Resumo
do Livro XXI – O Futuro de uma Ilusão, o Mal-estar na Civilização e outros
trabalhos (1927-1931)
O
Futuro de uma Ilusão (1927)
I
_ Quando já se viveu por muito
tempo numa civilização específica e com freqüência se tentou descobrir
quais foram suas origens e ao longo de que caminho ela se desenvolveu, fica-se
às vezes tentado a voltar o olhar para outra direção e indagar qual o destino
que a espera e quais as transformações que está fadada a experimentar. Logo,
porém, se descobre que, desde o início, o valor de uma indagação desse tipo é
diminuído por diversos fatores, sobretudo pelo fato de apenas poucas pessoas
poderem abranger a atividade humana em toda a sua amplitude. A maioria das
pessoas foi obrigada a restringir-se a somente um ou a alguns de seus campos.
Entretanto, quanto menos um homem conhece a respeito do passado e do presente,
mais inseguro terá de mostrar-se seu juízo sobre o futuro. – p. 15;
_ A questão decisiva consiste
em saber se, e até que ponto, é possível diminuir o ônus dos sacrifícios
instintuais impostos aos homens, reconciliá-los com aqueles que necessariamente
devem permanecer e fornecer-lhes uma compensação.
– p. 17;
II
_ Deslizamos, sem nos darmos
conta, do campo econômico para o da psicologia. A princípio, ficamos tentados a
procurar as vantagens da civilização na riqueza disponível e nos regulamentos
para sua distribuição. Entretanto, com o reconhecimento de que toda civilização
repousa numa compulsão a trabalhar e numa renúncia ao instinto, provocando,
portanto, inevitavelmente, a oposição dos atingidos por essas exigências,
tornou-se claro que a civilização não pode consistir, principal ou unicamente
na própria riqueza, nos meios de adquiri-la e nas disposições para sua
distribuição, de uma vez que essas coisas são ameaçadas pela rebeldia e pela
mania destrutiva dos participantes da civilização. Junto com a riqueza
deparamo-nos agora com os meios pelos quais a civilização pode ser defendida:
medidas de coerção e outras, que se destinam a reconciliar os homens com ela e
a recompensá-los por seus sacrifícios. Estas últimas podem ser descritas como
as vantagens mentais da civilização. – p. 20;
_ Como já descobrimos há muito
tempo, a arte oferece satisfações substitutivas para as mais antigas e mais
profundamente sentidas renúncias culturais, e, por esse motivo, ela serve, como
nenhuma outra coisa, para reconciliar o homem com os sacrifícios que tem de
fazer em benefício da civilização. Por outro lado, as criações da arte elevam
seus sentimentos de identificação, de que toda unidade cultural carece tanto,
proporcionando uma ocasião para a partilha de experiências emocionais altamente
valorizadas. E quando essas criações retratam as realizações de sua cultura
específica e lhe trazem à mente os ideais dela de maneira impressiva,
contribuem também para sua satisfação narcísica.
– p. 23;
III
_ Foi assim que se criou um
cabedal de idéias, nascido da necessidade que tem o homem de tornar tolerável
seu desamparo, e construído com o material das lembranças do desamparo de sua
própria infância e da infância da raça humana. Pode-se perceber claramente que
a posse dessas idéias o protege em dois sentidos: contra os perigos da natureza
e do Destino, e contra os danos que o ameaçam por parte da própria sociedade
humana. Reside aqui a essência da questão. A vida neste mundo serve a um
propósito mais elevado; indubitavelmente, não é fácil adivinhar qual ele seja,
mas decerto significa um aperfeiçoamento da natureza do homem. É provavelmente
a parte espiritual deste, a alma, que, no decurso do tempo, tão lenta e
relutantemente, se desprendeu do corpo, que constitui o objeto desta elevação e
exaltação. Tudo o que acontece neste mundo constitui expressão das intenções de
uma inteligência superior para conosco, inteligência que, ao final, embora seus
caminhos e desvios sejam difíceis de acompanhar, ordena tudo para o melhor –
isto é, torna-o desfrutável por nós. Sobre cada um de nós vela uma Providência
benevolente que só aparentemente é severa e que não permitirá que nos tornemos
um joguete das forças poderosas e impiedosas da natureza. A própria morte não é
uma extinção, não constitui um retorno ao inanimado inorgânico, mas o começo de
um novo tipo de existência que se acha no caminho da evolução para algo mais
elevado. E, olhando na outra direção, essa visão anuncia que as mesmas leis
morais que nossas civilizações estabeleceram, governam também o universo
inteiro, com a única diferença de serem mantidas por uma corte suprema de
justiça incomparavelmente mais poderosa e harmoniosa. Ao final, todo o bem é
recompensado e todo o mal, punido, se não na realidade, sob esta forma de vida,
pelo menos em existências posteriores que se iniciam após a morte. Assim, todos
os terrores, sofrimentos e asperezas da vida estão destinados a se desfazer. A
vida após a morte, que continua a vida sobre a terra exatamente como a parte
invisível do espectro se une à parte visível, nos conduz à perfeição que talvez
tenhamos deixado de atingir aqui. E a sabedoria superior que dirige esse curso
das coisas, a bondade infinita que nela se expressa, a justiça que nela atinge
seu objetivo, são os atributos dos seres divinos que também nos criaram, e ao
mundo como um todo, ou melhor, de um ser divino no qual, em nossa civilização,
todos os deuses da Antiguidade foram condensados. O povo que pela primeira vez
alcançou êxito em concentrar assim os atributos divinos não ficou pouco
orgulhoso de seu progresso. Descerrara à vista o pai que sempre se achara
oculto por detrás de toda figura divina, como seu núcleo. Fundamentalmente,
isso constituía um retorno aos primórdios históricos da idéia de Deus. Agora
que este era uma figura isolada, as relações do homem com ele podiam recuperar
a intimidade e a intensidade do relacionamento do filho com o pai. Mas, já que
se fizera tanto pelo próprio pai, desejava-se obter uma recompensa, ou, pelo
menos, ser o seu filho bem amado, o seu Povo Escolhido. Muito mais tarde, a
piedosa América reivindicou ser o ‘Próprio País de Deus’, e, com referência a
uma das formas pelas quais os homens adoram a divindade, essa reivindicação é
indubitavelmente válida.
As idéias religiosas acima resumidas naturalmente
passaram por um longo processo de desenvolvimento, e diversas civilizações a
elas aderiram em diversas fases. Isolei uma dessas fases que corresponde
aproximadamente à forma final assumida por nossa atual civilização branca e
cristã. É fácil perceber que nem todas as partes desse quadro concordam
igualmente bem umas com as outras, que nem todas as perguntas que têm premência
de resposta a recebem, e que é difícil pôr de lado a contradição da experiência
cotidiana. Não obstante, tal como são, essas idéias – idéias religiosas no
sentido mais amplo – são prezadas como o mais precioso bem da civilização, como
a coisa mais preciosa que ela tem a oferecer a seus participantes. São muito
mais altamente prezadas do que todos os artifícios para conquistar tesouros da
terra, prover os homens com o sustento, evitar suas doenças, e assim por
diante. As pessoas sentem que a vida não seria tolerável se não ligassem a
essas idéias o valor que é para elas reivindicado. E é aqui que surge a
questão: o que são essas idéias à luz da psicologia? De onde derivam a estima
em que são tidas? E, para dar mais um tímido passo, qual é seu valor real? – p. 27/29;
IV
_ Tentei demonstrar que as
idéias religiosas surgiram da mesma necessidade de que se originaram todas as
outras realizações da civilização, ou seja, da necessidade de defesa contra a
força esmagadoramente superior da natureza. A isso acrescentou-se um segundo
motivo: o impulso a retificar as deficiências da civilização, que se faziam
sentir penosamente. – p. 30;
_ Nessa função [de proteção] a
mãe é logo substituída pelo pai mais forte, que retém essa posição pelo resto
da infância. Mas a atitude da criança para com o pai é matizada por uma
ambivalência peculiar. O próprio pai constitui um perigo para a criança, talvez
por causa do relacionamento anterior dela com a mãe. Assim, ela o teme tanto
quanto anseia por ele e o admira. As indicações dessa ambivalência na atitude
para com o pai estão profundamente impressas em toda religião, tal como foi
demonstrado em Totem e Tabu.
Quando o indivíduo em crescimento descobre que está destinado a permanecer uma
criança para sempre, que nunca poderá passar sem proteção contra estranhos
poderes superiores, empresta a esses poderes as características pertencentes à
figura do pai; cria para si próprio os deuses a quem teme, a quem procura
propiciar e a quem, não obstante, confia sua própria proteção. Assim, seu
anseio por um pai constitui um motivo idêntico à sua necessidade de proteção
contra as conseqüências de sua debilidade humana. É a defesa contra o desamparo
infantil que empresta suas feições características à reação do adulto ao
desamparo que ele tem de reconhecer – reação que é, exatamente, a formação da
religião. Mas não é minha intenção levar mais adiante a investigação do desenvolvimento
da idéia de Deus; aquilo em que aqui estamos interessados é o corpo acabado das
idéias religiosas, tal como transmitido pela civilização ao indivíduo. – p. 32/33;
V
_ Tentemos aplicar o mesmo
teste aos ensinamentos da religião. Quando indagamos em que se funda sua
reivindicação a ser acreditada, deparamo-nos com três respostas, que se
harmonizam de modo excepcionalmente mau umas com as outras. Em primeiro lugar,
os ensinamentos merecem ser acreditados porque já o eram por nossos primitivos
antepassados; em segundo, possuímos provas que nos foram transmitidas desde
esses mesmos tempos primevos; em terceiro, é totalmente proibido levantar a
questão de sua autenticidade. Em épocas anteriores, uma tal presunção era
punida com os mais severos castigos, e ainda hoje a sociedade olha com
desconfiança para qualquer tentativa de levantar novamente a questão. – p. 35;
VI
_ Acho que preparamos
suficientemente o caminho para uma resposta a ambas as perguntas. Ela será
encontrada se voltarmos nossa atenção para a origem psíquica das idéias
religiosas. Estas, proclamadas como ensinamentos, não constituem precipitados
de experiência ou resultados finais de pensamento: são ilusões, realizações dos
mais antigos, fortes e prementes desejos da humanidade. O segredo de sua força
reside na força desses desejos. Como já sabemos, a impressão terrificante de
desamparo na infância despertou a necessidade de proteção – de proteção através
do amor -, a qual foi proporcionada pelo pai; o reconhecimento de que esse
desamparo perdura através da vida tornou necessário aferrar-se à existência de
um pai, dessa vez, porém, um pai mais poderoso. – p. 39;
VII
_ Outra questão que me ocorreu
foi a de saber se, no fim das contas, a publicação dessa obra não poderia
causar danos. Não a uma pessoa, mas a uma causa, a causa da psicanálise, pois
não se pode negar que a psicanálise é criação minha e que se deparou com muita
desconfiança e má vontade. Se agora me apresento com esses pronunciamentos
desagradáveis, as pessoas estarão prontas a efetuar um deslocamento de minha
pessoa para a psicanálise: ‘Agora estamos vendo’, dirão, ‘aonde a psicanálise
conduz. A máscara caiu; conduz a uma negação de Deus e de um ideal moral, como
sempre desconfiamos. Para nos manter afastados dessa descoberta é que fomos
iludidos a pensar que a psicanálise não possuía Weltanschauung e que jamais poderia elaborar
uma.’ – p. 45;
_ Prossigamos com nossa
defesa. A religião, é claro, desempenhou grandes serviços para a civilização
humana. Contribuiu muito para domar os instintos associais. Mas não o
suficiente. Dominou a sociedade humana por muitos milhares de anos e teve tempo
para demonstrar o que pode alcançar. Se houvesse conseguido tornar feliz a
maioria da humanidade, confortá-la, reconciliá-la com a vida, e transformá-la
em veículo de civilização, ninguém sonharia em alterar as condições existentes.
