sábado, 6 de junho de 2015

Resumo do Livro XVIII - Além do Princípio do Prazer, Psicologia de Grupo e outros trabalhos (1920-1922)


Resumo do Livro XVIII – Além do Princípio do Prazer, Psicologia de Grupo e outros trabalhos (1920-1922)
Nota do editor inglês
_ Como é demonstrado por sua correspondência, Freud começou a trabalhar num primeiro rascunho de Além do Princípio de Prazer em março de 1919 e informou que esse rascunho estava terminado em maio seguinte. Durante o mesmo mês, ele completou seu artigo sobre ‘The Uncanny’ (1919h), que inclui um parágrafo que apresenta grande parte da essência da presente obra, em poucas frases. Nesse parágrafo, refere-se à ‘compulsão à repetição’ como sendo um fenômeno apresentado no comportamento das crianças e no tratamento psicanalítico; sugere que essa compulsão é algo derivado da natureza mais íntima dos instintos e a declara ser suficientemente poderosa para desprezar o princípio de prazer. – p. 13;
_ Explicou o orador que, juntamente com os familiares sonhos de desejo e os sonhos de ansiedade que podiam ser facilmente incluídos na teoria, existiam fundamentos para reconhecer a existência de uma terceira categoria, à qual deu o nome de “sonhos de punição”. Se levarmos em conta a justificável suposição da existência de um órgão especial auto-observador e crítico no ego (ideal do ego, censor, consciência), também esses sonhos de punição devem ser classificados na teoria da realização de desejo, porque representariam a realização de um desejo por parte desse órgão crítico. Tais sonhos, disse ele, possuem aproximadamente a mesma relação com os sonhos de desejo comuns que os sintomas da neurose obsessiva, surgidos na formação reativa, têm com os da histeria. – p. 14;
Além do Princípio do Prazer
I
_ Na teoria da psicanálise não hesitamos em supor que o curso tomado pelos eventos mentais está automaticamente regulado pelo princípio de prazer, ou seja, acreditamos que o curso desses eventos é invariavelmente colocado em movimento por uma tensão desagradável e que toma uma direção tal, que seu resultado final coincide com uma redução dessa tensão, isto é, com uma evitação de desprazer ou uma produção de prazer. Levando esse curso em conta na consideração dos processos mentais que constituem o tema de nosso estudo, introduzimos um ponto de vista ‘econômico’ em nosso trabalho, e se, ao descrever esses processos, tentarmos calcular esse fator ‘econômico’ além dos ‘topográficos’ e ‘dinâmicos’, estaremos, penso eu, fornecendo deles a mais completa descrição que poderemos atualmente conceber, uma descrição que merece ser distinguida pelo nome de ‘metapsicológica’. – p. 17;
_ Os fatos que nos fizeram acreditar na dominância do princípio de prazer na vida mental encontram também expressão na hipótese de que o aparelho mental se esforça por manter a quantidade de excitação nele presente tão baixa quanto possível, ou, pelo menos, por mantê-la constante. Essa última hipótese constitui apenas outra maneira de enunciar o princípio de prazer, porque, se o trabalho do aparelho mental se dirige no sentido de manter baixa a quantidade de excitação, então qualquer coisa que seja calculada para aumentar essa quantidade está destinada a ser sentida como adversa ao funcionamento do aparelho, ou seja, como desagradável. O princípio de prazer decorre do princípio de constância; na realidade, esse último princípio foi inferido dos fatos que nos forçaram a adotar o princípio de prazer. Além disso, um exame mais pormenorizado mostrará que a tendência que assim atribuímos ao aparelho mental, subordina-se, como um caso especial, ao princípio de Fechner da ‘tendência no sentido da estabilidade’, com a qual ele colocou em relação os sentimentos de prazer e desprazer. Deve-se, contudo, apontar que, estritamente falando, é incorreto falar na dominância do princípio de prazer sobre o curso dos processos mentais. Se tal dominância existisse, a imensa maioria de nossos processos mentais teria de ser acompanhada pelo prazer ou conduzir a ele, ao passo que a experiência geral contradiz completamente uma conclusão desse tipo. O máximo que se pode dizer, portanto, é que existe na mente uma forte tendência no sentido do princípio de prazer, embora essa tendência seja contrariada por certas outras forças ou circunstâncias, de maneira que o resultado final talvez nem sempre se mostre em harmonia com a tendência no sentido do prazer. Podemos comparar isso com o que Fechner (1873, 90) observa sobre um ponto semelhante: ‘Visto que, porém, uma tendência no sentido de um objetivo não implica que este seja atingido, e desde que, em geral, o objetivo é atingível apenas por aproximações (…)’ – p. 18/19;
_ Sabemos que o princípio de prazer é próprio de um método primário de funcionamento por parte do aparelho mental, mas que, do ponto de vista da autopreservação do organismo entre as dificuldades do mundo externo, ele é, desde o início, ineficaz e até mesmo altamente perigoso. Sob a influência dos instintos de autopreservação do ego, o princípio de prazer é substituído pelo princípio de realidade. Esse último princípio não abandona a intenção de fundamentalmente obter prazer; não obstante, exige e efetua o adiamento da satisfação, o abandono de uma série de possibilidades de obtê-la, e a tolerância temporária do desprazer como uma etapa no longo e indireto caminho para o prazer. Contudo, o princípio de prazer persiste por longo tempo como o método de funcionamento empregado pelos instintos sexuais, que são difíceis de ‘educar’, e, partindo desses instintos, ou do próprio ego, com freqüência consegue vencer o princípio de realidade, em detrimento do organismo como um todo. – p. 20;
II
_ O estudo dos sonhos pode ser considerado o método mais digno de confiança na investigação dos processos mentais profundos. Ora, os sonhos que ocorrem nas neuroses traumáticas possuem a característica de repetidamente trazer o paciente de volta à situação de seu acidente, numa situação da qual acorda em outro susto. Isso espanta bem pouco as pessoas. Pensam que o fato de a experiência traumática estar-se continuamente impondo ao paciente, mesmo no sono, se encontra, conforme se poderia dizer, fixado em seu trauma. As fixações na experiência que iniciou a doença há muito tempo, nos são familiares na histeria. Breuer e Freud declararam em 1893 que ‘os histéricos sofrem principalmente de reminiscências’. Nas neuroses de guerra também, observadores como Ferenczi e Simmel puderam explicar certos sintomas motores pela fixação no momento em que o trauma ocorreu. – p. 23;
III
_ Vinte e cinco anos de intenso trabalho tiveram por resultado que os objetivos imediatos da psicanálise sejam hoje inteiramente diferentes do que eram no começo. A princípio, o médico que analisava não podia fazer mais do que descobrir o material inconsciente oculto para o paciente, reuni-lo e no momento oportuno comunicá-lo a este. A psicanálise era então, primeiro e acima de tudo, uma arte interpretativa. Uma vez que isso não solucionava o problema terapêutico, um outro objetivo rapidamente surgiu à vista: obrigar o paciente a confirmar a construção teórica do analista com sua própria memória. Nesse esforço, a ênfase principal reside nas resistências do paciente: a arte consistia então em descobri-las tão rapidamente quanto possível, apontando-as ao paciente e induzindo-o, pela influência humana – era aqui que a sugestão, funcionando como ‘transferência’, desempenhava seu papel -, a abandonar suas resistências. – p. 28;
_ Essas reproduções, que surgem com tal exatidão indesejada, sempre têm como tema alguma parte da vida sexual infantil, isto é, do complexo de Édipo, e de seus derivativos, e são invariavelmente atuadas (acted out) na esfera da transferência, da relação do paciente com o médico. Quando as coisas atingem essa etapa, pode-se dizer que a neurose primitiva foi então substituída por outra nova, pela ‘neurose de transferência’. – p. 28;
_ A fim de tornar mais fácil a compreensão dessa ‘compulsão à repetição’ que surge durante o tratamento psicanalítico dos neuróticos, temos acima de tudo de livrar-nos da noção equivocada de que aquilo com que estamos lidando em nossa luta contra as resistências seja uma resistência por parte do inconsciente. O inconsciente, ou seja, o ‘reprimido’, não oferece resistência alguma aos esforços do tratamento. Na verdade, ele próprio não se esforça por outra coisa que não seja irromper através da pressão que sobre ele pesa, e abrir seu caminho à consciência ou a uma descarga por meio de alguma ação real. A resistência durante o tratamento origina-se dos mesmos estratos e sistemas mais elevados da mente que originalmente provocaram a repressão. Mas o fato de, como sabemos pela experiência, os motivos das resistências e, na verdade, as próprias resistências serem a princípio inconscientes durante o tratamento, é-nos uma sugestão para que corrijamos uma deficiência de nossa terminologia. Evitaremos a falta de clareza se fizermos nosso contraste não entre o consciente e o inconsciente, mas entre o ego coerente e o reprimido. É certo que grande parte do ego é, ela própria, inconsciente, e notavelmente aquilo que podemos descrever como seu núcleo; apenas pequena parte dele se acha abrangida pelo termo ‘pré-consciente’. Havendo substituído uma terminologia puramente descritiva por outra sistemática e dinâmica, podemos dizer que as resistências do paciente originam-se do ego, e então imediatamente perceberemos que a compulsão à repetição deve ser atribuída ao reprimido inconsciente. Parece provável que a compulsão só possa expressar-se depois que o trabalho do tratamento avançou a seu encontro até a metade do caminho e que afrouxou a repressão.
Não há dúvida de que a resistência do ego consciente e inconsciente funciona sob a influência do princípio de prazer; ela busca evitar o desprazer que seria produzido pela liberação do reprimido. Nossos esforços, por outro lado, dirigem-se no sentido de conseguir a tolerância desse desprazer por um apelo ao princípio de realidade. Mas, como se acha a compulsão à repetição – a manifestação do poder do reprimido – relacionada com o princípio de prazer? É claro que a maior parte do que é reexperimentado sob a compulsão à repetição, deve causar desprazer ao ego, pois traz à luz as atividades dos impulsos instintuais reprimidos. Isso, no entanto, constitui desprazer de uma espécie que já consideramos e que não contradiz o princípio de prazer: desprazer para um dos sistemas e, simultaneamente, satisfação para outro. Contudo, chegamos agora a um fato novo e digno de nota, a saber, que a compulsão à repetição também rememora do passado experiências que não incluem possibilidade alguma de prazer e que nunca, mesmo há longo tempo, trouxeram satisfação, mesmo para impulsos instintuais que desde então foram reprimidos.
