximação a semelhante ideal, este encontrou sua concretização
na pessoa do mesmo Popper. – p. 217;
Sándor Ferenczi (1933)
_ comentários póstumos à vida
e obra de Ferenczi. – p. 223/225;
As sutilezas de um ato falho
(1935)
Um distúrbio de memória na
Acrópole (1936)
_ Geralmente as pessoas
adoecem de frustração, da não-realização de alguma necessidade vital ou de um
desejo. A estas pessoas, contudo, sucede o contrário; adoecem, ou, até mesmo,
ficam aniquiladas, porque um desejo seu, excepcionalmente intenso, realizou-se.
O contraste entre as duas situações não é tão grande como parece à primeira
vista. O que acontece no caso paradoxal é simplesmente que o lugar da
frustração externa é assumido por uma frustração interna. O sofredor não se
permite a felicidade: a frustração interna ordena-lhe que se aferre à
frustração externa. Mas por quê? Porque – esta é a resposta, em muitos casos –
a pessoa não pode esperar que o Destino lhe proporcione algo tão bom. De fato,
é outro exemplo de ‘bom demais para ser verdade’, é a expressão de um
pessimismo do qual uma grande parte parece estar presente em muitos dentre nós.
Em um outro grupo de casos, como naqueles que se arruinam com o êxito,
encontramos um sentimento de culpa ou de inferioridade que pode ser traduzido
assim: ‘Não mereço tanta felicidade, não mereço.’ Mas esses dois motivos são,
em essência, o mesmo, por ser um apenas uma projeção do outro. Conforme há
muito já se sabe, o Destino, que esperamos nos trate tão mal, é materialização
de nossa consciência, do severo superego que há dentro de nós, sendo ele
próprio um remanescente da instância primitiva de nossa infância. – p. 240;
_ considerações sobre o
fenômeno ‘deja vu’. – p. 242/243;
_ Nesse ponto, porém,
deparamos com a solução do pequeno problema da causa pela qual, já em Trieste,
interferíamos em nosso regozijo pela viagem a Atenas. Pode ser que um
sentimento de culpa estivesse vinculado à satisfação de havermos realizado
tanto: havia nessa conexão algo de errado, que desde os primeiros tempos tinha sido
proibido. Era alguma coisa relacionada com as críticas da criança ao pai, com a
desvalorização que tomou o lugar da supervalorização do início da infância.
Parece como se a essência do êxito consistisse em ter realizado mais do que o
pai realizou, e como se ainda fosse proibido ultrapassar o pai.
Como acréscimo a esse motivo, cuja validade é
geral, estava presente um fator especial, em nosso caso particular. O próprio
tema referente a Atenas e à Acrópole continha provas da superioridade do filho.
Nosso pai se dedicara ao comércio, não tinha tido instrução secundária, e
Atenas podia não ter significado muito para ele. Assim, o que interferia em
nossa satisfação de viajar a Atenas era um sentimento de respeito filial.
E agora o senhor não mais haverá de se admirar de que a lembrança desse
incidente na Acrópole me tenha perturbado tantas vezes, depois que envelheci,
agora que tenho de ter paciência e não posso mais viajar. – p. 245;
Breves escritos (1931-1936)
Carta a Georg Fuchs (1931)
Prefácio ao Dicionário de
Psicanálise, de Richard Sterba (1936[1932])
Prefácio a A Vida e as Obras
de Edgar Allan Poe: Uma Interpretação Psicanalítica, de Marie Bonaparte (1933)
A Thomas Mann, no seu
Sexagésimo Aniversário (1935)
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