Mas, em vez disso, o que vemos? Vemos que um número estarrecedoramente grande
de pessoas se mostram insatisfeitas e infelizes com a civilização, sentindo-a
como um jugo do qual gostariam de se libertar; e que essas pessoas fazem tudo
que se acha em seu poder para alterar a civilização, ou então vão tão longe em
sua hostilidade contra ela, que nada têm a ver com a civilização ou com uma
restrição do instinto. Nesse ponto, será objetado contra nós que esse estado de
coisas se deve ao próprio fato de a religião ter perdido parte de sua
influência sobre as massas humanas, exatamente por causa do deplorável efeito
dos progressos da ciência. Tomaremos nota dessa admissão e do motivo que lhe é
dado; dela faremos uso posteriormente para nossos próprios fins, mas a objeção
em si não possui força.
É duvidoso que os homens tenham sido em geral mais
felizes na época em que as doutrinas religiosas dispunham de uma influência
irrestrita; mais morais certamente não foram. – p. 46;
VIII
_ Observamos agora que o
cabedal de idéias religiosas inclui não apenas realizações de desejos, mas
também importantes reminiscências históricas. Essa influência concorrente de
passado e presente tem de conceder à religião uma riqueza de poder verdadeiramente
incomparável. Entretanto, talvez, com o auxílio de uma analogia, outra
descoberta ainda possa começar a alvorecer em nós. Embora não seja boa política
transplantar idéias para longe do solo em que se desenvolveram, há aqui,
contudo, uma consonância que não podemos deixar de apontar. Sabemos que a
criança humana não pode completar com sucesso seu desenvolvimento para o
estágio civilizado sem passar por uma fase de neurose, às vezes mais distinta,
outras, menos. Isso se dá porque muitas exigências instintuais que
posteriormente serão inaproveitáveis não podem ser reprimidas pelo
funcionamento racional do intelecto da criança, mas têm de ser domadas através
de atos de repressão, por trás dos quais, via de regra, se acha o motivo da
ansiedade. A maioria dessas neuroses infantis é superespontaneamente no decurso
do crescimento, sendo isso especialmente verdadeiro quanto às neuroses
obsessivas da infância. O remanescente pode ser eliminado mais tarde ainda,
através do tratamento psicanalítico. Exatamente do mesmo modo, pode-se supor, a
humanidade como um todo, em seu desenvolvimento através das eras, tombou em
estados análogos às neuroses, e isso pelos mesmos motivos –
principalmente porque nas épocas de sua ignorância e debilidade intelectual, as
renúncias instintuais indispensáveis à existência comunal do homem só haviam
sido conseguidas pela humanidade através de forças puramente emocionais. – p. 51;
_ Assim, a religião seria a
neurose obsessiva universal da humanidade; tal como a neurose obsessiva das
crianças, ela surgiu do complexo de Édipo, do relacionamento com o pai. A ser
correta essa conceituação, o afastamento da religião está fadado a ocorrer com
a fatal inevitabilidade de um processo de crescimento, e nos encontramos
exatamente nessa junção, no meio dessa fase de desenvolvimento. Nosso
comportamento, portanto, deveria modelar-se no de um professor sensato que não
se opõe a um novo desenvolvimento iminente, mas que procura facilitar-lhe o
caminho e mitigar a violência de sua irrupção. Decerto nossa analogia não
esgota a natureza essencial da religião. Se, por um lado, a religião traz
consigo restrições obsessivas, exatamente como, num indivíduo, faz a neurose
obsessiva, por outro, ela abrange um sistema de ilusões plenas de desejo
juntamente com um repúdio da realidade, tal como não encontramos, em forma
isolada, em parte alguma senão na amência, num estado de confusão alucinatória
beatífica. Mas tudo isso não passa de analogias, com a ajuda das quais nos
esforçamos por compreender um fenômeno social; a patologia do indivíduo não nos
provê de um correspondente plenamente válido. – p. 52;
IX
_ Não dispomos, porém, de
outros meios de controlar nossa natureza instintual, exceto nossa inteligência. –
p. 55;
_ Sobre outro ponto concordo
irrestritamente com você. Sem dúvida é insensato começar a tentar eliminar a
religião pela força, e de um só golpe. Acima de tudo, porque isso seria
irrealizável. O crente não permitirá que sua crença lhe seja arrancada, quer por
argumentos, quer por proibições. E mesmo que isso acontecesse com alguns, seria
crueldade. – p. 56;
X
_ Se você quiser expulsar a
religião de nossa civilização européia, só poderá fazê-lo através de outro
sistema de doutrinas, e esse sistema, desde o início, assumiria todas as
características psicológicas da religião – a mesma santidade, rigidez e
intolerância, a mesma proibição do pensamento – para sua própria defesa. – p. 59;
_ Não, nossa ciência não é uma
ilusão. Ilusão seria imaginar que aquilo que a ciência não nos pode dar,
podemos conseguir em outro lugar. – p. 63;
O Mal-estar na Civilização
(1930[1929])
Nota do editor inglês
_ O tema principal do livro –
o antagonismo irremediável entre as exigências do instinto e as restrições da
civilização – pode ter sua origem remontada a alguns dos mais antigos trabalhos
psicológicos de Freud. Assim, em 31 de maio de 1897, escreveu a Fliess que ‘o
incesto é anti-social e a civilização consiste numa progressiva renúncia a ele’
(Freud, 1950a,
Rascunho N), e, um ano depois, no artigo ‘Sexuality in the Aetiology of the
Neuroses’ (1898a),
escreveu que ‘podemos com justiça responsabilizar nossa civilização pela
disseminação da neurastenia’. – p. 68;
O Mal-estar na Civilização
I
_ É impossível fugir à
impressão de que as pessoas comumente empregam falsos padrões de avaliação –
isto é, de que buscam poder, sucesso e riqueza para elas mesmas e os admiram
nos outros, subestimando tudo aquilo que verdadeiramente tem valor na vida. No
entanto, ao formular qualquer juízo geral desse tipo, corremos o risco de
esquecer quão variados são o mundo humano e sua vida mental. Existem certos
homens que não contam com a admiração de seus contemporâneos, embora a grandeza
deles repouse em atributos e realizações completamente estranhos aos objetivos
e aos ideais da multidão. Facilmente, poder-se-ia ficar inclinado a supor que,
no final das contas, apenas uma minoria aprecia esses grandes homens, ao passo
que a maioria pouco se importa com eles. Contudo, devido não só às
discrepâncias existentes entre os pensamentos das pessoas e as suas ações, como
também à diversidade de seus impulsos plenos de desejo, as coisas provavelmente
não são tão simples assim. – p. 68;
_ considerações sobre a
sensação de eternidade ou sentimento oceânico. – p. 73;
_ As opiniões expressas por
esse amigo que tanto respeito, e que outrora já louvara a magia da ilusão num
poema, causaram-me não pequena dificuldade. Não consigo descobrir em mim esse
sentimento ‘oceânico’. Não é fácil lidar cientificamente com sentimentos.
Pode-se tentar descrever os seus sinais fisiológicos. Onde isso não é possível
– e temo que também o sentimento oceânico desafie esse tipo de caracterização
-, nada resta senão cair no conteúdo ideacional que, de forma mais imediata,
está associado ao sentimento. Se compreendi corretamente o meu amigo, ele quer
significar, com esse sentimento, a mesma coisa que o consolo oferecido por um
dramaturgo original e um tanto excêntrico ao seu herói que enfrenta uma morte auto-infligida:
‘Não podemos pular para fora deste mundo. Isso equivale a dizer que se trata do
sentimento de um vínculo indissolúvel, de ser uno com o mundo externo como um
todo. Posso observar que, para mim, isto parece, antes, algo da natureza de uma
percepção intelectual, que, na verdade, pode vir acompanhada de um tom de
sentimento, embora apenas da forma como este se acharia presente em qualquer
outro ato de pensamento de igual alcance. Segundo minha própria experiência,
não consegui convencer-me da natureza primária desse sentimento; isso, porém,
não me dá o direito de negar que ele de fato ocorra em outras pessoas. A única
questão consiste em verificar se está sendo corretamente interpretado e se deve
ser encarado como a fons et origo de toda a necessidade de religião.
Nada tenho a sugerir que possa exercer influência
decisiva na solução desse problema. A idéia de os homens receberem uma
indicação de sua vinculação com o mundo que os cerca por meio de um sentimento
imediato que, desde o início, é dirigido para esse fim, soa de modo tão
estranho e se ajusta tão mal ao contexto de nossa psicologia, que se torna
justificável a tentativa de descobrir uma explicação psicanalítica – isto é,
genética – para esse sentimento. A linha de pensamento que se segue, sugere
isso por si mesma. Normalmente, não nada de que possamos estar mais certos do
que do sentimento de nosso eu, do nosso próprio ego. O ego nos aparece como
algo autônomo e unitário, distintamente demarcado de tudo o mais. Ser essa aparência
enganadora – apesar de que, pelo contrário, o ego seja continuado para dentro,
sem qualquer delimitação nítida, por uma entidade mental inconsciente que
designamos como id, à qual o ego serve como uma espécie de fachada -,
configurou uma descoberta efetuada pela primeira vez através da pesquisa
psicanalítica, que, de resto, ainda deve ter muito mais a nos dizer sobre o
relacionamento do ego com o id. No sentido do exterior, porém, o ego de
qualquer modo, parece manter linhas de demarcação bem e claras e nítidas. Há
somente um estado – indiscutivelmente fora o comum, embora não possa
estigmatizado como patológico – em que ele não se apresenta assim. No auge do
sentimento de amor, a fronteira entre ego e objeto ameaça desaparecer. Contra
todas as provas de seus sentidos, um homem que se ache enamorado declara que
‘eu’ e ‘tu’ são um só, e está preparado para se conduzir como se isso
constituísse um fato. Aquilo que pode ser temporariamente eliminado por uma
função fisiológica [isto é, normal] deve também, naturalmente, estar sujeito a
perturbações causadas por processos patológicos. A patologia nos familiarizou
com grande número de estados em que as linhas fronteiriças entre o ego e o
mundo externo se tornam incertas, ou nos quais, na realidade, elas se acham
incorretamente traçadas. Há casos em que partes do próprio corpo de uma pessoa,
inclusive partes de sua própria vida mental – suas percepções, pensamentos e
sentimentos -, lhe parecem estranhas e como não pertencentes a seu ego; há
outros casos em que a pessoa atribui ao mundo externo coisas que claramente se
originam em seu próprio ego e que por este deveriam ser reconhecidas. Assim,
até mesmo o sentimento de nosso próprio ego está sujeito a distúrbios, e as
fronteiras do ego não são permanentes.