O florescimento precoce da vida sexual infantil está condenado à extinção porque seus desejos são incompatíveis com a realidade e com a etapa inadequada de desenvolvimento a que a criança chegou. Esse florescimento chega ao fim nas mais aflitivas circunstâncias e com o acompanhamento dos mais penosos sentimentos. A perda do amor e o fracasso deixam atrás de si um dano permanente à autoconsideração, sob a forma de uma cicatriz narcisista, o que, em minha opinião, bem como na de Marcinowski (1918), contribui mais do que qualquer outra coisa para o ‘sentimento de inferioridade’, tão comum aos neuróticos. As explorações sexuais infantis, às quais seu desenvolvimento físico impõe limites, não conduzem a nenhuma conclusão satisfatória; daí as queixas posteriores, tais como ‘Não consigo realizar nada; não tenho sucesso em nada’. O laço da afeição, que via de regra liga a criança ao genitor do sexo oposto, sucumbe ao desapontamento, a uma vã expectativa de satisfação, ou ao ciúme pelo nascimento de um novo bebê, prova inequívoca da infidelidade do objetivo da afeição da criança. Sua própria tentativa de fazer um bebê, efetuada com trágica seriedade, fracassa vergonhosamente. A menor quantidade de afeição que recebe, as exigências crescentes da educação, palavras duras e um castigo ocasional mostram-lhe por fim toda a extensão do desdém que lhe concederam. Estes são alguns exemplos típicos e constantemente recorrentes das maneiras pelas quais o amor característico da idade infantil é levado a um término. – p. 29/31;
IV
_ A especulação psicanalítica toma como ponto de partida a impressão, derivada do exame dos processos inconscientes, de que a consciência pode ser, não o atributo mais universal dos processos mentais, mas apenas uma função especial deles. Falando em termos metapsicológicos, assevera que a consciência constitui função de um sistema específico que descreve como Cs. O que a consciência produz consiste essencialmente em percepções de excitação provindas do mundo externo e de sentimentos de prazer e desprazer que só podem surgir do interior do aparelho psíquico; assim, é possível atribuir ao sistema Pcpt.-Cs. uma posição no espaço. – p. 34;
_ Nesse ponto, aventurar-me-ei a aflorar por um momento um assunto que mereceria tratamento mais exaustivo. Em conseqüência de certas descobertas psicanalíticas, encontramo-nos hoje em posição de empenhar-nos num estudo do teorema kantiano segundo o qual tempo e espaço são ‘formas necessárias de pensamento’. Aprendemos que os processos mentais inconscientes são, em si mesmos, ‘intemporais’. Isso significa, em primeiro lugar, que não são ordenados temporalmente, que o tempo de modo algum os altera e que a idéia de tempo não lhes pode ser aplicada. Trata-se de características negativas que só podem ser claramente entendidas se se fizer uma comparação com os processos mentais conscientes. Por outro lado, nossa idéia abstrata de tempo parece ser integralmente derivada do método de funcionamento do sistema Pcpt.-Cs. e corresponder a uma percepção de sua própria parte nesse método de funcionamento, o qual pode talvez constituir uma outra maneira de fornecer um escudo contra os estímulos. Sei que essas observações devem soar muito obscuras, mas tenho de limitar-me a essas sugestões. – p. 38;
_ Descrevemos como ‘traumáticas’ quaisquer excitações provindas de fora que sejam suficientemente poderosas para atravessar o escudo protetor. Parece-me que o conceito de trauma implica necessariamente uma conexão desse tipo com uma ruptura numa barreira sob outros aspectos eficazes contra os estímulos. Um acontecimento como um trauma externo está destinado a provocar um distúrbio em grande escala no funcionamento da energia do organismo e a colocar em movimento todas as medidas defensivas possíveis. Ao mesmo tempo, o princípio de prazer é momentaneamente posto fora de ação. Não há mais possibilidade de impedir que o aparelho mental seja inundado com grandes quantidades de estímulos; em vez disso, outro problema surge, o problema de dominar as quantidades de estímulo que irromperam, e de vinculá-las no sentido psíquico, a fim de que delas se possa então desvencilhar. – p. 39;
V
_ As mais abundantes fontes dessa excitação interna são aquilo que é descrito como os ‘instintos’ do organismo, os representantes de todas as forças que se originam no interior do corpo e são transmitidas ao aparelho mental, desde logo o elemento mais importante e obscuro da pesquisa psicológica. – p. 44;
_ As manifestações de uma compulsão à repetição (que descrevemos como ocorrendo nas primeiras atividades da vida mental infantil, bem como entre os eventos do tratamento psicanalítico) apresentam em alto grau um caráter instintual e, quando atuam em oposição ao princípio de prazer, dão a aparência de alguma força ‘demoníaca’ em ação. – p. 45;
_ Mas como o predicado de ser ‘instintual’ se relaciona com a compulsão à repetição? Nesse ponto, não podemos fugir à suspeita de que deparamos com a trilha de um atributo universal dos instintos e talvez da vida orgânica em geral que até o presente não foi claramente identificado ou, pelo menos, não explicitamente acentuado. Parece, então que um instinto é um impulso, inerente à vida orgânica, a restaurar um estado anterior de coisas, impulso que a entidade viva foi obrigada a abandonar sob a pressão de forças perturbadoras externas, ou seja, é uma espécie de elasticidade orgânica, ou, para dizê-lo de outro modo, a expressão da inércia inerente à vida orgânica. – p. 46;
_ Os atributos da vida foram, em determinada ocasião, evocados na matéria inanimada pela ação de uma força de cuja natureza não podemos formar concepção. Pode ter sido um processo de tipo semelhante ao que posteriormente provocou o desenvolvimento da consciência num estrato particular da matéria viva. A tensão que então surgiu no que até aí fora uma substância inanimada se esforçou por neutralizar-se e, dessa maneira, surgiu o primeiro instinto: o instinto a retornar ao estado inanimado. – p. 48;
_ A evolução atual dos seres humanos não exige, segundo me parece, uma explicação diferente da dos animais. Aquilo que, numa minoria de indivíduos humanos, parece ser um impulso incansável no sentido de maior perfeição, pode ser facilmente compreendido como resultado da repressão instintual em que se baseia tudo o que é mais precioso na civilização humana. O instinto reprimido nunca deixa de esforçar-se em busca da satisfação completa, que consistiria na repetição de uma experiência primária de satisfação. Formações reativas e substitutivas, bem como sublimações, não bastarão para remover a tensão persistente do instinto reprimido, sendo que a diferença de quantidade entre o prazer da satisfação que é exigida e a que é realmente conseguida, é que fornece o fator impulsionador que não permite qualquer parada em nenhuma das posições alcançadas, mas, nas palavras do poeta, ‘ungebändigt immer vorwärts dringt‘. O caminho para trás que conduz à satisfação completa acha-se, via de regra, obstruído pelas resistências que mantêm as repressões, de maneira que não há alternativa senão avançar na direção em que o crescimento ainda se acha livre, embora sem perspectiva de levar o processo a uma conclusão ou de ser capaz de atingir o objetivo. Os processos envolvidos na formação de uma fobia neurótica, que nada mais é do que uma tentativa de fuga da satisfação de um instinto, apresentam-nos um modelo do modo de origem desse suposto ‘instinto para a perfeição’, o qual não tem possibilidades de ser atribuído a todos os seres humanos. Na verdade, as condições dinâmicas para o seu desenvolvimento estão universalmente presentes, mas apenas em raros casos a situação econômica parece favorecer a produção do fenômeno. – p. 51;
VI
_ A essência de nossa investigação até agora foi o traçado de uma distinção nítida entre os ‘instintos do ego’ e os instintos sexuais, e a visão de que os primeiros exercem pressão no sentido da morte e os últimos no sentido de um prolongamento da vida. Contudo, essa conclusão está fadada a ser insatisfatória sob muitos aspectos, mesmo para nós. Ademais, na realidade, é apenas quanto ao primeiro grupo de instintos que podemos afirmar que possuem caráter conservador, ou melhor, retrógrado, correspondente a uma compulsão à repetição, porque, em nossa hipótese, os instintos do ego se originam da animação da matéria inanimada e procuram restaurar o estado inanimado, ao passo que, quanto aos instintos sexuais, embora seja verdade que reproduzem estados primitivos do organismo, aquilo a que claramente visam, por todos os meios possíveis, é à coalescência de duas células germinais que são diferenciadas de maneira particular. Se essa união não é efetuada, a célula germinal morre juntamente com todos os outros elementos do organismo multicelular. É apenas com essa condição que a função sexual pode prolongar a vida da célula e emprestar-lhe uma aparência de imortalidade. Mas, qual é o acontecimento importante no desenvolvimento da substância viva, que está sendo repetido na reprodução sexual ou em sua antecessora, a conjugação de dois protozoários? Não podemos dizer, e, conseqüentemente, deveríamos sentir-nos aliviados se toda a estrutura de nossa argumentação se mostrou equivocada. A oposição entre os instintos do ego ou instintos de morte e os instintos sexuais ou instintos de vida deixaria então de sustentar-se e a compulsão à repetição não mais possuiria a importância que lhe atribuímos. – p. 53;
_ Nosso debate teve como ponto de partida uma distinção nítida entre os instintos do ego, que equiparamos aos instintos de morte, e os instintos sexuais, que equiparamos aos instintos de vida. (Achávamo-nos preparados, em determinada etapa, para incluir os chamados instintos de autoconservação do ego entre os instintos de morte, mas subseqüentemente nos corrigimos sobre esse ponto e o retiramos.) Nossas concepções, desde o início, foram dualistas e são hoje ainda mais definidamente dualistas do que antes, agora que descrevemos a oposição como se dando, não entre instintos do ego e instintos sexuais, mas entre instintos de vida e instintos de morte. A teoria da libido de Jung é, pelo contrário, monista; o fato de haver ele chamado sua única força instintual de ‘libido’, destina-se a causar confusão, mas não precisa afetar-nos sob outros aspectos. Suspeitamos que instintos outros que não os de autoconservação funcionam no ego, e deveria ser-nos possível apontá-los. Infelizmente, porém, a análise do ego fez tão poucos avanços, que nos é muito difícil proceder assim. É possível, na verdade, que os instintos libidinais do ego possam estar vinculados de maneira peculiar a esses outros instintos do ego que ainda nos são estranhos. Mesmo antes de dispormos de qualquer compreensão clara do narcisismo, a psicanálise já desconfiava que os ‘instintos do ego’ tinham componentes libidinais a eles ligados. Mas trata-se de possibilidades muito incertas, a que nossos oponentes prestarão muito pouca atenção. Permanece a dificuldade de que a psicanálise até aqui não nos permitiu indicar quaisquer instintos [do ego] que não sejam os libidinais. Isso, contudo, não constitui razão para concordarmos com a conclusão de que nenhum outro realmente existe. – p. 61/62;