Uma reflexão mais apurada nos diz que o sentimento
do ego do adulto não pode ter sido o mesmo desde o início. Deve ter passado por
um processo de desenvolvimento, que, se não pode ser demonstrado, pode ser
construído com um razoável grau de probabilidade. Uma criança recém-nascida
ainda não distingue o seu ego do mundo externo como fonte das sensações que
fluem sobre ela. Aprende gradativamente a fazê-lo, reagindo a diversos
estímulos. Ela deve ficar fortemente impressionada pelo fato de certas fontes
de excitação, que posteriormente identificará como sendo os seus próprios
órgãos corporais, poderem provê-la de sensações a qualquer momento, ao passo
que, de tempos em tempos, outras fontes lhe fogem – entre as quais se destaca a
mais desejada de todas, o seio da mãe -, só reaparecendo como resultado de seus
gritos de socorro. Desse modo, pela primeira vez, o ego é contrastado por um
‘objeto’, sob a forma de algo que existe ‘exteriormente’ e que só é forçado a
surgir através de uma ação especial. – p. 74/76;
_ Desse modo, então, o ego se
separa do mundo externo. Ou, numa expressão mais correta, originalmente o ego
inclui tudo; posteriormente, separa, de si mesmo, um mundo externo. Nosso
presente sentimento do ego não passa, portanto, de apenas um mirrado resíduo de
um sentimento muito mais inclusivo – na verdade, totalmente abrangente -, que
corresponde a um vínculo mais íntimo entre o ego e o mundo que o cerca. Supondo
que há muitas pessoas em cuja vida mental esse sentimento primário do ego
persistiu em maior ou menor grau, ele existiria nelas ao lado do sentimento do
ego mais estrito e mais nitidamente demarcado da maturidade, como uma espécie
de correspondente seu. Nesse caso, o conteúdo ideacional a ele apropriado seria
exatamente o de ilimitabilidade e o de um vínculo com o universo – as mesmas
idéias com que meu amigo elucidou o sentimento ‘oceânico’. – p. 77;
_ Assim, estamos perfeitamente
dispostos a reconhecer que o sentimento ‘oceânico’ existe em muitas pessoas, e
nos inclinamos a fazer sua origem remontar a uma fase primitiva do sentimento
do ego. Surge então uma nova questão: que direito tem esse sentimento de ser
considerado como a fonte das necessidades religiosas.
Esse direito não me parece obrigatório. Afinal de
contas, um sentimento só poderá ser fonte de energia se ele próprio for
expressão de uma necessidade intensa. A derivação das necessidades religiosas,
a partir do desamparo do bebê e do anseio pelo pai que aquela necessidade
desperta, parece-me incontrovertível, desde que, em particular, o sentimento
não seja simplesmente prolongado a partir dos dias da infância, mas
permanentemente sustentado pelo medo do poder superior do Destino. Não consigo
pensar em nenhuma necessidade da infância tão intensa quanto a da proteção de
um pai. Dessa maneira, o papel desempenhado pelo sentimento oceânico, que
poderia buscar algo como a restauração do narcisismo ilimitado, é deslocado de
um lugar em primeiro plano. A origem da atitude religiosa pode ser remontada,
em linhas muito claras, até o sentimento de desamparo infantil. Pode haver algo
mais por trás disso, mas, presentemente, ainda está envolto em obscuridade.
Posso imaginar que o sentimento oceânico se tenha
vinculado à religião posteriormente. A ‘unidade com o universo’, que constitui
seu conteúdo ideacional, soa como uma primeira tentativa de consolação
religiosa, como se configurasse uma outra maneira de rejeitar o perigo que o
ego reconhece a ameaçá-lo a partir do mundo externo. Permitam-me admitir mais
uma vez que para mim é muito difícil trabalhar com essas quantidades quase
intangíveis. – p. 80/81;
II
_ Como vemos, o que decide o
propósito da vida é simplesmente o programa do princípio do prazer. Esse
princípio domina o funcionamento do aparelho psíquico desde o início. Não pode
haver dúvida sobre sua eficácia, ainda que o seu programa se encontre em desacordo
com o mundo inteiro, tanto com o macrocosmo quanto com o microcosmo. Não há
possibilidade alguma de ele ser executado; todas as normas do universo são-lhe
contrárias. Ficamos inclinados a dizer que a intenção de que o homem seja
‘feliz’ não se acha incluída no plano da ‘Criação’. O que chamamos de
felicidade no sentido mais restrito provém da satisfação (de preferência,
repentina) de necessidades represadas em alto grau, sendo, por sua natureza,
possível apenas como uma manifestação episódica. Quando qualquer situação
desejada pelo princípio do prazer se prolonga, ela produz tão-somente um
sentimento de contentamento muito tênue. Somos feitos de modo a só podermos
derivar prazer intenso de um contraste, e muito pouco de um determinado estado
de coisas. – p. 84;
_ Contra o sofrimento que pode
advir dos relacionamentos humanos, a defesa mais imediata é o isolamento
voluntário, o manter-se à distância das outras pessoas. A felicidade passível
de ser conseguida através desse método é, como vemos, a felicidade da quietude.
Contra o temível mundo externo, só podemos defender-nos por algum tipo de
afastamento dele, se pretendermos solucionar a tarefa por nós mesmos. Há, é
verdade, outro caminho, e melhor: o de tornar-se membro da comunidade humana e,
com o auxílio de uma técnica orientada pela ciência, passar para o ataque à
natureza e sujeitá-la à vontade humana. Trabalha-se então com todos para o bem
de todos. Contudo, os métodos mais interessantes de evitar o sofrimento são os
que procuram influenciar o nosso próprio organismo. Em última análise, todo
sofrimento nada mais é do que sensação; só existe na medida em que o sentimos,
e só o sentimos como conseqüência de certos modos pelos quais nosso organismo
está regulado.
– p. 85;
_ Torna-se um louco; alguém que,
a maioria das vezes, não encontra ninguém para ajudá-lo a tornar real o seu
delírio. Afirma-se, contudo, que cada um de nós se comporta, sob determinado
aspecto, como um paranóico, corrige algum aspecto do mundo que lhe é
insuportável pela elaboração de um desejo e introduz esse delírio na realidade.
Concede-se especial importância ao caso em que a tentativa de obter uma certeza
de felicidade e uma proteção contra o sofrimento através de um remodelamento
delirante da realidade, é efetuada em comum por um considerável número de
pessoas. As religiões da humanidade devem ser classificadas entre os delírios
de massa desse tipo. É desnecessário dizer que todo aquele que partilha um
delírio jamais o reconhece como tal. – p. 89;
_ A felicidade, no reduzido
sentido em que a reconhecemos como possível, constitui um problema da economia
da libido do indivíduo. Não existe uma regra de ouro que se aplique a todos:
todo homem tem de descobrir por si mesmo de que modo específico ele pode ser
salvo. Todos os tipos de diferentes fatores operarão a fim de dirigir sua
escolha. É uma questão de quanta satisfação real ele pode esperar obter do
mundo externo, de até onde é levado para tornar-se independente dele, e,
finalmente, de quanta força sente à sua disposição para alterar o mundo, a fim
de adaptá-lo a seus desejos. Nisso, sua constituição psíquica desempenhará
papel decisivo, independentemente das circunstâncias externas. O homem
predominantemente erótico dará preferência aos seus relacionamentos emocionais
com outras pessoas; o narcisista que tende a ser auto-suficiente, buscará suas
satisfações principais em seus processos mentais internos; o homem de ação
nunca abandonará o mundo externo, onde pode testar sua força. Quanto ao segundo
desses tipos, a natureza de seus talentos e a parcela de sublimação instintiva
a ele aberta decidirão onde localizará os seus interesses. Qualquer escolha
levada a um extremo condena o indivíduo a ser exposto a perigos, que surgem
caso uma técnica de viver, escolhida como exclusiva, se mostre inadequada. – p.
91;
_ Existem, como dissemos,
muitos caminhos que podem
levar à felicidade passível de ser atingida pelos homens, mas nenhum que o faça
com toda segurança. – p. 92;
III
_ Até agora, nossa
investigação sobre a felicidade não nos ensinou quase nada que já não pertença
ao conhecimento comum. E, mesmo que passemos dela para o problema de saber por
que é tão difícil para o homem ser feliz, parece que não há maior perspectiva de
aprender algo novo. Já demos a resposta, ver pela indicação das três fontes de
que nosso sofrimento provém: o poder superior da natureza, a fragilidade de
nossos próprios corpos e a inadequação das regras que procuram ajustar os
relacionamentos mútuos dos seres humanos na família, no Estado e na sociedade.
– p. 93;
_ Descobriu-se que uma pessoa
se torna neurótica porque não pode tolerar a frustração que a sociedade lhe
impõe, a serviço de seus ideais culturais, inferindo-se disso que a abolição ou
redução dessas exigências resultaria num retorno a possibilidades de
felicidade. – p. 94;
IV
_ Antes de continuarmos a
indagar sobre de que direção uma interferência poderia surgir, o reconhecimento
do amor como um dos fundamentos da civilização pode servir de pretexto para uma
digressão que nos capacitará a preencher uma lacuna por nós deixada num exame
anterior. Mencionáramos então que a descoberta feita pelo homem de que o amor
sexual (genital) lhe proporcionava as mais intensas experiências de satisfação,
fornecendo-lhe, na realidade, o protótipo de toda felicidade, deve ter-lhe
sugerido que continuasse a buscar a satisfação da felicidade em sua vida
seguindo o caminho das relações sexuais e que tornasse o erotismo genital o
ponto central dessa mesma vida. Prosseguimos dizendo que, fazendo assim, ele se
tornou dependente, de uma forma muito perigosa, de uma parte do mundo externo,
isto é, de seu objeto amoroso escolhido, expondo-se a um sofrimento extremo,
caso fosse rejeitado por esse objeto ou o perdesse através da infidelidade ou
da morte. Por essa razão, os sábios de todas as épocas nos advertiram
enfaticamente contra tal modo de vida; apesar disso, ele não perdeu seu
atrativo para grande número de pessoas.
Apesar de tudo, uma pequena minoria de pessoas
acha-se capacitada, por sua constituição, a encontrar felicidade no caminho do
amor. Fazem-se necessárias, porém, alterações mentais de grande alcance na
função do amor antes que isso possa acontecer. Essas pessoas se tornam
independentes da aquiescência de seu objeto, deslocando o que mais valorizam do
ser amado para o amar; protegem-se contra a perda do objeto, voltando seu amor,
não para objetos isolados, mas para todos os homens, e, do mesmo modo, evitam
as incertezas e as decepções do amor genital, desviando-se de seus objetivos
sexuais e transformando o instinto num impulso com uma finalidade inibida.
Ocasionam assim, nelas mesmas, um estado de sentimento imparcialmente suspenso,
constante e afetuoso, que tem pouca semelhança externa com as tempestuosas agitações
do amor genital, do qual, não obstante, se deriva. Talvez São Francisco de
Assis tenha sido quem mais longe foi na utilização do amor para beneficiar um
sentimento interno de felicidade. Além
disso, aquilo que identificamos como sendo uma das técnicas para realizar o
princípio do prazer foi amiúde vinculado à religião; essa vinculação pode
residir nas remotas regiões em que a distinção entre o ego e os objetos, ou
entre os próprios objetos, é desprezada. De acordo com determinado ponto de
vista ético, cuja motivação mais profunda se nos tornará clara dentro em pouco,
essa disposição para o amor universal pela humanidade e pelo mundo representa o
ponto mais alto que o homem pode alcançar. Mesmo nessa etapa preliminar da
discussão, gostaria de apresentar minhas duas principais objeções a essa
opinião. Um amor que não discrimina me parece privado de uma parte de seu
próprio valor, por fazer uma injustiça a seu objeto, e, em segundo lugar, nem
todos os homens são dignos de amor.