VII
_ Descobrimos que uma das mais antigas e importantes funções do aparelho mental é sujeitar os impulsos instintuais que com ele se chocam, substituir o processo primário que neles predomina pelo processo secundário, e converter sua energia catéxica livremente móvel numa catexia principalmente quiescente (tônica). Enquanto essa transformação se está realizando, nenhuma atenção pode ser concedida ao desenvolvimento do desprazer, mas isso não implica a suspensão do princípio de prazer. Pelo contrário, a transformação ocorre em favor dele; a sujeição constitui o ato preparatório que introduz e assegura a dominância do princípio de prazer. – p. 70;
Psicologia de Grupo e Análise do Ego (1921)   
I - Introdução
_ O contraste entre a psicologia individual e a psicologia social ou de grupo, que à primeira vista pode parecer pleno de significação, perde grande parte de sua nitidez quando examinado mais de perto. É verdade que a psicologia individual relaciona-se com o homem tomado individualmente e explora os caminhos pelos quais ele busca encontrar satisfação para seus impulsos instintuais; contudo, apenas raramente e sob certas condições excepcionais, a psicologia individual se acha em posição de desprezar as relações desse indivíduo com os outros. Algo mais está invariavelmente envolvido na vida mental do indivíduo, como um modelo, um objeto, um auxiliar, um oponente, de maneira que, desde o começo, a psicologia individual, nesse sentido ampliado mas inteiramente justificável das palavras, é, ao mesmo tempo, também psicologia social. – p. 77;
II – A Descrição de Le Bon da Mente Grupal
_ Deixarei que agora Le Bon fale por si próprio. Diz ele: ‘A peculiaridade mais notável apresentada por um grupo psicológico é a seguinte: sejam quem forem os indivíduos que o compõem, por semelhantes ou dessemelhantes que sejam seu modo de vida, suas ocupações, seu caráter ou sua inteligência, o fato de haverem sido transformados num grupo coloca-os na posse de uma espécie de mente coletiva que os faz sentir, pensar e agir de maneira muito diferente daquela pela qual cada membro dele, tomado individualmente, sentiria, pensaria e agiria, caso se encontrasse em estado de isolamento. Há certas idéias e sentimentos que não surgem ou que não se transformam em atos, exceto no caso de indivíduos que formam um grupo. O grupo psicológico é um ser provisório, formado por elementos heterogêneos que por um momento se combinam, exatamente como as células que constituem um corpo vivo, formam, por sua reunião, um novo ser que apresenta características muito diferentes daquelas possuídas por cada uma das células isoladamente.’ (Trad., 1920, 29.). – p. 79;
_ ‘Para obter, de qualquer modo, um vislumbre delas, é necessário em primeiro lugar trazer à mente a verdade estabelecida pela psicologia moderna, a de que os fenômenos inconscientes desempenham papel inteiramente preponderante não apenas na vida orgânica, mas também nas operações da inteligência. A vida consciente da mente é de pequena importância, em comparação com sua vida inconsciente. O analista mais sutil, o observador mais agudo dificilmente obtêm êxito em descobrir mais do que um número muito pequeno dos motivos conscientes que determinam sua conduta. Nossos atos conscientes são o produto de um substrato inconsciente criado na mente, principalmente por influências hereditárias. Esse substrato consiste nas inumeráveis características comuns, transmitidas de geração a geração, que constituem o gênio de uma raça. Por detrás das causas confessadas de nossos atos jazem indubitavelmente causas secretas que não confessamos, mas por detrás dessas causas secretas existem muitas outras, mais secretas ainda, ignoradas por nós próprios. A maior parte de nossas ações cotidianas são resultados de motivos ocultos que fogem à nossa observação.’ (Ibid., 30.). – p. 80/81;
_ ‘Vemos então que o desaparecimento da personalidade consciente, a predominância da personalidade inconsciente, a modificação por meio da sugestão e do contágio de sentimentos e idéias numa direção idêntica, a tendência a transformar imediatamente as idéias sugeridas em atos, estas, vemos, são as características principais do indivíduo que faz parte de um grupo. Ele não é mais ele mesmo, mas transformou-se num autômato que deixou de ser dirigido pela sua vontade.’ (Ibid., 35.). – p. 83;
_ Temos aqui outra importante comparação para ajudar-nos a entender o indivíduo num grupo: ‘Além disso, pelo simples fato de fazer parte de um grupo organizado, um homem desce vários degraus na escada da civilização. Isolado, pode ser um indivíduo culto; numa multidão, é um bárbaro, ou seja, uma criatura que age pelo instinto. Possui a espontaneidade, a violência, a ferocidade e também o entusiasmo e o heroísmo dos seres primitivos.’ (Ibid., 36.) Le Bon demora-se então especialmente na redução da capacidade intelectual que um indivíduo experimenta quando se funde num grupo. – p. 83;
_ Inclinado como é a todos os extremos, um grupo só pode ser excitado por um estímulo excessivo. Quem quer que deseje produzir efeito sobre ele, não necessita de nenhuma ordem lógica em seus argumentos; deve pintar nas cores mais fortes, deve exagerar e repetir a mesma coisa diversas vezes.
Desde que não se acha em dúvida quanto ao que constitui verdade ou erro e, além disso, tem consciência de sua própria grande força, um grupo é tão intolerante quanto obediente à autoridade. Respeita a força e só ligeiramente pode ser influenciado pela bondade, que encara simplesmente como uma forma de fraqueza. O que exige de seus heróis, é força ou mesmo violência. Quer ser dirigido, oprimido e temer seus senhores. Fundamentalmente, é inteiramente conservador e tem profunda aversão por todas as inovações e progressos, e um respeito ilimitado pela tradição (ibid., 62).
A fim de fazer um juízo correto dos princípios éticos do grupo, há que levar em consideração o fato de que, quando indivíduos se reúnem num grupo, todas as suas inibições individuais caem e todos os instintos cruéis, brutais e destrutivos, que neles jaziam adormecidos, como relíquias de uma época primitiva, são despertados para encontrar gratificação livre. Mas, sob a influência da sugestão, os grupos também são capazes de elevadas realizações sob forma de abnegação, desprendimento e devoção a um ideal. Ao passo que com os indivíduos isolados o interesse pessoal é quase a única força motivadora, nos grupos ele muito raramente é proeminente. É possível afirmar que um indivíduo tenha seus padrões morais elevados por um grupo (ibid., 65). Ao passo que a capacidade intelectual de um grupo está sempre muito abaixo da de um indivíduo, sua conduta ética pode tanto elevar-se muito acima da conduta deste último, quanto cair muito abaixo dela.
Alguns outros aspectos da descrição de Le Bon mostram, a uma clara luz, quão justificada é a identificação da mente grupal com a mente dos povos primitivos. Nos grupos, as idéias mais contraditórias podem existir lado a lado e tolerar-se mutuamente, sem que nenhum conflito surja da contradição lógica entre elas. Esse é também o caso da vida mental inconsciente dos indivíduos, das crianças e dos neuróticos, como a psicanálise há muito tempo indicou. ­– p. 85/86;
III - Outras Descrições da Vida Mental Coletiva
_ Utilizamos a descrição de Le Bon à guisa de introdução, por ajustar-se tão bem à nossa própria psicologia na ênfase que dá à vida mental inconsciente. Mas temos agora de acrescentar que, na realidade, nenhuma das afirmativas desse autor apresentou algo de novo. Tudo o que diz em detrimento e depreciação das manifestações da mente grupal, já fora dito por outros antes dele, com igual nitidez e igual hostilidade, e fora repetido em uníssono por pensadores, estadistas e escritores desde os primeiros períodos da literatura. As duas teses que abrangem as mais importantes das opiniões de Le Bon, ou seja, as que tocam na inibição coletiva do funcionamento intelectual e na elevação da afetividade nos grupos, foram formuladas pouco antes por Sighele. No fundo, tudo o que resta como peculiar a Le Bon são as duas noções do inconsciente e da comparação com a vida mental dos povos primitivos, e mesmo estas naturalmente, já haviam sido com freqüência aludidas antes dele. – p. 89;
IV - Sugestão e Libido
_ Libido é expressão extraída da teoria das emoções. Damos esse nome à energia, considerada como uma magnitude quantitativa (embora na realidade não seja presentemente mensurável), daqueles instintos que têm a ver com tudo o que pode ser abrangido sob a palavra ‘amor’. O núcleo do que queremos significar por amor consiste naturalmente (e é isso que comumente é chamado de amor e que os poetas cantam) no amor sexual, com a união sexual como objetivo. Mas não isolamos disso – que, em qualquer caso, tem sua parte no nome ‘amor’ -, por um lado, o amor próprio, e, por outro, o amor pelos pais e pelos filhos, a amizade e o amor pela humanidade em geral, bem como a devoção a objetos concretos e a idéias abstratas. Nossa justificativa reside no fato de que a pesquisa psicanalítica nos ensinou que todas essas tendências constituem expressão dos mesmos impulsos instintuais; nas relações entre os sexos, esses impulsos forçam seu caminho no sentido da união sexual, mas, em outras circunstâncias, são desviados desse objetivo ou impedidos de atingi-lo, embora sempre conservem o bastante de sua natureza original para manter reconhecível sua identidade (como em características tais como o anseio de proximidade e o auto-sacrifício). – p. 96;
V – Dois grupos artificiais: a Igreja e o Exército
_ Daquilo que sabemos sobre a morfologia dos grupos podemos recordar que é possível distinguir tipos muito diferentes de grupos e linhas opostas em seu desenvolvimento. Há grupos muito efêmeros e outros extremamente duradouros; grupos homogêneos, constituídos pelos mesmos tipos de indivíduos, e grupos não homogêneos; grupos naturais e grupos artificiais, que exigem uma força externa para mantê-los reunidos; grupos primitivos e grupos altamente organizados, com estrutura definida. Entretanto, por razões ainda não explicadas, gostaríamos de dar ênfase especial a uma distinção a que os que escreveram sobre o assunto, inclinaram-se a conceder muito pouca atenção; refiro-me à distinção existente entre grupos sem líderes e grupos com líderes. E, em completa oposição à prática costumeira, não escolherei, como nosso ponto de partida, uma formação de grupo relativamente simples, mas começarei por grupos altamente organizados, permanentes e artificiais. Os mais interessantes exemplos de tais estruturas são as Igrejas – comunidades de crentes – e os exércitos.