O amor que fundou a família continua a operar na
civilização, tanto em sua forma original, em que não renuncia à satisfação
sexual direta, quanto em sua forma modificada, como afeição inibida em sua
finalidade. Em cada uma delas, continua a realizar sua função de reunir consideráveis
quantidades de pessoas, de um modo mais intensivo do que o que pode ser
efetuado através do interesse pelo trabalho em comum. A maneira descuidada com
que a linguagem utiliza a palavra ‘amor’ conta com uma justificação genética.
As pessoas dão o nome de ‘amor’ ao relacionamento entre um homem e uma mulher
cujas necessidades genitais os levaram a fundar uma família; também dão esse
nome aos sentimentos positivos existentes entre pais e filhos, e entre os
irmãos e as irmãs de uma família, embora nós sejamos obrigados a
descrever isso como ‘amor inibido em sua finalidade’ ou ‘afeição’. O amor com
uma finalidade inibida foi de fato, originalmente, amor plenamente sensual, e
ainda o é no inconsciente do homem. Ambos – o amor plenamente sensual e o amor
inibido em sua finalidade – estendem-se exteriormente à família e criam novos
vínculos com pessoas anteriormente estranhas. O amor genital conduz à formação
de novas famílias, e o amor inibido em sua finalidade, a ‘amizades’ que se
tornam valiosas, de um ponto de vista cultural, por fugirem a algumas das
limitações do amor genital, como, por exemplo, à sua exclusividade. No decurso
do desenvolvimento, porém, a relação do amor com a civilização perde sua falta
de ambigüidade. Por um lado, o amor se coloca em oposição aos interesses da
civilização; por outro, esta ameaça o amor com restrições substanciais. – p. 107/108;
V
_ O trabalho psicanalítico nos
mostrou que as frustrações da vida sexual são precisamente aquelas que as
pessoas conhecidas como neuróticas não podem tolerar. O neurótico cria em seus
sintomas satisfações substitutivas para si, e estas ou lhe causam sofrimento em
si próprias, ou se lhe tornam fontes de sofrimento pela criação de dificuldades
em seus relacionamentos com o meio ambiente e a sociedade a que pertence. Esse
último fato é fácil de compreender; o primeiro nos apresenta um novo problema.
A civilização, porém, exige outros sacrifícios, além do da satisfação sexual. –
p. 113;
_ A pista pode ser fornecida
por uma das exigências ideais, tal como as denominamos, da sociedade
civilizada. Diz ela: ‘Amarás a teu próximo como a ti mesmo’. Essa exigência,
conhecida em todo o mundo, é, indubitavelmente, mais antiga que o cristianismo,
que a apresenta como sua reivindicação mais gloriosa. No entanto, ela não é
decerto excessivamente antiga; mesmo já em tempos históricos, ainda era
estranha à humanidade. Se adotarmos uma atitude ingênua para com ela, como se a
estivéssemos ouvindo pela primeira vez, não poderemos reprimir um sentimento de
surpresa e perplexidade. Por que deveremos agir desse modo? Que bem isso nos
trará? Acima de tudo, como conseguiremos agir desse modo? Como isso pode ser
possível? (...) Qual é o sentido de um preceito enunciado com tanta solenidade,
se seu cumprimento não pode ser recomendado como razoável? – p. 114/115;
_ Através de um exame mais
detalhado, descubro ainda outras dificuldades. Não meramente esse estranho é,
em geral, indigno de meu amor; honestamente, tenho de confessar que ele possui
mais direito a minha hostilidade e, até mesmo, meu ódio. (...) Na verdade, se
aquele imponente mandamento dissesse ‘Ama a teu próximo como este te ama’, eu
não lhe faria objeções. E há um segundo mandamento que me parece mais
incompreensível ainda e que desperta em mim uma oposição mais forte ainda.
Trata-se do mandamento ‘Ama os teus inimigos’. Refletindo sobre ele, no
entanto, percebo que estou errado em considerá-lo como uma imposição maior. No
fundo, é a mesma coisa. – p. 115;
_ O elemento de verdade por
trás disso tudo, elemento que as pessoas estão tão dispostas a repudiar, é que
os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo,
podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos
dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. –
p. 116;
_ A existência da inclinação
para a agressão, que podemos detectar em nós mesmos e supor com justiça que ela
está presente nos outros, constitui o fator que perturba nossos relacionamentos
com o nosso próximo e força a civilização a um tão elevado dispêndio [de
energia]. – p. 117;
_ Os comunistas acreditam ter
descoberto o caminho para nos livrar de nossos males. Segundo eles, o homem é
inteiramente bom e bem disposto para como seu próximo, mas a instituição da
propriedade privada corrompeu-lhe a natureza. A propriedade da riqueza privada
confere poder ao indivíduo e, com ele, a tentação de maltratar o próximo, ao
passo que o homem excluído da posse está fadado a se rebelar hostilmente contra
seu opressor. – p. 117;
_ Se eliminamos os direitos
pessoais sobre a riqueza material, ainda permanecem, no campo dos
relacionamentos sexuais, prerrogativas fadadas a se tornarem a fonte da mais
intensa antipatia e da mais violenta hostilidade entre homens que, sob outros
aspectos, se encontram em pé de igualdade. Se também removermos esse fator,
permitindo a liberdade completa da vida sexual, e assim abolirmos a família,
célula germinal da civilização, não podemos, é verdade, prever com facilidade
quais os novos caminhos que o desenvolvimento da civilização vai tomar; uma
coisa, porém, podemos esperar; é que, nesse caso, essa característica
indestrutível da natureza humana seguirá a civilização. – p. 118;
_ Se a civilização impõe
sacrifícios tão grandes, não apenas à sexualidade do homem, mas também à sua
agressividade, podemos compreender melhor porque lhe é difícil ser feliz nessa
civilização. Na realidade, o homem primitivo se achava em situação melhor, sem
conhecer restrições de instinto. Em contrapartida, suas perspectivas de desfrutar
dessa felicidade, por qualquer período de tempo, eram muito tênues. O homem
civilizado trocou uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma
parcela de segurança. – p. 119;
VI
_ Sei que no sadismo e no
masoquismo sempre vimos diante de nós manifestações do instinto destrutivo
(dirigidas para fora e para dentro), fortemente mescladas ao erotismo, mas não
posso mais entender como foi que pudemos ter desprezado a ubiqüidade da
agressividade e da destrutividade não eróticas e falhado em conceder-lhe o
devido lugar em nossa interpretação da vida. – p. 123;
_ O Demônio seria a melhor
saída como desculpa para Deus; dessa maneira, ele estaria desempenhando o mesmo
papel, como agente de descarga econômica, que o judeu desempenha no mundo do
ideal ariano. Mas, ainda assim, pode-se responsabilizar Deus pela existência do
Demônio, bem como pela existência da malignidade que este corporifica. Em vista
dessas dificuldades, ser-nos-á mais aconselhável, nas ocasiões apropriadas,
fazer uma profunda reverência à natureza profundamente moral da humanidade;
isso nos ajudará a sermos populares e, por causa disso, muita coisa nos será
perdoada. – p. 124;
_ Mas o natural instinto
agressivo do homem, a hostilidade de cada um contra todos e a de todos contra
cada um, se opõe a esse programa da civilização. Esse instinto agressivo é o
derivado e o principal representante do instinto de morte, que descobrimos lado
a lado de Eros e que com este divide o domínio do mundo. Agora, penso eu, o
significado da evolução da civilização não mais nos é obscuro. Ele deve
representar a luta entre Eros e a Morte, entre o instinto de vida e o instinto
de destruição, tal como ela se elabora na espécie humana. Nessa luta consiste
essencialmente toda a vida, e, portanto, a evolução da civilização pode ser
simplesmente descrita como a luta da espécie humana pela vida. E é essa batalha
de gigantes que nossas babás tentam apaziguar com sua cantiga de ninar sobre o
Céu. – p. 126;
VII
_ A tensão entre o severo
superego e o ego, que a ele se acha sujeito, é por nós chamada de sentimento de
culpa; expressa-se como uma necessidade de punição. A civilização, portanto,
consegue dominar o perigoso desejo de agressão do indivíduo, enfraquecendo-o,
desarmando-o e estabelecendo no seu interior um agente para cuidar dele, como
uma guarnição numa cidade conquistada. – p. 127;
_ Esse estado mental é chamado
de ‘má consciência’; na realidade, porém, não merece esse nome, pois, nessa
etapa, o sentimento de culpa é, claramente, apenas um medo da perda de amor, uma
ansiedade ‘social’. – p. 128;
_ Nesse segundo estágio de
desenvolvimento, a consciência apresenta uma peculiaridade que se achava
ausente do primeiro e que não é mais fácil de explicar, pois quanto mais
virtuoso um homem é, mais severo e desconfiado é o seu comportamento, de
maneira que, em última análise, são precisamente as pessoas que levaram mais
longe a santidade as que se censuram da pior pecaminosidade. Isso
significa que a virtude perde direito a uma certa parte da recompensa
prometida; o ego dócil e continente não desfruta da confiança de seu mentor, e
é em vão que se esforça, segundo parece, por adquiri-la. Far-se-á imediatamente
a objeção de que essas dificuldades são artificiais, e dir-se-à que uma
consciência mais estrita e mais vigilante constitui precisamente a marca distintiva
de um homem moral. Além disso, quando os santos se chamam a si próprios de
pecadores, não estão errados – considerando-se as tentações à satisfação
instintiva a que se encontram expostos em grau especialmente alto -, já que,
como todos sabem, as tentações são simplesmente aumentadas pela frustração
constante, ao passo que a sua satisfação ocasional as faz diminuir, ao menos
por algum tempo. – p. 129;
_ O campo da ética, tão cheio
de problemas, nos apresenta outro fato: a má sorte – isto é, a frustração
externa – acentua grandemente o poder da consciência no superego. Enquanto tudo
corre bem com um homem, a sua consciência é lenitiva e permite que o ego faça
todo tipo de coisas; entretanto, quando o infortúnio lhe sobrevém, ele busca
sua alma, reconhece sua pecaminosidade, eleva as exigências de sua consciência,
impõe-se abstinência e se castiga com penitências. Povos inteiros se
comportaram dessa maneira, e ainda se comportam. Isso, contudo, é facilmente
explicado pelo estágio infantil original da consciência, o qual, como vemos,
não é abandonado após a introjeção no superego, persistindo lado a lado e por
trás dele. O Destino é encarado como um substituto do agente parental. Se um
homem é desafortunado, isso significa que não é mais amado por esse poder supremo,
e, ameaçado por essa falta de amor, mais uma vez se curva ao representante
paterno em seu superego, representante que, em seus dias de boa sorte estava
pronto a desprezar. Esse fato se torna especialmente claro quando o Destino é
encarado segundo o sentido estritamente religioso de nada mais ser do que uma
expressão da Vontade Divina. O povo de Israel acreditava ser o filho favorito
de Deus e, quando o grande Pai fez com que infortúnios cada vez maiores
desabassem sobre seu povo, jamais a crença em Seu relacionamento com eles se
abalou, nem o Seu poder ou justiça foi posto em dúvida. Pelo contrário, foi
então que surgiram os profetas, que apontaram a pecaminosidade desse povo, e,
de seu sentimento de culpa, criaram-se os mandamentos superestritos de sua
religião sacerdotal. É digno de nota o comportamento tão diferente do homem
primitivo. Se ele se defronta com um infortúnio, não atribui a culpa a si
mesmo, mas a seu fetiche, que evidentemente não cumpriu o dever, e dá-lhe uma
surra, em vez de se punir a si mesmo.