Uma Igreja e um exército são grupos artificiais, isto é, uma certa força externa é empregada para impedi-los de desagregar-se e para evitar alterações em sua estrutura. Via de regra, a pessoa não é consultada ou não tem escolha sobre se deseja ou não ingressar em tal grupo; qualquer tentativa de abandoná-lo se defronta geralmente com a perseguição ou severas punições, ou possui condições inteiramente definidas a ela ligadas. Acha-se inteiramente fora de nosso interesse atual indagar a razão por que essas associações precisam de tais salvaguardas especiais. Somos atraídos apenas por uma circunstância, a saber, a de que certos fatos, muito mais ocultos em outros casos, podem ser observados de modo bastante claro nesses grupos altamente organizados, que são protegidos da dissolução pela maneira já mencionada. – p. 99;
VI – Outros problemas e linhas de trabalho
_ os laços libidinais são o que caracteriza um grupo. – p. 105;
_ As provas da psicanálise demonstram que quase toda relação emocional íntima entre duas pessoas que perdura por certo tempo – casamento, amizade, as relações entre pais e filhos – contém um sedimento de sentimentos de aversão e hostilidade, o qual só escapa à percepção em conseqüência da repressão. – p. 106;
_ O amor por si mesmo só conhece uma barreira: o amor pelos outros, o amor por objetos. – p. 107;
VII - Identificação
– A identificação é conhecida pela psicanálise como a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa. Ela desempenha um papel na história primitiva do complexo de Édipo. Um menino mostrará interesse especial pelo pai; gostaria de crescer como ele, ser como ele e tomar seu lugar em tudo. Podemos simplesmente dizer que toma o pai como seu ideal. Este comportamento nada tem a ver com uma atitude passiva ou feminina em relação ao pai (ou aos indivíduos do sexo masculino em geral); pelo contrário, é tipicamente masculina. Combina-se muito bem com o complexo de Édipo, cujo caminho ajuda a preparar.
Ao mesmo tempo que essa identificação com o pai, ou pouco depois, o menino começa a desenvolver uma catexia de objeto verdadeira em relação à mãe, de acordo com o tipo [anaclítico] de ligação. Apresenta então, portanto, dois laços psicologicamente distintos: uma catexia de objeto sexual e direta para com a mãe e uma identificação com o pai que o toma como modelo. Ambos subsistem lado a lado durante certo tempo, sem qualquer influência ou interferência mútua. Em conseqüência do avanço irresistível no sentido de uma unificação da vida mental, eles acabam por reunir-se e o complexo de Édipo normal origina-se de sua confluência. O menino nota que o pai se coloca em seu caminho, em relação à mãe. Sua identificação com eles assume então um colorido hostil e se identifica com o desejo de substituí-lo também em relação à mãe. A identificação, na verdade, é ambivalente desde o início; pode tornar-se expressão de ternura com tanta facilidade quanto um desejo do afastamento de alguém. Comporta-se como um derivado da primeira fase da organização da libido, da fase oral, em que o objeto que prezamos e pelo qual ansiamos é assimilado pela ingestão, sendo dessa maneira aniquilado como tal. O canibal, como sabemos, permaneceu nessa etapa; ele tem afeição devoradora por seus inimigos e só devora as pessoas de quem gosta. – p. 109;
_ A gênese do homossexualismo masculino, em grande quantidade de casos, é a seguinte: um jovem esteve inusitadamente e por longo tempo fixado em sua mãe, no sentido do complexo de Édipo. Finalmente, porém, após o término da puberdade, chega a ocasião de trocar a mãe por algum outro objeto sexual. As coisas sofrem uma virada repentina: o jovem não abandona a mãe, mas identifica-se com ela; transforma-se e procura então objetos que possam substituir o seu ego para ele, objetos aos quais possa conceder um amor e um carinho iguais aos que recebeu de sua mãe. Trata-se de processo freqüente, que pode ser confirmado tão amiúde quanto se queira, e que, naturalmente, é inteiramente independente de qualquer hipótese que se possa efetuar quanto à força orgânica impulsora e aos motivos de repentina transformação. Uma coisa notável sobre essa identificação é sua ampla escala; ela remolda o ego em um de seus mais importantes aspectos, em seu caráter sexual, segundo o modelo do que até então constituíra o objeto. Neste processo, o objeto em si mesmo é renunciado, se inteiramente ou se no sentido de ser preservado apenas no inconsciente sendo uma questão que se acha fora do escopo do presente estudo. A identificação com um objeto que é renunciado ou perdido, como um sucedâneo para esse objeto – introjeção dele no ego – não constitui verdadeiramente mais novidade para nós. Um processo dessa espécie pode às vezes ser diretamente observado em crianças pequenas. Há pouco tempo atrás uma observação desse tipo foi publicada no Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse. Uma criança que se achava pesarosa pela perda de um gatinho declarou francamente que ela agora era o gatinho e, por conseguinte, andava de quatro, não comia à mesa etc.
Outro exemplo de introjeção do objeto foi fornecido pela análise da melancolia, afecção que inclui entre as mais notáveis de suas causas excitadoras a perda real ou emocional de um objeto amado. Uma característica principal desses casos é a cruel autodepreciação do ego, combinada com uma inexorável autocrítica e acerbas autocensuras. As análises demonstraram que essa depreciação e essas censuras aplicam-se, no fundo, ao objeto e representam a vingança do ego sobre ele. A sombra do objeto caiu sobre o ego, como disse noutra parte. Aqui a introjeção do objeto é inequivocamente clara. – p. 112;
_ considerações sobre o ideal do ego. – p. 113;
VIII – Estar amando e hipnose
­_ Mesmo em seus caprichos, o uso da linguagem permanece fiel a uma certa espécie de realidade. Assim, ela dá o nome de ‘amor’ a numerosos tipos de relações emocionais que agrupamos, também, teoricamente como amor; por outro lado, porém, sente, a seguir, dúvidas se esse amor é amor real, verdadeiro, genuíno, e assim insinua toda uma gama de possibilidades no âmbito dos fenômenos do amor. Não teremos dificuldade em efetuar a mesma descoberta por nossas próprias observações.
Em determinada classe de casos, estar amando nada mais é que uma catexia de objeto por parte dos instintos sexuais com vistas a uma satisfação diretamente sexual, catexia que, além disso, expira quando se alcançou esse objetivo: é o que se chama de amor sensual comum. Mas, como sabemos, raramente a situação libidinal permanece tão simples. Era possível calcular com certeza a revivescência da necessidade que acabara de expirar e, sem dúvida, isso deve ter constituído o primeiro motivo para dirigir uma catexia duradoura sobre o objeto sexual e para ‘amá-lo’ também nos intervalos desapaixonados. – p. 115;
IX – O instinto gregário
_ Trotter põe na relação de instintos que considera primários os da autopreservação, nutrição, sexo e gregário. O último freqüentemente entra em oposição com os outros. Os sentimentos de culpa e de dever são possessões peculiares de um animal gregário. Trotter também deriva do instinto gregário as forças repressivas que a psicanálise demonstrou existirem no ego, e deriva da mesma fonte, por conseguinte, as resistências com que o médico se defronta no tratamento psicanalítico. A fala deve sua importância à aptidão para o entendimento mútuo na grei, sendo nela que a identificação mútua dos indivíduos repousa em grande parte. – p. 122;
X – O grupo e a horda primeva
_ Os grupos humanos apresentam mais uma vez o quadro familiar de um indivíduo de força superior em meio a um bando de companheiros iguais, quadro que também é abarcado em nossa idéia da horda primeva. A psicologia de um grupo assim, como a conhecemos a partir das descrições a que com tanta freqüência nos referimos, o definhamento da personalidade individual consciente, a focalização de pensamentos e sentimentos numa direção comum, a predominância do lado afetivo da mente e da vida psíquica inconsciente, a tendência à execução imediata das intenções tão logo ocorram: tudo isso corresponde a um estado de regressão a uma atividade mental primitiva, exatamente da espécie que estaríamos inclinados a atribuir à horda primeva. – p. 126;
XI – Uma gradação diferenciadora no ego
_ Há sempre uma sensação de triunfo quando algo no ego coincide com o ideal do ego. E o sentimento de culpa (bem como o de inferioridade) também pode ser entendido como uma expressão da tensão entre o ego e o ideal do ego.