Conhecemos, assim, duas origens do sentimento de
culpa: uma que surge do medo de uma autoridade, e outra, posterior, que surge
do medo do superego. – p. 130;
_ Toda renúncia ao instinto
torna-se agora uma fonte dinâmica de consciência, e cada nova renúncia aumenta
a severidade e a intolerância desta última. Se pudéssemos colocar isso mais em
harmonia com o que já sabemos sobre a história da origem da consciência,
ficaríamos tentados a defender a afirmativa paradoxal de que a consciência é o
resultado da renúncia instintiva, ou que a renúncia instintiva (imposta a nós
de fora) cria a consciência, a qual, então, exige mais renúncias instintivas. – p. 132;
_ Isso significa que, na
formação do superego e no surgimento da consciência, fatores constitucionais
inatos e influências do ambiente real atuam de forma combinada. – p. 133;
VIII
_ considerações sobre o
sentimento de culpa inconsciente. – p. 138;
_ considerações sobre
superego, consciência, sentimento de culpa, necessidade de punição e remorso. –
p. 139;
_ É este, penso eu, o lugar
para apresentar a uma consideração séria uma opinião que anteriormente
recomendei para aceitação provisória. Na literatura analítica mais recente,
mostra-se predileção pela idéia de que qualquer tipo de frustração, qualquer
satisfação instintiva frustrada, resulta, ou pode resultar numa elevação do
sentimento de culpa. – p. 141;
_ Sinto-me tentado a extrair
uma primeira vantagem dessa visão mais restrita do caso, aplicando-a ao
processo da repressão. Conforme aprendemos, os sintomas neuróticos são, em sua
essência, satisfações substitutivas para desejos sexuais não realizados. No
decorrer de nosso trabalho analítico, descobrimos, para nossa surpresa, que
talvez toda neurose oculte uma quota de sentimento inconsciente de culpa, o
qual, por sua vez, fortifica os sintomas, fazendo uso deles como punição. Agora
parece plausível formular a seguinte proposição: quando uma tendência instintiva
experimenta a repressão, seus elementos libidinais são transformados em
sintomas e seus componentes agressivos em sentimento de culpa. Mesmo que essa
proposição não passe de uma aproximação mediana à verdade, é digna de nosso
interesse. – p. 141/142;
_ A analogia entre o processo
civilizatório e o caminho do desenvolvimento individual é passível de ser
ampliada sob um aspecto importante. Pode-se afirmar que também a comunidade
desenvolve um superego sob cuja influência se produz a evolução cultural. Constituiria
tarefa tentadora para todo aquele que tenha um conhecimento das civilizações
humanas, acompanhar pormenorizadamente essa analogia. Limitar-me-ei a
apresentar alguns pontos mais notáveis. O superego de uma época de civilização
tem origem semelhante à do superego de um indivíduo. – p. 144;
_ Como já sabemos, o problema
que temos pela frente é saber como livrar-se do maior estorvo à civilização –
isto é, a inclinação, constitutiva dos seres humanos, para a agressividade
mútua; por isso mesmo, estamos particularmente interessados naquela que é
provavelmente a mais recente das ordens culturais do superego, o mandamento de
amar ao próximo como a si mesmo. (...) Caso se exija mais de um homem,
produzir-se-á nele uma revolta ou uma neurose, ou ele se tornará infeliz. O
mandamento ‘Ama a teu próximo como a ti mesmo’ constitui a defesa mais forte
contra a agressividade humana e um excelente exemplo dos procedimentos não
psicológicos do superego cultural. – p. 145;
Fetichismo (1927)
Nota do editor inglês
_ a escolha de um fetiche
constitui um efeito posterior de alguma impressão sexual, via de regra recebida
na primeira infância. – p. 151;
Fetichismo
_ Para expressá-lo de modo
mais simples: o fetiche é um substituto do pênis da mulher (da mãe) em que o
menininho outrora acreditou e que – por razões que nos são familiares – não
deseja abandonar. – p. 155;
_ Provavelmente a nenhum
indivíduo humano do sexo masculino é poupado o susto da castração à vista de um
órgão genital feminino. Por que algumas pessoas se tornam homossexuais em
conseqüência dessa impressão, ao passo que outras a desviam pela criação de um
fetiche, e a grande maioria a supera, francamente não somos capazes de
explicar. É possível que, entre todos os fatores em ação, ainda não conheçamos
os decisivos para os raros resultados patológicos. Temos de nos contentar se
pudermos explicar o que aconteceu, e deixar atualmente de lado a tarefa de
explicar por que algo não
aconteceu. – p. 157;
_ Como nesse último caso, o
interesse do indivíduo se interrompe a meio cominho, por assim dizer; é como se
a última impressão antes da estranha e traumática fosse retida como fetiche.
Assim, o pé ou o sapato devem sua preferência como fetiche – ou parte dela – à
circunstância de o menino inquisitivo espiar os órgãos genitais da mulher a
partir de baixo, das pernas para cima; peles e veludo – como por longo tempo se
suspeitou – constituem uma fixação da visão dos pêlos púbicos, que deveria ter
sido seguida pela ansiada visão do membro feminino; peças de roupa interior,
que tão freqüentemente são escolhidas como fetiche, cristalizam o momento de se
despir, o último momento em que a mulher ainda podia ser encarada como fálica.
Não sustento, porém, ser invariavelmente possível descobrir com certeza o modo
como o fetiche foi determinado. – p. 157/158;
_ Em conclusão, podemos dizer
que o protótipo normal dos fetiches é um pênis de homem, assim como o protótipo
normal de órgãos inferiores é o pequeno pênis real de uma mulher, o clitóris. –
p. 160;
O Humor (1927)
_ Há duas maneiras pelas quais
o processo humorístico pode realizar-se. Ele pode dar-se com relação a uma
pessoa isolada, que, ela própria, adota a atitude humorística, ao passo que uma
segunda pessoa representa o papel de espectador que dela deriva prazer; ou pode
efetuar-se entre duas pessoas, uma das quais não toma parte alguma no processo
humorístico, mas é tornada objeto de contemplação humorística pela outra. – p. 165;
_ Essas duas últimas
características – a rejeição das reivindicações da realidade e a efetivação do
princípio do prazer – aproximam o humor dos processos regressivos ou reativos
que tão amplamente atraem nossa atenção na psicopatologia. Seu desvio da
possibilidade de sofrimento coloca-o entre a extensa série de métodos que a
mente humana construiu a fim de fugir à compulsão para sofrer – uma série que
começa com a neurose e culmina na loucura, incluindo a intoxicação, a
auto-absorção e o êxtase. – p. 167;
_ Se é realmente o superego
que, no humor, fala essas bondosas palavras de conforto ao ego intimidado, isso
nos ensinará que ainda temos muito a aprender sobre a natureza do superego.
Ademais, nem todas as pessoas são capazes da atitude humorística. Trata-se de
um dom raro e precioso, e muitas sequer dispõem da capacidade de fruir o prazer
humorístico que lhes é apresentado. E finalmente, se o superego tenta, através
do humor, consolar o ego e protegê-lo do sofrimento, isso não contradiz sua
origem no agente paterno. – p. 169;
Uma Experiência Religiosa
(1928[1927])
_ No outono de 1927. G.S. Viereck, jornalista
teuto-americano que me fizera uma visita de boas-vindas, publicou o relato de
uma conversa comigo, no correr do qual mencionou minha falta de fé religiosa e
minha indiferença quando ao tema da sobrevivência depois da morte. – p. 175;
_ Enviei-lhe uma resposta
polida, dizendo que ficava contente em saber que essa experiência o havia
capacitado a manter sua fé. Quando a mim, Deus não fizera o mesmo comigo. Nunca
me permitira escutar uma voz interior e se, em vista da minha idade, não se
apressasse, não seria culpa minha se eu permanecesse até o fim de minha vida o
que agora sou – ‘an infidel jew’1 (um judeu infiel). – p. 176;
_ Podemos supor, portanto, que
foi assim que as coisas aconteceram. A visão de um cadáver de mulher, nu ou a
ponto de ser despido, recordou ao jovem sua mãe. Despertou nele um anseio pela
mãe que se originava de seu complexo de Édipo, e isso foi imediatamente
completado por um sentimento de indignação contra o pai. Suas idéias de ‘pai’ e
‘Deus’ ainda não se tinham separado inteiramente, de modo que seu desejo de
destruir o pai podia tornar-se consciente como dúvida a respeito da existência
de Deus e procurar justificar-se aos olhos da razão como indignação com o mau
trato dado a um objeto materno. Naturalmente, é típico do filho considerar como
mau trato o que o pai faz à mãe nas relações sexuais. O novo impulso, deslocado
para a esfera da religião, constituía apenas uma repetição da situação edipiana
e, conseqüentemente, logo se defrontou com uma sorte semelhante, ou seja, sucumbiu
a uma poderosa corrente oposta. Durante o conflito real, o nível do
deslocamento não foi sustentado: não há menção de argumentos em justificação de
Deus, não nos é dito quais foram os sinais infalíveis pelos quais Deus provou
sua existência ao que duvidava. O conflito parece ter-se desdobrado sob a forma
de uma psicose alucinatória: escutaram-se vozes interiores que enunciaram
advertências contra a resistência a Deus. Mas o resultado da luta foi mais uma
vez apresentado na esfera da religião, e era de um tipo predeterminado pelo
destino do complexo de Édipo: submissão completa à vontade de Deus Pai. O jovem
tornou-se crente e aceitou tudo o que desde a infância lhe havia sido ensinado
sobre Deus e Jesus Cristo. Tivera uma experiência religiosa e experimentaria
uma conversão. – p. 177;
Dostoievski e o Parricídio
(1928[1927])
_ Quatro facetas podem ser
distinguidas na rica personalidade de Dostoievski: o artista criador, o
neurótico, o moralista e o pecador. Como encontrar o caminho nessa
desnorteadora complexidade? – p. 183;
_ Considerar Dostoievski como
pecador ou criminoso desperta oposição violenta, que não precisa basear-se numa
apreciação filistéia dos criminosos. O motivo real para essa oposição logo se
torna visível. Num criminoso, dois traços são essenciais: um egoísmo sem
limites e um forte impulso destrutivo. Comum a ambos, e condição necessária
para sua expressão, é a ausência de amor, a falta de uma apreciação emocional
de objetos (humanos). Imediatamente nos recordamos do contraste que a isso é
apresentado por Dostoievski – sua grande necessidade de amor e sua enorme
capacidade de amar, que podem ser constatadas em manifestações de bondade
exagerada e que o levaram a amar e a ajudar onde tinha direito de odiar e ser
vingativo, tal como, por exemplo, em seus relacionamentos com a primeira esposa
e o amante dela. Assim sendo, é lícito perguntar por que ficar tentado a
classificar Dostoievski entre os criminosos. A resposta é que isso provém não
só de sua escolha de material, que isola de todas as outras as personagens
violentas, homicidas e egoístas, indicando assim a existência de tendências
semelhantes dentro dele próprio, como também de certos fatos de sua vida, tais
como sua paixão pelo jogo e sua possível confissão de um ataque sexual a uma garotinha.
A contradição é solucionada pela compreensão de que o instinto destrutivo muito
intenso de Dostoievski, que facilmente poderia tê-lo transformado num
criminoso, foi, em sua vida real, dirigido principalmente contra sua própria
pessoa (para dentro, em vez de para fora), encontrando assim sua expressão como
masoquismo e sentimento de culpa. Não obstante, sua personalidade reteve traços
sádicos em abundância, os quais se mostram em sua irritabilidade, em seu amor
de atormentar e em sua intolerância inclusive para com as pessoas que amava,
aparecendo também na maneira pela qual, como autor, ele trata seus leitores.
Assim, nas coisas mínimas, era um sádico para com os outros, e, nas maiores, um
sádico para consigo mesmo, na verdade, um masoquista, vale dizer, a pessoa mais
branda, bondosa e prestimosa possível. Selecionamos, da complexa personalidade
de Dostoievski, três fatores, um quantitativo e dois qualitativos: a
extraordinária intensidade de sua vida emocional, sua disposição instintual
inata e pervertida, que inevitavelmente o marcava para ser um sado-masoquista
ou um criminoso, e seus dotes artísticos inanalisáveis. Essa combinação poderia
muito bem existir sem neurose: há pessoas que são masoquistas completas sem
serem neuróticas. Não obstante, o equilíbrio de forças entre suas exigências
instintuais e as inibições que se lhes opunham (mais os métodos disponíveis de
sublimação) tornariam mesmo assim necessário classificar Dostoievski como sendo
aquilo que é denominado de ‘caráter instintual’. Contudo, a posição é
obscurecida pela presença simultânea da neurose, a qual, como dissemos, não
era, nas circunstâncias, inevitável, mas que surge à existência tão mais
prontamente quanto mais rica é a complicação que tem de ser dominada pelo ego,
pois a neurose, afinal de contas, é apenas um indício de que o ego não
conseguiu fazer uma síntese, e de que, ao tentar fazê-la, perdeu sua unidade. –
p. 184/185;
_ A ‘reação epiléptica’, como
esse elemento comum pode ser chamado, também está indubitavelmente à disposição
da neurose, cuja essência reside em livrar-se, através de meios somáticos, de
quantidades de excitação com as quais não pode lidar psiquicamente. Assim, a
crise epiléptica se transforma num sintoma de histeria, sendo por ela adaptada
e modificada, tal como é pelos processos sexuais normais de descarga. É,
portanto, inteiramente correto distinguir entre epilepsia orgânica e epilepsia
‘afetiva’. A significação prática disso é a de que uma pessoa que sofre do
primeiro tipo tem uma moléstia do cérebro, ao passo que a que padece do segundo
é neurótica. No primeiro caso, sua vida mental está sujeita a uma perturbação
estranha, oriunda de fora; no segundo, o distúrbio é expressão de sua própria
vida mental. – p. 186/187;
_ Dispomos de um ponto de
partida seguro. Conhecemos o significado das primeiras crises que Dostoievski
sofreu em seus primeiros anos, muito antes da incidência da ‘epilepsia’. Essas
crises tinham a significação de morte; eram anunciadas por um temor da morte e
consistiam em estados sonolentos, letárgicos. A moléstia o acometeu pela
primeira vez quando ainda menino, sob a forma de uma melancolia súbita e
infundada, uma sensação, como mais tarde contou a seu amigo Soloviev, de que
iria morrer ali mesmo. E, na realidade, seguia-se um estado exatamente
semelhante à morte real. Seu irmão Andriei conta que, mesmo quando ainda muito
moço, Fiodor costumava deixar espalhadas pequenas anotações antes de dormir,
dizendo que tinha medo de poder cair, durante a noite, num sono semelhante à
morte; assim, implorava que seu enterro fosse adiado por cinco dias.
(Fülöp-Miller e Eckstein, 1925, lx.)
Conhecemos o significado e a intenção dessas crises
semelhantes à morte. Significam uma identificação com uma pessoa morta, seja
com alguém que está realmente morto ou com alguém que ainda está vivo e que o
indivíduo deseja que morra. O último caso é o mais significativo. A crise
possui então o valor de uma punição. Quisemos que outra pessoa morresse; agora somos
nós essa outra pessoa e estamos mortos. Nesse ponto, a teoria psicanalítica
introduz a afirmação de que, para um menino, essa outra pessoa geralmente é o
pai, e de que a crise (denominada de histérica) constitui assim uma autopunição
por um desejo de morte contra um pai odiado.
O parricídio de acordo com uma conceituação bem
conhecida, é o crime principal e primevo da humanidade, assim como do
indivíduo. (Ver meu Totem e Tabu, 1912-13.) É, em todo caso, a fonte
principal do sentimento de culpa, embora não saibamos se a única; as pesquisas
ainda não conseguiram estabelecer com certeza a origem mental da culpa e da
necessidade de expiação. Mas não lhe é necessário ser a única. A situação
psicológica é complicada e exige elucidação. O relacionamento de um menino com
o pai é, como dizemos, ‘ambivalente’. Além do ódio que procura livrar-se do pai
como rival, uma certa medida de ternura por ele também está habitualmente
presente. As duas atitudes mentais se combinam para produzir a identificação
com o pai; o menino deseja estar no lugar do pai porque o admira e quer ser
como ele, e também por desejar colocá-lo fora do caminho. Todo esse
desenvolvimento se defronta com um poderoso obstáculo. Em determinado momento,
a criança vem a compreender que a tentativa de afastar o pai como rival seria
punida por ele com a castração. Assim, pelo temor à castração – isto é, no
interesse de preservar sua masculinidade – abandona seu desejo de possuir a mãe
e livrar-se do pai. Na medida em que esse desejo permanece no inconsciente,
constitui a base do sentimento de culpa. Acreditamos que o que aqui
descrevemos, são processos normais, o destino normal do chamado ‘complexo de
Édipo’; não obstante, exige uma importante amplificação. – p. 188/189;
_ O que torna inaceitável o
ódio pelo pai é o temor
a este; a castração é terrível, seja como punição ou como preço do amor. Dos
dois fatores que reprimem o ódio pelo pai, o primeiro, ou seja, o medo direto
da punição e da castração, pode ser chamado de anormal; sua intensificação
patogênica só parece surgir com o acréscimo do segundo fator, o temor à atitude
feminina. Dessa maneira, uma forte disposição bissexual inata se torna uma das
precondições ou reforços da neurose. Uma disposição desse tipo deve ser
certamente suposta em Dostoievski, e ela se mostra sob forma viável (como
homossexualismo latente) no importante papel desempenhado pelas amizades
masculinas na vida dele, em suas atitudes estranhamente ternas para com rivais
no amor e em sua notável compreensão de situações que só são explicáveis pelo
homossexualismo reprimido, como muitos exemplos extraídos de seus romances
demonstram. – p. 189;
_ Mas posso apenas insistir em
que a experiência psicanalítica colocou especificamente esse assunto para além
do alcance da dúvida e nos ensinou a reconhecer nele a chave para toda neurose.
É essa chave, então, que temos de aplicar à chamada epilepsia de nosso autor.
Como são estranhas à nossa consciência as coisas pelas quais nossa vida mental
inconsciente é governada!
Mas o que foi dito até agora não esgota as
conseqüências da repressão do ódio pelo pai no complexo de Édipo. Há algo de
novo a ser acrescentado, a saber: que, apesar de tudo, a identificação com o
pai finalmente constrói um lugar permanente para si mesma no ego. É recebida
dentro deste, mas lá se estabelece como um agente separado, em contraste com o
restante do conteúdo do ego. Damos-lhe então o nome de superego e
atribuímos-lhe, como herdeiro da influência parental, as funções mais
importantes. Se o pai foi duro, violento e cruel, o superego assume dele esses
atributos e nas relações entre o ego e ele, a passividade que se imaginava ter
sido reprimida é restabelecida. O superego se tornou sádico e o ego se torna
masoquista, isto é, no fundo, passivo, de uma maneira feminina. Uma grande
necessidade de punição se desenvolve no ego, que em parte se oferece como
vítima ao destino e em parte encontra satisfação nos maus tratos que lhe são
dados pelo superego (isto é, no sentimento de culpa), pois toda punição é, em
última análise, uma castração, e, como tal, realização da antiga atitude
passiva para com o pai. Mesmo o Destino, em última instância, não passa de uma
projeção tardia do pai.
Os processos normais da formação da consciência
devem ser semelhantes aos anormais, aqui descritos. Ainda não conseguimos fixar
a linha limítrofe entre eles. Observar-se-á que, aqui, a parcela maior no
resultado é atribuída ao componente passivo de feminilidade reprimida. Além
disso, deve ser de importância, como fator acidental, que o pai, que é temido
em qualquer caso, seja também especialmente violento na realidade. Isso foi
verdadeiro no caso de Dostoievski e podemos fazer remontar a origem de seu extraordinário
sentimento de culpa e de sua conduta de vida masoquista a um componente
feminino especialmente intenso. Assim, a fórmula para Dostoievski é a seguinte:
uma pessoa com uma disposição bissexual inata especialmente intensa, que pode
defender-se com intensidade especial contra a dependência de um pai
especialmente severo. Essa característica de bissexualidade surge como
acréscimo aos componentes de sua natureza que já identificamos. Seus sintomas
precoces de crises semelhantes à morte podem ser assim compreendidos como uma
identificação paterna por parte de seu ego, a qual é permitida pelo superego
como punição. ‘Você queria matar seu pai, a fim de ser você mesmo o pai. Agora,
você é seu pai, mas um pai morto’ – o mecanismo regular dos sintomas
histéricos. E, além disso: ‘Agora, seu pai está matando você’. Para o ego, o
sintoma da morte constitui uma satisfação, em fantasia, do desejo masculino e,
ao mesmo tempo, uma satisfação masoquista; para o superego, trata-se de uma
satisfação punitiva, isto é, uma satisfação sádica. Ambos, o ego e o superego,
levam avante o papel de pai.
Resumindo, a relação entre o indivíduo e o seu
objeto paterno, embora retando seu conteúdo, foi transformada numa relação
entre o ego e o superego – um novo cenário num novo palco. Reações infantis
oriundas do complexo de Édipo como essas podem desaparecer se a realidade não
lhes proporciona novo alimento. Mas o caráter do pai permaneceu o mesmo, ou
melhor, se deteriorou com os anos, e assim o ódio de Dostoievski pelo pai e seu
desejo de morte contra esse pai malvado foram mantidos. Ora, é algo perigoso a
realidade atender a tais desejos reprimidos. A fantasia tornou-se realidade e
todas as medidas defensivas são imediatamente reforçadas. As crises de
Dostoievski assumiram então um caráter epiléptico; ainda, indubitavelmente,
significavam uma identificação com o pai como punição, mas se tinham tornado
terríveis, tais como a própria morte assustadora do pai. – p.
190/191;
_ Podemos com segurança dizer
que Dostoievski nunca se libertou dos sentimentos de culpa oriundos de sua
intenção de matar seu pai. Esses sentimentos também determinaram sua atitude
nas duas outras esferas em que a relação paterna constitui o fator decisivo, ou
seja, sua atitude para com a autoridade do Estado e para com a crença em Deus.
– p. 192;
_ Todos os pormenores de sua
conduta impulsivamente irracional demonstram isso, e algo mais também. Ele
nunca descansava antes de ter perdido tudo. Para ele, o jogo era também um
método de autopunição. Seguidamente fez à sua jovem esposa a promessa, ou
deu-lhe sua palavra de honra, de não jogar mais ou de não jogar mais naquele
dia específico, e, informa ela, quase sempre as rompeu. Quando suas perdas os
reduziam à mais extrema necessidade, extraía disso uma segunda satisfação
patológica. Podia então censurar-se e humilhar-se diante dela, convidá-la a
desprezá-lo e a se lamentar por se ter casado com um velho pecador; quando
havia assim aliviado sua consciência, recomeçava tudo no dia seguinte. A jovem
esposa se acostumou a esse ciclo, porque observara que a única coisa que
oferecia qualquer esperança real de salvação – a produção literária dele –
nunca ia tão bem como quando perdiam tudo e empenhavam suas últimas posses.