Sabe-se bem que existem pessoas cujo colorido geral do estado de ânimo oscila periodicamente de uma depressão excessiva, atravessando algum tipo de estado intermediário, a uma sensação exaltada de bem-estar. Essas oscilações aparecem em graus de amplitude muito diferentes, desde o que é apenas observável até exemplos extremos tais que, sob a forma de melancolia e mania, empreendem as mais perturbadoras ou atormentadoras incursões na vida da pessoa interessada. Nos casos típicos dessa depressão cíclica, as causas precipitantes externas não parecem desempenhar qualquer papel decisivo; quanto aos motivos internos, nesses pacientes, não se encontra nada a mais, ou nada mais, do que em todos os outros. Conseqüentemente, tornou-se costume considerar esses casos como não sendo psicogênicos. Dentro em pouco nos referiremos àqueles outros casos exatamente semelhantes de depressão cíclica que podem ser facilmente remontados a traumas mentais.
Os fundamentos dessas oscilações espontâneas de estado de ânimo são, assim, desconhecidos. Falta-nos compreensão do mecanismo do deslocamento de uma melancolia realizado por uma mania, de modo que nos achamos livres para supor que esses pacientes sejam pessoas em quem nossa conjectura poderia encontrar uma aplicação real: seu ideal do ego poderia ter-se temporariamente convertido no ego, após havê-lo anteriormente governado com especial rigidez. – p. 134;
XII – Pós-escrito
_ Assim, o mito é o passo com o qual o indivíduo emerge da psicologia de grupo. O primeiro mito foi certamente o psicológico, o mito do herói; o mito explicativo da natureza deve tê-lo seguido muito depois. O poeta que dera esse passo, com isso libertando-se do grupo em sua imaginação, é, não obstante (como Rank observa ainda), capaz de encontrar seu caminho de volta ao grupo na realidade – porque ele vai e relata ao grupo as façanhas do herói, as quais inventou. No fundo, esse herói não é outro senão ele próprio. Assim, desce ao nível da realidade e eleva seus ouvintes ao nível da imaginação. Seus ouvintes, porém, entendem o poeta e, em virtude de terem a mesma relação de anseio pelo pai primevo, podem identificar-se com o herói.
A mentira do mito heróico culmina pela deificação do herói. Talvez o herói deificado possa ter sido mais antigo que o Deus Pai e precursor do retorno do pai primevo como deidade. A série dos deuses, então, seria cronologicamente esta: Deusa Mãe – Herói – Deus Pai. Mas só com a elevação do pai primevo nunca esquecido a divindade adquire as características que ainda hoje nela identificamos. – p. 139;
_ Mesmo na pessoa que, sob outros aspectos, se absorveu em um grupo, os impulsos diretamente sexuais conservam um pouco de sua atividade individual. Se se tornam fortes demais, desintegram qualquer formação grupal. A Igreja Católica possui o melhor dos motivos para recomendar a seus seguidores que permaneçam solteiros, e para impor o celibato a seus sacerdotes, mas o apaixonar-se com freqüência impeliu mesmo padres a abandonar a Igreja. Da mesma maneira, o amor pelas mulheres rompe os vínculos grupais de raça, divisões nacionais e sistema de classes sociais, produzindo importantes efeitos como fator de civilização. Parece certo que o amor homossexual é muito mais compatível com os laços grupais, mesmo quando toma o aspecto de impulsos sexuais desinibidos, fato notável cuja explicação poderia levar-nos longe.
A investigação psicanalítica das psiconeuroses nos ensinou que seus sintomas devem ser remetidos a impulsos diretamente sexuais que são reprimidos mas permanecem ainda ativos. Podemos completar essa fórmula acrescentando: ‘ou a impulsos inibidos nos objetivos, cuja inibição não foi inteiramente bem-sucedida ou permitiu um retorno do objetivo sexual reprimido’. Está de acordo com isso que uma neurose torne associal a sua vítima ou a afaste das formações habituais de grupo. Pode-se dizer que uma neurose tem sobre o grupo o mesmo efeito desintegrador que o estado de estar amando. Por outro lado, parece que onde foi dado um poderoso ímpeto à formação de grupo, as neuroses podem diminuir ou, pelo menos temporariamente, desaparecer. Justificáveis tentativas foram feitas para situar esse antagonismo entre as neuroses e as formações de grupo a serviço da terapêutica. Mesmo os que não lamentam o desaparecimento das ilusões religiosas do mundo civilizado de hoje, admitem que, enquanto estiveram em vigor, ofereceram aos que a elas se achavam presos a mais poderosa proteção contra o perigo da neurose. Tampouco é difícil discernir que todos os vínculos que ligam as pessoas a seitas e comunidades místico-religiosas ou filosófico-religiosas, são expressões de curas distorcidas de todos os tipos de neuroses. Tudo isso se correlaciona com o contraste entre os impulsos diretamente sexuais e os inibidos em seus objetivos.
Se é abandonado a si próprio, um neurótico é obrigado a substituir por suas próprias formações de sintomas as grandes formações de grupo de que se acha excluído. Ele cria seu próprio mundo de imaginação, sua própria religião, seu próprio sistema de delírios, recapitulando assim as instituições da humanidade de uma maneira distorcida, que constitui prova evidente do papel dominante desempenhado pelos impulsos diretamente sexuais. – p. 145;
A Psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher (1920)
I
_ O homossexualismo nas mulheres, que certamente não é menos comum que nos homens, embora muito menos manifesto, não só tem sido ignorado pela lei, mas também negligenciado pela pesquisa psicanalítica. A narração de um caso isolado, não muito marcante em categoria, no qual foi possível determinar sua origem e desenvolvimento na mente com uma segurança completa e quase sem lacunas, pode assim reivindicar certa atenção. Se essa apresentação do caso fornece apenas os contornos mais gerais dos diversos fatos correlacionados e das conclusões obtidas de um estudo do caso, suprimindo ao mesmo tempo todos os pormenores característicos sobre os quais se funda a interpretação, essa limitação pode ser facilmente explicada pela discrição médica necessária à discussão de um caso recente.
Uma bela e inteligente jovem de dezoito anos, pertencente a uma família de boa posição, despertara desprazer e preocupação em seus pais pela devotada adoração com que perseguia certa ‘dama da sociedade’ cerca de dez anos mais velha que ela própria. Os pais asseguravam que, a despeito de seu nome eminente, essa senhora não era mais que uma cocotte. Era bem conhecido, diziam, que vivia com uma amiga, uma mulher casada, com quem tinha relações íntimas ao mesmo tempo que mantinha casos promíscuos com certo número de homens. A moça não desmentia esses relatos maldosos, mas sequer permitia-lhes interferir em sua adoração da dama, embora de modo algum lhe faltasse certo senso de decência e propriedade. Nem as proibições nem a vigilância impediam a jovem de aproveitar todas as suas raras oportunidades de encontrar-se com a bem-amada, de verificar todos os seus hábitos, de esperar por ela durante horas diante de sua porta ou numa parada de bonde, de mandar-lhe presentes ou flores, e assim por diante. Era evidente que esse interesse único havia engolfado todos os outros na mente da jovem. – p. 151;
_ Outros aspectos desfavoráveis no presente caso eram os fatos de a jovem não estar de modo algum doente (não sofria em si de nada, nem se queixava de sua condição) e de a tarefa a cumprir não consistir em solucionar um conflito neurótico, mas em transformar determinada variedade da organização genital da sexualidade em outra. Tal realização – a remoção da inversão genital ou homossexualismo – nunca, pela minha experiência, é matéria fácil. Pelo contrário, só achei possível o êxito em circunstâncias especialmente favoráveis e, assim mesmo, o sucesso consistia essencialmente em facilitar o acesso ao sexo oposto (até então barrado) a uma pessoa restrita ao homossexualismo, restaurando assim suas funções bissexuais plenas. Depois, competia a ela escolher se desejava abandonar o caminho que é proibido pela sociedade, e, em alguns casos, assim procedia. Devemos lembrar-nos de que também a sexualidade normal depende de uma restrição na escolha do objeto. Em geral, empreender a conversão de um homossexual plenamente desenvolvido em um heterossexual não oferece muito maiores perspectivas de sucesso que o inverso; exceto que, por boas e práticas razões, o último caso nunca é tentado. – p. 154;
II
_ Na idade dos treze aos quatorze anos apresentara uma afeição terna e, segundo a opinião geral, exageradamente forte por um menino de menos de três anos de idade, a quem costumava ver regularmente num playground infantil. Apegou-se à criança tão calorosamente que, em conseqüência, uma amizade duradoura surgiu entre ela e os pais dele. Pode-se inferir desse episódio que, naquela época, achava-se possuída de forte desejo de ser mãe e ter um filho. Contudo, após curto tempo, tornou-se indiferente ao menino e começou a interessar-se por mulheres maduras porém de aparência ainda jovem. As manifestações desse interesse logo lhe valeram um severo castigo das mãos de seu pai.
Ficou estabelecido, além de qualquer dúvida, que essa mudança ocorreu simultaneamente com certo acontecimento na família e, assim, pode-se examiná-lo em busca de alguma explicação para a mudança. Antes que acontecesse, sua libido se concentrava em uma atitude maternal, a seguir tornando-se uma homossexual atraída por mulheres maduras, assim permanecendo desde então. O acontecimento, tão significante para a nossa compreensão do caso, foi uma nova gravidez de sua mãe, e o nascimento de um terceiro irmão quando a paciente contava cerca de dezesseis anos de idade. – p. 160;
_ A explicação é a seguinte: no exato período em que a jovem experimentava a revivescência de seu complexo de Édipo infantil, na puberdade, sofreu seu grande desapontamento. Tornou-se profundamente cônscia do desejo de possuir um filho, um filho homem; seu desejo de ter o filho de seu pai e uma imagem dele, na consciência ela não podia conhecer. Que sucedeu depois? Não foi ela quem teve o filho, mas sua rival inconscientemente odiada, a mãe. Furiosamente ressentida e amargurada, afastou-se completamente do pai e dos homens. Passado esse primeiro grande revés, abjurou de sua feminidade e procurou outro objetivo para sua libido.