Naturalmente, ela não compreendia a conexão. Quando o sentimento de culpa dele
ficava satisfeito pelos castigos que se havia infligido, a inibição incidente
sobre seu trabalho se tornava menos grave e ele se permitia dar alguns passos
ao longo da estrada do sucesso. – p. 195;
_ O ‘vício’ da masturbação é
substituído pela inclinação ao jogo e a ênfase dada à atividade apaixonada das
mãos revela essa derivação. Na verdade, a paixão pelo jogo constitui um
equivalente da antiga compulsão a se masturbar; ‘brincar’ é a palavra real
utilizada no quarto das crianças para descrever a atividade das mãos sobre os
órgãos genitais. A natureza irresistível da tentação, as resoluções solenes,
que, não obstante, são invariavelmente rompidas, de nunca fazê-lo de novo, o
prazer entorpecedor e a consciência má que diz ao indivíduo que ele está se
arruinando (cometendo suicídio) – todos esses elementos permanecem inalterados
no processo de substituição. – p. 197;
_ Se a inclinação ao jogo, com
as lutas mal-sucedidas para romper o hábito e com as oportunidades que
proporciona para autopunição, constitui uma repetição da compulsão a se
masturbar, não nos surpreenderemos em descobrir que ela tenha ocupado um espaço
tão grande na vida de Dostoievski. Afinal de contas, não encontramos casos de
neurose grave em que a satisfação auto-erótica da primeira infância e da
puberdade não tenha desempenhado um papel, e a relação entre os esforços para
suprimi-la e o temor ao pai são por demais conhecidos para precisarem mais do
que uma menção. – p. 198;
Apêndice
Uma carta de Freud a Theodor
Reik
Alguns sonhos de Descartes
Uma Carta a Maxime Leroy
(1929)
_ Ao considerar sua carta, em
que me pede para examinar alguns sonhos de Descartes, o que primeiro senti foi
uma impressão de desalento, pois trabalhar com sonhos sem poder obter da
própria pessoa que sonhou quaisquer indicações sobre as relações passíveis de
vinculá-los uns aos outros ou ligá-los ao mundo externo – e esse é claramente o
caso quando se trata dos sonhos de uma figura histórica -, via de regra
proporciona apenas um resultado pobre. No caso, minha tarefa mostrou ser mais
fácil do que tinha previsto; não obstante, o fruto de minhas investigações sem
dúvida lhe parecerá muito menos importante do que teria o direito de esperar.
Os sonhos de nosso filósofo são aquilo que é
conhecido como ‘sonhos vindos de cima’ (‘Traume von oben’), o que
equivale a dizer que constituem formulações de idéias que poderiam ter sido
criadas tão bem num estado de vigília quanto durante o estado de sono, e que
apenas em certas partes derivaram seu conteúdo de estados mentais de nível
comparativamente profundo. Por isso, esse sonhos, na maioria, oferecem um
conteúdo que tem forma abstrata, poética ou simbólica.
A análise de sonhos desse tipo geralmente nos
conduz à seguinte posição: não podemos compreender o sonho, mas aquele que
sonhou – ou o paciente – pode traduzi-lo imediatamente e sem dificuldade, dado
que o conteúdo do sonho se aproxima muito de seus pensamentos conscientes.
Restam então certas partes do sonho sobre as quais aquele que sonhou não sabe o
que dizer, e precisamente essas partes pertencem ao inconsciente, sendo, sob
muitos aspectos, as mais interessantes. – p. 207;
O Prêmio Goethe (1930)
Carta ao Dr. Alfons Paquet
Discurso pronunciado na Casa
de Goethe em Frankfurt
_ O trabalho de minha vida se
dirigiu a um só objetivo. Observei os mais sutis distúrbios da função mental em
pessoas saudáveis e enfermas e procurei inferir – ou, se preferirem, adivinhar
-, a partir de sinais desse tipo, como o aparelho que serve a essas funções é
construído e quais as forças concorrentes e mutuamente oponentes que nele se
acham em ação. O que nós – eu, meus amigos e colaboradores – conseguimos
aprender seguindo esse caminho pareceu-nos de importância para a construção de
uma ciência mental que torna possível compreender tanto os processos mentais
normais quanto os patológicos como partes do mesmo curso natural de eventos. –
p. 213;
_ Omito, entretanto, que no
caso de Goethe não avançamos muito longe, porque Goethe, como poeta, não foi
apenas um grande revelador de si mesmo, mas também, a despeito da abundância de
registros autobiográficos, um cuidadoso ocultador de si mesmo. Aqui, não
podemos deixar de pensar nas palavras de Mefistófeles: “O melhor do que sabeis
não pode, afinal de contas, ser contado a meninos”. – p. 217;
Tipos libidinais (1931)
_ A observação nos ensina que
cada ser humano, individualmente, entende o quadro geral da humanidade conforme
uma variedade quase infinita de maneiras. Se nos submetermos à multiplicidade,
teremos inicialmente de escolher quais as características e os pontos de vista
que tomaremos como base de nossa diferenciação. Para esse fim, as qualidades
físicas indubitavelmente servirão não menos bem do que as mentais; as
distinções mais valiosas serão aquelas que prometam apresentar uma combinação
regular de características físicas e mentais.
É de duvidar que já nos encontremos em posição de
descobrir tipos que atendam a esse requisito, como decerto seremos capazes de
fazer mais tarde, sobre alguma base que ainda ignoramos. Se limitarmos nosso
esforço a estabelecer tipos puramente psicológicos, a situação libidinal terá
um primeiro direito a servir de base para nossa classificação. Pode-se com
justiça exigir que essa classificação não seja meramente deduzida de nosso
conhecimento ou nossas hipóteses sobre a libido, mas que seja facilmente confirmada
pela experiência real e que contribua para o esclarecimento da massa de nossas
observações e nos auxilie a apreendê-las. Pode-se imediatamente admitir que
esses tipos libidinais não precisam ser os únicos possíveis, mesmo no campo
psíquico, e que, se partirmos de outras qualidades, poderemos talvez
estabelecer todo um conjunto de outros tipos psicológicos. Deve-se, porém,
exigir de todos esses tipos que não coincidam com quadros clínicos. Pelo
contrário, devem abranger todas as variações que, de acordo com nosso juízo
prático incidem dentro dos limites do normal. Em seus desenvolvimentos
extremos, contudo, podem aproximar-se de quadros clínicos e dessa maneira,
ajudar a unir o abismo que se supõe existir entre o normal e o patológico.
De acordo, portanto, com que a libido seja
predominantemente atribuída às províncias do aparelho psíquico, podemos
distinguir três tipos libidinais principais. Fornecer nomes a esses tipos não é
particularmente fácil; seguindo as linhas de nossa psicologia profunda, gostaria
de chamá-los de tipo erótico, tipo narcísico e tipo obsessivo.
O tipo erótico é facilmente
caracterizado. Eróticos são aqueles cujo principal interesse – a parte
relativamente maior de sua libido – está voltado para o amor. Amar, mas acima
de tudo ser amado, é a coisa mais importante para eles. São dominados pelo
temor da perda do amor e acham-se, portanto, especialmente dependentes de
outros que podem retirar seu amor deles. Mesmo em sua forma pura, esse tipo é
muito comum. Variantes suas ocorrem segundo se ache mesclado com outro tipo, e
proporcionalmente à quantidade de agressividade nele presente. Do ponto de
vista social e cultural, esse tipo representa as exigências instintuais
elementares do id, a que os outros agentes psíquicos se submeteram.
O segundo tipo é o que denominei de obsessivo,
nome que, a princípio, pode parecer estranho. Distingue-se pela predominância
do superego, que se separa do ego sob grande tensão. As pessoas desse tipo são
dominadas pelo temor de sua consciência, em vez do medo de perder o amor.
Apresentam, por assim dizer, uma dependência interna, em vez de externa.
Desenvolvem um alto grau de autoconfiança e, do ponto de vista social, são os
verdadeiros e predominantemente conservadores veículos da civilização.
O terceiro tipo, com justiça chamado de narcísico,
deve ser principalmente descrito em termos negativos. Não existe tensão entre o
ego e o superego (na verdade, se predominasse esse tipo, dificilmente se teria
chegado à hipótese de um superego), e não há preponderância de necessidades
eróticas. O principal interesse do indivíduo se dirige para a autopreservação;
é independente e não se abre à intimidação. Seu ego possui uma grande
quantidade de agressividade à sua disposição, a qual também se manifesta na
presteza à atividade. Em sua vida erótica, o amar é preferido ao ser amado. As
pessoas pertencentes a esse tipo impressionam os outros como ‘personalidades’;
são especialmente apropriadas a atuarem como apoio para outros, a assumirem o
papel de líderes e a darem um novo estímulo ao desenvolvimento cultural ou a
danificarem o estado de coisas estabelecido.
Esses tipos puros dificilmente escaparão à suspeita
de terem sido deduzidos da teoria da libido. Mas nos sentimos no terreno firme
da experiência quando nos voltamos para os tipos mistos, que podem ser
observados com mais freqüência do que os não mistos. Esses novos tipos – o erótico-obsessivos,
o erótico-narcísico e o narcísico-obsessivo – parecem realmente
permitir uma boa classificação das estruturas psíquicas individuais que viemos
a conhecer através da análise. Se estudarmos esses tipos mistos encontraremos
neles quadros de caracteres com que há longo tempo estamos familiarizados. No
tipo erótico-obsessivo, parece que a preponderância da vida instintual é
restringida pela influência do superego. Nesse tipo, a dependência simultânea
de objetos humanos contemporâneos e de resíduos dos pais, educadores e exemplos
é levada a seu mais alto grau. O tipo erótico-narcísico é talvez aquele
que devamos encarar como o mais comum de todos. Ele une opostos, que nele podem
moderar-se mutuamente. Pode-se aprender com esse tipo, quando comparado com os
outros dois eróticos, que a agressividade e a atividade vão de par com uma
predominância do narcisismo. O tipo narcísico-obsessivo, finalmente,
produz, do ponto de vista cultural, a mais valiosa variação, pois soma à
independência do mundo externo e à consideração pela exigência da consciência
uma capacidade de ação vigorosa, e fortalece o ego contra o superego.
Poder-se-ia pensar que estamos gracejando, se
perguntássemos por que não se fez aqui menção alguma de outro tipo misto
teoricamente possível, a saber, o tipo erótico-obsessivo-narcísico. Mas
a resposta ao gracejo é séria. De modo algum esse tipo seria um tipo; seria a
norma absoluta, a harmonia ideal. Assim, damo-nos conta de que o fenômeno dos
tipos surge precisamente do fato de que, das três principais maneiras de
utilizar a libido na economia mental, uma ou duas foram favorecidas às expensas
das outras.