Assim procedendo, comportou-se exatamente como muitos homens que, após uma primeira experiência penosa, dão as costas, para sempre, ao infiel sexo feminino e se tornam odiadores de mulheres. Relata-se de uma das mais atraentes e infelizes figuras principescas de nossa época que ele se tornou homossexual porque a dama com quem estava comprometido em matrimônio traiu-o com outro homem. Ignoro se isso é historicamente verdadeiro, mas por trás do boato há um elemento de verdade psicológica. Em todos nós, no decorrer da vida, a libido oscila normalmente entre objetos masculinos e femininos; o solteiro abandona seus amigos homens, ao casar-se, e retorna à vida de clube quando a vida conjugal perdeu o sabor. Naturalmente, quando a amplitude da oscilação é fundamental e final, suspeitamos da presença de algum fator especial que favorece definidamente um lado ou outro e que talvez só tenha esperado pelo momento apropriado para voltar a escolha de objeto em sua direção.
Assim, após seu desapontamento a jovem repudiara inteiramente seu desejo de um filho, o amor dos homens e o papel feminino em geral. É evidente que, nesse ponto, algumas coisas bem diferentes poderiam ter acontecido. O que realmente ocorreu foi o caso mais extremo. Ela se transformou em homem e tomou a mãe, em lugar do pai, como objeto de seu amor. Sua relação com a mãe certamente fora ambivalente desde o início, foi fácil reviver o primitivo amor por ela e, com o seu auxílio, provocar uma supercompensação de sua hostilidade atual para com a mesma. De vez que pouco havia a fazer com a mãe real, dessa transformação de sentimentos nasceu a busca de uma mãe substituta, a quem poderia ligar-se apaixonadamente.
Ademais, havia um motivo prático para essa mudança, derivado de suas relações reais com a mãe, que serviu como novo ganho [secundário] à sua doença. A própria mãe ainda ligava grande valor às atenções e à admiração dos homens. A jovem, tornando-se homossexual e deixando os homens para a mãe (noutras palavras, ‘se se retirasse em benefício’ dela), poderia afastar algo que até então fora parcialmente responsável pela antipatia da mãe. – p. 161/162;
III
_ Somos levados a outro domínio inteiramente diferente de explicação pela análise da tentativa de suicídio, que devo encarar como seriamente intencionada e que, incidentalmente, melhorou bastante sua posição tanto com relação aos pais quanto à senhora que amava. Saiu, certo dia, de passeio com ela, numa parte da cidade e em hora que não era improvável encontrar seu pai de volta do escritório. Assim aconteceu. O pai passou por ela, na rua, de olhar furioso para ela e sua companheira, de que, nessa época, vinha tomando conhecimento. Poucos momentos depois, ela atirou-se para dentro do corte ferroviário. A sua explicação das razões imediatas que determinaram sua decisão, pareciam inteiramente plausíveis. Confessara à senhora que o homem que lhes dirigira o olhar tão enfurecido era seu pai, e que ele proibira por completo a amizade entre elas. A dama encolerizara-se com isso e ordenara à jovem que a deixasse ali mesmo e nunca mais esperá-la ou a ela se dirigir: o caso tinha de terminar ali. Desesperada por haver dessa forma perdido para sempre sua bem-amada, quis pôr termo à sua própria vida. A análise, contudo, pode descobrir outra interpretação mais profunda por trás da que forneceu, confirmada pela interpretação dos próprios sonhos da paciente. A tentativa de suicídio, como se podia esperar, foi determinada por dois outros motivos, além do que ela forneceu: a realização de uma punição (autopunição) e a realização de um desejo. Esse último significava a consecução do próprio desejo que, quando frustrado, a impelira ao homossexualismo: o desejo de ter um filho do pai, pois agora ela ‘caíra’ por culpa do pai. O fato de, naquele momento, a senhora haver-lhe falado exatamente nos mesmos termos que o pai e proferido a mesma proibição, forma o elo vinculatório entre essa interpretação profunda e a superficial, de que a própria jovem estava ciente. Do ponto de vista da autopunição, a ação da jovem nos mostra que desenvolvera no inconsciente intensos desejos de morte contra um ou outro de seus genitores, talvez contra o pai, como vingança por impedir seu amor, porém mais provavelmente contra a mãe, quando grávida do irmão pequeno, tendo a análise explicado o enigma do suicídio da seguinte maneira: é provável que ninguém encontre a energia mental necessária para matar-se, a menos que, em primeiro lugar, agindo assim, esteja ao mesmo tempo matando um objeto com quem se identificou e, em segundo lugar, voltando contra si próprio um desejo de morte antes dirigido contra outrem. Tampouco a descoberta regular desses desejos de morte inconscientes naqueles que tentaram o suicídio precisa surpreender-nos (não mais do que deveria para fazer-nos refletir que isso confirma nossas deduções), de vez que o inconsciente de todos os seres humanos se acha bem repleto de tais desejos de morte, até contra aqueles a quem amam. Uma vez que a jovem se identificava com a mãe, que deveria ter morrido no nascimento do filho, a ela negado, essa realização de punição constituía mais uma vez uma realização de desejo. Finalmente, a descoberta de que vários motivos inteiramente diversos, todos de grande intensidade, devem ter cooperado para tornar possível tal ação, está de estrito acordo com o que esperaríamos. – p. 165/166;
IV
_ Retorno agora, após essa digressão, à consideração do caso de minha paciente. Fizemos um levantamento das forças que conduziram a libido da jovem da atitude de Édipo normal à do homossexualismo, e dos caminhos psíquicos percorridos por ela no processo. O mais importante nesse respeito foi a impressão causada pelo nascimento de seu irmãozinho e a partir disso poderíamos inclinar-nos a classificar o caso como de inversão posteriormente adquirida. – p. 171;
_ Não sustentaremos, portanto, que toda jovem que experimenta um desapontamento, como esse do anseio de amor, que brota da atitude de Édipo na puberdade, necessariamente cairá, por causa disso, vítima do homossexualismo. Pelo contrário, outros tipos de reação a esse trauma sem dúvida são mais comuns. Contudo, sendo assim, na jovem paciente podem ter existido fatores especiais que fizeram pender a balança, fatores externos ao trauma, provavelmente de natureza interna. Além do mais, não há qualquer dificuldade em apontá-los.
Sabe-se bem que, mesmo em uma pessoa normal, leva algum tempo antes de se tomar finalmente a decisão com referência ao sexo do objeto amoroso. Entusiasmos homossexuais, amizades exageradamente intensas e matizadas de sensualidades são bastante comuns em ambos os sexos durante os primeiros anos após a puberdade. Assim também aconteceu com nossa paciente; nela, porém, essas tendências mostraram-se sem dúvida mais fortes e permaneceram mais tempo do que noutras pessoas. Além disso, esses presságios de homossexualismo posterior haviam ocupado sempre a sua vida consciente, enquanto a atitude originária do complexo de Édipo permanecera inconsciente e se mostrara apenas em sinais, tais como o seu comportamento terno com o garotinho. Quando estudante, estivera longo tempo enamorada de uma professora rígida e inaproximável, evidentemente uma mãe substituta. Mostrara muito vivo interesse em certo número de jovens mães, bem antes do nascimento do irmão, portanto com mais certeza ainda, antes da primeira reprimenda do pai. Assim, desde anos muito precoces sua libido fluíra em duas correntes, das quais a da superfície é a que, sem hesitação, podemos designar como homossexual. Essa última era provavelmente uma continuação direta e imodificada de uma fixação infantil na mãe. Possivelmente a análise aqui descrita na realidade não revelou nada mais que o processo pelo qual, em ocasião apropriada, também a corrente heterossexual e mais profunda da libido foi desviada para a homossexual e manifesta. – p. 171/172;
_ A literatura do homossexualismo em geral deixa de distinguir claramente entre as questões da escolha do objeto, por um lado, e das características sexuais e da atitude sexual do sujeito, pelo outro, como se a resposta à primeira necessariamente envolvesse as respostas às últimas. A experiência, contudo, demonstra o contrário: um homem com características predominantemente masculinas e também masculino em sua vida erótica pode ainda ser invertido com respeito ao seu objeto, amando apenas homens, em vez de mulheres. Um homem em cujo caráter os atributos femininos obviamente predominam, que possa, na verdade, comportar-se no amor como uma mulher, dele se poderia esperar, com essa atitude feminina, que escolhesse um homem como objeto amoroso; não obstante, pode ser heterossexual e não mostrar, com respeito a seu objeto, mais inversão do que um homem médio normal. O mesmo procede, quanto às mulheres; também aqui o caráter sexual mental e a escolha de objeto não coincidem necessariamente. O mistério do homossexualismo, portanto, não é de maneira alguma tão simples quanto comumente se retrata nas exposições populares: ‘uma mente feminina, fadada assim a amar um homem, mas infelizmente ligada a um corpo masculino; uma mente masculina, irresistivelmente atraída pelas mulheres, mas, ai dela, aprisionada em um corpo feminino’. Trata-se, em seu lugar, de uma questão de três conjuntos de características, a saber: Caracteres sexuais físicos (hermafroditismo físico), Caracteres sexuais mentais (atitude masculina ou feminina) e Tipo de escolha de objeto. – p. 173/174;
_ Não compete à psicanálise solucionar o problema do homossexualismo. Ela deve contentar-se com revelar os mecanismos psíquicos que culminaram na determinação da escolha de objeto, e remontar os caminhos que levam deles até às disposições instintuais. Aqui o seu trabalho termina e ela deixa o restante à pesquisa biológica, que recentemente trouxe à luz, através dos experimentos de Steinach, resultados muito importantes concernentes à influência exercida pelo primeiro conjunto de características, acima mencionadas, sobre o segundo e o terceiro. A psicanálise possui uma base comum com a biologia, ao pressupor uma bissexualidade original nos seres humanos (tal como nos animais). Mas a psicanálise não pode elucidar a natureza intrínseca daquilo que, na fraseologia convencional ou biológica, é denominado de ‘masculino’ e ‘feminino’: ela simplesmente toma os dois conceitos e faz deles a base de seu trabalho. – p. 174;
Psicanálise e Telepatia (1941 [1921])
Introdução
_ Não estamos destinados, segundo parece, a dedicar-nos com tranqüilidade à ampliação de nossa ciência. Mal acabamos de repelir triunfalmente dois ataques – um dos quais procurava mais uma vez negar o que trouxemos à luz e só nos oferecia em troca o tema do repúdio, ao passo que o outro tentava persuadir-nos de que nos equivocáramos da natureza do que descobrimos e poderíamos, com vantagem, tomar outra coisa em seu lugar -, logo, então, que nos sentimos seguros quanto a esses inimigos e já outro perigo surgiu. E, desta vez, é algo tremendo, algo de elementar, que ameaça não somente a nós, ameaça, talvez mais ainda, a nossos inimigos.
Não mais parece possível manter-se afastado do estudo daqueles fenômenos conhecidos como ‘ocultos’, ou seja, dos fatos que professam falar em favor da existência real de forças psíquicas outras que não as mentes humanas e animais com que estamos familiarizados, ou que parecem revelar a posse, por essas mentes, de faculdades até aqui irreconhecidas. O ímpeto no sentido dessa investigação parece irresistivelmente forte. – p. 181;
I
_ Alguns anos antes da guerra, um jovem procedente da Alemanha veio até mim a fim de ser analisado. Queixava-se de ser incapaz de trabalhar, de haver esquecido sua vida passada e de ter perdido todo o interesse. Era estudante de filosofia em Munique e estava preparando-se para o exame final. Casualmente, era um jovem altamente instruído bastante dissimulado, velhaco de uma maneira infantil e filho de um financista; como veio a surgir depois, o jovem remodelara com sucesso uma quantidade colossal de erotismo anal. Quando lhe perguntei se não havia realmente nada de que pudesse lembrar-se sobre sua vida ou sua esfera de interesse, recordou-se do enredo de um romance que esboçara, passado no Egito durante o reinado de Amenófis IV e no qual um anel em particular representava um papel importante. Tomamos esse romance como ponto de partida; o anel mostrou ser um símbolo de matrimônio e, a partir daí, conseguimos reviver todas as suas lembranças e interesses. Descobrimos que seu colapso fora o resultado de um grande ato de autodisciplina mental de sua parte. Tinha uma única irmã, alguns anos mais nova que ele, a quem era sincera e muito indisfarçadamente devotado. ‘Por que é que não podemos casar-nos?’, haviam amiúde perguntado um ao outro, mas a afeição entre eles nunca fora além do ponto permissível entre irmãos e irmãs. – p. 186;
II
_ Na cidade de F – cresceu uma criança que era a mais velha de uma família de cinco, todas meninas. A caçula era dez anos mais moça que ela; certa ocasião, deixara a menor cair-lhe dos braços, quando bebê; mais tarde, chamava-a de ‘sua filha’. A mãe era mais velha que o pai, e não era uma pessoa agradável. O pai – e não só na idade era mais jovem – via bastante as menininhas e as impressionava por suas muitas destrezas. Infelizmente, não impressionara sob nenhum outro aspecto: era incompetente nos negócios e incapaz de sustentar a família sem o auxílio dos parentes. A filha mais velha tornou-se, em tenra idade, o repositório de todas as preocupações que surgiam pela falta de poder aquisitivo do pai.
Uma vez deixado para trás o caráter rígido e apaixonado de sua infância, ela se transformou em um bom espelho de todas as virtudes. Seus elevados sentimentos morais faziam-se acompanhar de uma inteligência estreitamente limitada. Tornou-se professora de uma escola primária e era muito respeitada. A tímida homenagem que lhe prestou um jovem conhecido, professor de música, deixou-a indiferente. Nenhum homem até então havia atraído sua atenção.
Certo dia, um parente da mãe apareceu em cena, homem bem mais idoso que ela, mas ainda jovem (pois ela contava apenas dezenove anos de idade). Era um estrangeiro que vivia na Rússia como diretor de uma grande empresa comercial e se enriquecera. Foi preciso nada menos que uma guerra mundial e a derrota de um grande despotismo para empobrecê-lo. Apaixonou-se por sua jovem e severa prima e pediu-lhe para ser sua esposa. Os pais não a pressionaram, mas ela entendeu seus desejos. Por trás de todas as suas idéias morais, sentiu a atração da realização de uma fantasia plena do desejo de ajudar o pai e resgatá-lo de seu estado de necessidade. Calculou que o primo daria ao pai apoio financeiro enquanto este continuasse com o negócio e uma pensão quando finalmente o abandonasse, bem como forneceria às irmãs dotes e trousseaux, a fim de poderem casar-se. E apaixonou-se por ele, casou-se pouco depois e o acompanhou à Rússia. – p. 190;
_ Terão compreendido o sentido de minha inclinação a interpretar essas experiências minhas com Schermann. Verão que todo o meu material se relaciona apenas ao ponto isolado da transmissão de pensamento. Nada tenho a dizer sobre todos os outros milagres que reivindica o ocultismo. Minha própria vida, como já abertamente admiti, tem sido particularmente pobre, no sentido do oculto. Talvez o problema da transmissão de pensamento possa parecer-lhes muito trivial em comparação com o grande mágico do oculto, mas considerem que grave medida além do que até aqui acreditamos estaria envolvida apenas nessa hipótese. O que o zelador de [a basílica de] São Dionísio costumava acrescentar à sua narração do martírio do santo permanece uma verdade. Conta-se que São Dionísio, após sua cabeça haver sido cortada, apanhou-a do chão e caminhou boa distância com ela sob o braço. Mas o zelador costumava acrescentar: ‘Dans des cas pareils, ce n’est que le premier pas qui coûte.’ O resto é fácil. – p. 196/197;
Sonhos e Telepatia (1922)
_ Atualmente, quando se sente tão grande interesse pelo que é chamado de fenômenos ‘ocultos’, expectativas muito definidas serão indubitavelmente despertadas pelo anúncio de um artigo com esse título. Não obstante, apresso-me em explicar que não há fundamento para tais expectativas. Nada aprenderão, deste meu trabalho, sobre o enigma da telepatia; na verdade, nem mesmo depreenderão se acredito ou não em sua existência. Nesta ocasião, propus-me a tarefa muito modesta de examinar a relação das ocorrências telepáticas em causa, seja qual for sua origem, com os sonhos, ou, mais exatamente, com nossa teoria dos sonhos. Saberão que comumente se acredita ser muito íntima a conexão entre sonhos e telepatia; apresentarei a opinião de que ambos pouco têm a ver reciprocamente, e que, viesse a existência de sonhos telepáticos a ser estabelecida, não haveria necessidade de modificar nossa concepção dos sonhos, em absoluto.
O material em que se baseia o presente relato é muito tênue. Em primeiro lugar, devo expressar meu pesar de não poder fazer uso de meus próprios sonhos, como fiz quando escrevi A Interpretação de Sonhos (1900a). Porém, nunca tive um sonho ‘telepático’. Não que eu passasse sem sonhos do tipo que transmitem a impressão de que um certo evento definido está acontecendo em algum lugar distante, deixando ao que sonha decidir se o fato está acontecendo naquele momento ou acontecerá em alguma época posterior. Também na vida desperta amiúde me dei conta de pressentimentos de acontecimentos distantes. Contudo, nenhuma dessas impressões, previsões e premonições se ‘realizaram’, como dizemos; não se demonstrou existir uma realidade externa correspondente a elas e, portanto, tiveram de ser encaradas como previsões puramente subjetivas. – p. 203;
_ Assim, meu material consiste simples e unicamente em dois relatos que chegaram até mim de correspondentes na Alemanha. Os autores não me são pessoalmente conhecidos, mas fornecem seus nomes e endereços; não tenho o menor fundamento para presumir, de sua parte, qualquer intenção de embuste. – p. 205;
I
_ Com o primeiro dos dois já havia mantido correspondência; fora suficientemente gentil em enviar-me, como muitos de meus leitores fazem, observações de ocorrências cotidianas e coisas assim. Trata-se obviamente de um homem instruído e extremamente inteligente; dessa vez, coloca expressamente seu material à minha disposição, caso me interesse em transformá-lo em ‘relato literário’.
Sua carta diz o seguinte:
‘Considero o seguinte sonho como de interesse suficiente para que o transmita ao senhor, a título de material para suas pesquisas.