Pode-se também suscitar a questão de saber qual é a
relação desses tipos libidinais com a patologia; se alguns deles possuem uma
disposição especial de passar à neurose e, em caso afirmativo, quais os tipos
que conduzem a que formas de neurose. A resposta é que a fixação desses tipos libidinais
não lança luz nova sobre a gênese das neuroses. A experiência nos mostra que
todos esses tipos podem existir sem qualquer neurose. Os tipos puros,
assinalados pela preponderância indiscutida de um agente mental isolado parecem
ter melhor possibilidade de se manifestarem como quadros caracterológicos
puros, ao passo que podemos esperar que os tipos mistos forneçam um solo mais
favorável para as condições que conduzem à neurose. Penso, porém, que não
devemos tomar uma decisão sobre esses assuntos até que tenham sido submetidos a
um exame cuidadoso e especialmente dirigido.
Parece fácil inferir que, quando pessoas do tipo
erótico caem doentes, elas desenvolverão histerias, assim como as do tipo
obsessivo desenvolverão neuroses obsessivas; mas essas inferências também
partilham da incerteza que acabei de acentuar. As pessoas do tipo narcísico que
se expõem a uma frustração do mundo externo, embora sob outros aspectos
independentes, estão particularmente dispostas à psicose, e também apresentam
precondições essenciais para a criminalidade.
Constitui fato familiar que as precondições
etiológicas da neurose ainda não são conhecidas com certeza. As causas
precipitantes dela são frustrações e conflitos internos: conflitos entre os
três principais agentes psíquicos; conflitos que surgem dentro da economia
libidinal em conseqüência de nossa disposição bissexual e conflitos entre os
componentes instintuais erótico e agressivo. É trabalho da psicologia das
neuroses descobrir o que faz com que esses processos, pertencentes ao curso
normal da vida mental, se tornem patogênicos. – p. 225/228;
Sexualidade Feminina (1931)
_ Durante a fase do complexo
de Édipo normal, encontramos a criança ternamente ligada ao genitor do sexo
oposto, ao passo que seu relacionamento com o do seu próprio sexo é
predominantemente hostil. No caso do menino, isso não é difícil de explicar.
Seu primeiro objeto amoroso foi a mãe. Continua sendo, e, com a intensificação
de seus desejos eróticos e sua compreensão interna mais profunda das relações
entre o pai e a mãe, o primeiro está fadado a se tornar seu rival. Com a
menina, é diferente. Também seu primeiro objeto foi a mãe. Como encontra o
caminho para o pai? Como, quando e por que se desliga da mãe? Há muito tempo
compreendemos que o desenvolvimento da sexualidade feminina é complicado pelo
fato de a menina ter a tarefa de abandonar o que originalmente constituiu sua
principal zona genital – o clitóris – em favor de outra, nova, a vagina. Agora,
no entanto, parece-nos que existe uma segunda alteração da mesma espécie, que
não é menos característica e importante para o desenvolvimento da mulher: a
troca de seu objeto original – a mãe – pelo pai. A maneira pela qual essas duas
tarefas estão mutuamente vinculadas ainda não nos é clara.
É bem sabido que existem muitas mulheres que
possuem uma forte ligação com o pai, e para isso não precisam ser, de qualquer
maneira, neuróticas. Foi em tais mulheres que efetuei as observações que me
proponho comunicar aqui e que me conduziram a adotar um ponto de vista
específico sobre a sexualidade feminina. Dois fatos sobretudo me
impressionaram. O primeiro foi o de que onde a ligação da mulher com o pai era
particularmente intensa, a análise mostrava que essa ligação fora precedida por
uma fase de ligação exclusiva à mãe, igualmente intensa e apaixonada. – p.
233;
_ De uma vez que essa fase
comporta todas as fixações e repressões a que podemos fazer remontar a origem
das neuroses, talvez pareça que deveríamos retratar-nos da universalidade da
tese segundo a qual o complexo de Édipo é o núcleo das neuroses. – p. 234;
_ Já aprendemos também que
ainda existe uma outra diferença entre os sexos, a qual se relaciona com o
complexo de Édipo. Temos aqui a impressão de que o que dissemos sobre o
complexo de Édipo se aplica de modo absolutamente estrito apenas à criança do
sexo masculino, e de que temos razão ao rejeitarmos a expressão ‘complexo de
Electra’, que procura dar ênfase à analogia entre a atitude dos dois sexos. É
apenas na criança do sexo masculino que encontramos a fatídica combinação de
amor por um dos pais e, simultaneamente, ódio pelo outro, como rival. No caso
dela, é a descoberta da possibilidade de castração, tal como provada pela visão
dos órgãos genitais femininos, que impõe ao menino a transformação de seu
complexo de Édipo e conduz à criação de seu superego, iniciando assim todos os
processos que se destinam a fazer o indivíduo encontrar lugar na comunidade
cultural. Após o agente paterno ter sido internalizado e ter-se tornado um
superego, a tarefa seguinte consiste em desligar este último das figuras de
quem originalmente constituiu o representante psíquico. Nesse notável curso de
desenvolvimento, é precisamente o interesse narcísico do menino por seus órgãos
genitais – seu interesse em preservar o pênis – que é transformado numa
restrição de sua sexualidade infantil.
Uma das coisas que remanesce nos homens, da
influência do complexo de Édipo, é um certo desprezo em sua atitude para com as
mulheres, a quem encaram como castradas. Nos casos extremos, isso dá origem a
uma inibição em sua escolha de objeto e, se apoiado por fatores orgânicos, ao
homossexualismo exclusivo.
Inteiramente diferentes são os efeitos do complexo
de castração na mulher. Ela reconhece o fato de sua castração, e, com ele,
também a superioridade do homem e sua própria inferioridade, mas se rebela
contra esse estado de coisas indesejável. Dessa atitude, dividida, abrem-se
três linhas de desenvolvimento. A primeira leva a uma revulsão geral à
sexualidade. A menina, assustada pela comparação com os meninos, cresce
insatisfeita com seu clitóris, abandona sua atividade fálica e, com ela, sua
sexualidade em geral, bem como boa parte de sua masculinidade em outros campos.
A segunda linha a leva a se aferrar com desafiadora auto-afirmatividade à sua
masculinidade ameaçada. Até uma idade inacreditavelmente tardia, aferra-se à
esperança de conseguir um pênis em alguma ocasião. Essa esperança se torna o
objetivo de sua vida e a fantasia de ser um homem, apesar de tudo,
freqüentemente persiste como fator formativo por longos períodos. Esse
‘complexo de masculinidade’ nas mulheres pode também resultar numa escolha de
objeto homossexual manifesta. Só se seu desenvolvimento seguir o terceiro
caminho, muito indireto, ela atingirá a atitude feminina normal final, em que
toma o pai como objeto, encontrando assim o caminho para a forma feminina do
complexo de Édipo. Assim, nas mulheres, o complexo de Édipo constitui o
resultado final de um desenvolvimento bastante demorado. Ele não é destruído,
mas criado pela influência da castração; foge às influências fortemente hostis
que, no homem, tiveram efeito destrutivo sobre ele e, na verdade, com muita
freqüência, de modo algum é superado pela mulher. Por essa razão, também, nela
as conseqüências culturais de sua dissolução são menores e menos importantes.
Provavelmente não estaríamos errados em dizer que é essa diferença na relação
recíproca entre o complexo de Édipo e o de castração que dá seu cunho especial
ao caráter das mulheres como seres sociais. – p. 237/238;
_ As
meninas geralmente descobrem por si próprias sua atividade fálica
característica, a masturbação do clitóris, e, de início, isso sem dúvida não se
faz acompanhar pela fantasia. O papel desempenhado, em seu começo, pela higiene
infantil reflete-se na fantasia muito comum que transforma a mãe ou a babá em
sedutora. Que as meninas se masturbem com menos freqüência e, desde o
princípio, com menos energia que os meninos, não é certo; possivelmente, assim
acontece. A sedução real também é bastante comum; é iniciada quer por outras
crianças, quer por alguém encarregado da criança que deseja acalmá-la, pô-la
para dormir ou torná-la dependente dele. Onde intervém, a sedução
invariavelmente perturba o curso natural dos processos de desenvolvimento e com
freqüência deixa atrás de si conseqüências amplas e duradouras.
A proibição da masturbação, como vimos,
transforma-se num incentivo para abandoná-la, mas torna-se motivo para
rebelar-se contra a pessoa que a proíbe, ou seja, a mãe, ou o substituto
materno que, mais tarde, normalmente se funde com esta. Uma persistência
desafiadora na masturbação parece abrir o caminho à masculinidade. Mesmo onde a
menina não conseguiu suprimir sua masturbação, o efeito da proibição
aparentemente vã é visto em seus esforços posteriores para se libertar, a todo
custo, de uma satisfação que lhe foi estragada. Quando atinge a maturidade, sua
escolha de objeto ainda pode ser influenciada por esse intuito persistente. Seu
ressentimento por ser impedida de uma atividade sexual livre desempenha grande
papel em seu desligamento da mãe. O mesmo motivo entra em funcionamento após a
puberdade, quando a mãe assume seu dever de guardiã da castidade da filha. Não
nos esqueceremos, naturalmente, de que, de forma semelhante, a mãe se opõe à
masturbação do menino, fornecendo-lhe assim, também, um forte motivo de
rebelião. – p. 240;
_ Nas primeiras fases da vida
erótica, a ambivalência é evidentemente a regra. Não poucas pessoas retêm esse
traço arcaico durante toda sua vida. É característico dos neuróticos obsessivos
que, em seus relacionamentos objetais, o amor e o ódio se contrabalancem
mutuamente. – p. 243;
_ Pode-se
facilmente observar que em todo campo de experiência mental, não simplesmente
no da sexualidade, quando uma criança recebe uma impressão passiva, ela tende a
produzir uma reação ativa. Tenta fazer ela própria o que acabou de ser feito a
ela. Isso faz parte do trabalho que lhe é imposto de dominar o mundo externo e
pode mesmo levar a que se esforce por repetir uma impressão que teria toda razão
para evitar, por causa de seu conteúdo aflitivo. Também o brinquedo das
crianças é realizado para servir ao fim de suplementar uma experiência passiva
com um comportamento ativo, e desse modo, por assim dizer, anulá-la. Quando um
médico abre a boca de uma criança, apesar da resistência dela, para
examinar-lhe a garganta, essa mesma criança, após a partida daquele, brincará
de ser o médico ela própria e repetirá o ataque com algum irmão ou irmã menor
que esteja tão indefeso em suas mãos quanto ela nas do médico. Temos aqui uma
revolta inequívoca contra a passividade e uma preferência pelo papel ativo.
Essa oscilação da passividade à atividade não se realiza com a mesma
regularidade ou vigor em todas as crianças; em algumas pode não ocorrer de modo
algum. O comportamento de uma criança a esse respeito pode capacitar-nos a
tirar conclusões quanto à intensidade relativa da masculinidade e feminilidade
que ela apresentará em sua sexualidade.
As primeiras experiências sexuais e sexualmente
coloridas que uma criança tem em relação à mãe são, naturalmente, de caráter
passivo. – p. 244;
Breves escritos (1928-1931)
Dr. Reik e o problema do
charlatanismo (1926)
O Dr. Ernest Jones (sobre seu
50º aniversário) (1929)
O parecer do perito no Caso
Halsmann (1931[1930])
Introdução ao número especial
de Psicopatologia de The Medical Review of Reviews (1930)
Introdução a elementos de
psicanálise (1931[1930])
Prefácio a Ten Years of the
Berlin Psycho-analytic Institute (1930)
Prefácio a General Theory of
the Neuroses on a Psycho-analytic Basis, de Hermann Nunberg (1932[1931])
Carta ao Burgomestre de Pribor
(1931)
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