‘Devo primeiro enunciar os seguintes fatos. Minha filha, que é casada e mora em Berlim, esperava seu primeiro parto em meados de dezembro deste ano. Eu pretendia ir a Berlim, na ocasião, com minha (segunda) esposa, madrasta de minha filha. Durante a noite de 16 para 17 de novembro sonhei, com vividez e clareza nunca experimentada, que minha esposa havia dado à luz gêmeos. Vi os dois saudáveis bebês muito claramente, com seus rostos rechonchudos, deitados em seu berço, lado a lado. Não lhes observei o sexo; um, de cabelos claros, tinha distintamente as minhas feições e algo das de minha esposa; o outro, de cabelos castanhos, parecia-se claramente com ela, com algum aspecto meu. Disse a minha esposa, que tem cabelos louro-arruivados: “Provavelmente o cabelo castanho de ‘seu’ filho também ficará ruivo mais tarde.” Minha mulher deu-lhe o seio. No sonho, ela também fizera um pouco de geléia numa bacia de lavar e as duas crianças engatinhavam pela bacia e lambiam-lhe o conteúdo. – p. 206;
_    Tenho esperanças de que irão pressupor isso; irão porém levantar a objeção de que, não obstante, existem outros sonhos telepáticos em que não há diferença entre o acontecimento e o sonho e nos quais nada mais se pode encontrar senão uma reprodução não deformada do evento. Em minha própria experiência, não tenho conhecimento desses sonhos, mas sei que foram muitas vezes comunicados. Se presumirmos a necessidade de lidarmos com um sonho telepático assim, indisfarçado e inadulterado, surgirá outra questão. Deveríamos chamar essa experiência telepática realmente de ‘sonho’? Certamente o farão enquanto se ativerem à praxe popular, segundo a qual tudo o que acontece na vida mental durante o sono é chamado de sonho. Vocês, também, talvez digam: ‘Agitei-me no sonho’ e ainda se acham menos conscientes de alguma incorreção quando falam: ‘Derramei lágrimas no sonho’ ou ‘Senti-me apreensivo no sonho’. Mas sem dúvida notarão que em todos esses casos estão empregando ‘sonho’, ‘sono’ e ‘estado de estar adormecido’ intercambiavelmente, como se não houvesse distinção entre eles. Penso que seria interessante para a precisão científica manter ‘sonho’ e ‘estado de sono’ mais distintamente separados. Por que deveríamos fornecer uma contrapartida à confusão evocada por Maeder que, por recusar-se a distinguir entre a elaboração onírica e os pensamentos oníricos latentes, descobriu uma nova função para os sonhos? Supondo-se, então, que somos colocados frente a frente com um ‘sonho’ telepático puro, denominemo-lo de preferência, em vez de ‘sonho’, de experiência telepática em um estado de sono. Um sonho sem condensação, deformação, dramatização e, acima de tudo, sem realização de desejo, certamente não merece esse nome. Recordar-me-ão de que, sendo assim, existem outros produtos mentais no sono a que o direito de serem chamados ‘sonhos’ teria de ser recusado. – p. 213;
II
_ O segundo caso que apresentarei à observação, na realidade segue outras linhas. Não se trata de um sonho telepático, mas de um sonho recorrente da infância em diante, em uma pessoa que teve muitas experiências telepáticas. A sua carta, que reproduzirei aqui, contém certas coisas notáveis a cujo respeito não podemos formar nenhum julgamento. Uma parte dela é de interesse quanto ao problema da relação da telepatia com os sonhos. – p. 215;
_ O modo como a nossa presente sonhadora, em idade tão precoce, possa ter chegado aos mais refinados detalhes do simbolismo – língua de terra, palmeira -, acho-me naturalmente incapaz de dizê-lo. Não devemos, ademais, desprezar o fato de que, quando as pessoas asseveram serem há anos perseguidas pelo mesmo sonho, acontece com freqüência que o conteúdo manifesto não é inteiramente o mesmo. Somente o âmago do sonho é que recorreu a cada vez; os pormenores do conteúdo são alterados ou acréscimos lhe são efetuados. – p. 219;
Alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranoia e no homossexualismo (1922)
A
_ O ciúme é um daqueles estados emocionais, como o luto, que podem ser descritos como normais. Se alguém parece não possuí-lo, justifica-se a inferência de que ele experimentou severa repressão e, conseqüentemente, desempenha um papel ainda maior em sua vida mental inconsciente. Os exemplos de ciúme anormalmente intenso encontrados no trabalho analítico revelam-se como constituídos de três camadas. As três camadas ou graus do ciúme podem ser descritas como ciúme (1) competitivo ou normal, (2) projetado, e (3) delirante. – p. 231;
B
_ Paranóia - Os casos de paranóia, por razões bem conhecidas, não são geralmente sensíveis à investigação analítica. Recentemente, porém, mediante um estudo intensivo de dois paranóicos pude descobrir algo de novo para mim. – p. 234;
C
_ Homossexualismo. – O reconhecimento do fator orgânico no homossexualismo não nos isenta da obrigação de estudar os processos psíquicos vinculados à sua origem. O processo típico, já estabelecido em casos inumeráveis, é de um jovem, alguns anos após a puberdade, e que até então fora intensamente fixado na mãe, mudar de atitude; identifica-se com ela e procura objetos amorosos em quem possa redescobrir-se e a quem possa então amar como a mãe o amara. A marca característica desse processo é que, por vários anos, uma das condições necessárias para o seu amor consiste em o objeto masculino ter, em geral, a mesma idade que ele próprio tinha quando se deu a mudança. Vimos a conhecer diversos fatores que contribuem para esse resultado, provavelmente em graus diferentes. Primeiro há a fixação na mãe, que fica difícil de passar para outra mulher. A identificação com a mãe é um resultado dessa ligação e ao mesmo tempo, em certo sentido, permite que o filho lhe permaneça fiel, a ela que foi seu primeiro objeto. Há em seguida inclinação no sentido de uma escolha de objeto narcísico, que em geral se encontra mais à mão e é mais fácil de efetuar que um movimento no sentido do outro sexo. Por trás desse último fator jaz oculto um outro, de força bastante excepcional, ou talvez coincida com ele: o alto valor atribuído ao órgão masculino e a incapacidade de tolerar sua ausência num objeto amoroso. A depreciação das mulheres, a aversão e até mesmo o horror a elas derivam-se geralmente da precoce descoberta de que as mulheres não possuem pênis. Subseqüentemente descobrimos, como outro poderoso motivo a compelir no sentido da escolha homossexual de objeto, a consideração pelo pai ou o medo dele, porque a renúncia às mulheres significa que toda a rivalidade com aquele (ou com todos os homens que podem tomar seu lugar) é evitada. Os dois últimos motivos – o apego à condição de existência de um pênis no objeto, bem como o afastamento em favor do pai – podem ser atribuídos ao complexo de castração. A ligação à mãe, o narcisismo, o medo da castração são os fatores (que, incidentalmente, nada têm em si de especial) que até o presente encontramos na etiologia psíquica do homossexualismo; com eles é preciso computar o efeito da sedução responsável por uma fixação prematura da libido, bem como a influência do fator orgânico que favorece o papel passivo no amor.
Nunca consideramos, entretanto, esta análise da origem do homossexualismo como completa. Posso agora indicar um novo mecanismo que conduz à escolha homossexual do objeto, embora não possa dizer quão grande é o papel que ele desempenha na formação do tipo de homossexualismo extremo, manifesto e exclusivo. A observação dirigiu minha atenção para diversos casos em que, durante a primeira infância, impulsos de ciúmes, derivados do complexo materno e de grande intensidade, surgiram [num menino] contra os rivais, geralmente irmãos mais velhos. Esse ciúme provocou uma atitude excessivamente hostil e agressiva para com esses irmãos, que poderia às vezes atingir a intensidade de desejos reais de morte, incapazes então de manter-se face ao desenvolvimento ulterior do sujeito. Sob as influências da criação – e certamente sem deixar de ser influenciados também por sua própria e continuada impotência – esses impulsos renderam-se à repressão e experimentaram uma transformação, de maneira que os rivais do período anterior se tornaram os primeiros objetos amorosos homossexuais. Tal resultado da ligação à mãe mostra-nos diversas relações e interessantes com outros processos que nos são conhecidos. Antes de tudo, ele é um contraste completo com o desenvolvimento da paranóia persecutória, na qual a pessoa anteriormente amada se torna o perseguidor odiado, ao passo que aqui os rivais odiados se transformam em objetos amorosos. Representa também uma exageração do processo que, na minha opinião, conduz ao nascimento dos instintos sociais no indivíduo. Em ambos os processos há primeiro a presença de impulsos ciumentos e hostis que não podem conseguir satisfação, e tanto os sentimentos afetuosos quanto os sentimentos sociais de identificação surgem como formações reativas contra os impulsos agressivos reprimidos.
Esse novo mecanismo de escolha homossexual de objeto – sua origem na rivalidade que foi sobrepujada e em impulsos agressivos que se tornaram reprimidos – combina-se às vezes com as condições típicas já familiares para nós. Na história dos homossexuais ouve-se amiúde que neles a mudança se efetuou após a mãe ter elogiado outro rapaz e tê-lo estabelecido como modelo. A tendência à escolha narcísica de objeto foi assim estimulada e, após uma breve fase de agudos ciúmes, o rival se torna um objeto amoroso. Via de regra, contudo, o novo mecanismo se distingue pelo fato de a mudança efetuar-se em um período muito mais precoce e a identificação com a mãe retroceder para o segundo plano. Ademais, nos casos que observei, ele apenas levou a atitudes homossexuais que não excluem a heterossexualidade e não envolvem um horror feminae.
É bem conhecido que um bom número de homossexuais se caracteriza por um desenvolvimento especial de seus impulsos instintuais sociais e por sua devoção aos interesses da comunidade. Seria tentador, como explicação teórica pertinente, dizer que o comportamento para com os homens em geral, de um homem que vê nos outros homens objetos amorosos potenciais, deve ser diferente do de um homem que encara os outros, em primeira instância, como rivais em relação às mulheres. A única objeção a isso é que o ciúme e a rivalidade desempenham seu papel também no amor homossexual e que a comunidade dos homens também inclui esses rivais potenciais. À parte esta explicação especulativa, contudo, o fato de a escolha homossexual de objeto não sem freqüência provir de um anterior sobrepujamento da rivalidade com os homens não pode passar sem relação com a vinculação entre o homossexualismo e o sentimento social.
À luz da psicanálise, estamos acostumados a considerar o sentimento social como uma sublimação de atitudes homossexuais para com objetos. Nos homossexuais com acentuados interesses sociais pareceria que o desligamento do sentimento social da escolha de objeto não foi inteiramente efetuado. – p. 239/241;
Dois Verbetes de Enciclopédia (19123[1922])
(A) Psicanálise
PSICANÁLISE é o nome de (1) um procedimento para a investigação de processos mentais que são quase inacessíveis por qualquer outro modo, (2) um método (baseado nessa investigação) para o tratamento de distúrbios neuróticos e (3) uma coleção de informações psicológicas obtidas ao longo dessas linhas, e que gradualmente se acumula numa nova disciplina científica.
História
Catarse
A Transição para a Psicanálise
O Abandono da Hipnose
A Associação Livre
A ‘Regra Técnica Fundamental
A Psicanálise como Arte Interpretativa
A Interpretação das Parapraxias e dos Atos Fortuitos
A Interpretação de Sonhos          
A Teoria Dinâmica da Formação Onírica
Simbolismo
A Significação Etiológica da Vida Sexual
A Sexualidade Infantil
O Desenvolvimento da Libido
O Processo de Encontrar um Objeto e o Complexo de Édipo
O Começo Difásico do Desenvolvimento Sexual
A Teoria da Repressão
Transferência.
As Pedras Angulares da Teoria Psicanalítica
História Posterior da Psicanálise
Progressos mais Recentes na Psicanálise
Narcisismo
Desenvolvimento da Técnica
A Psicanálise como Processo Terapêutico
Comparação entre a Psicanálise e os Métodos Hipnótico e Sugestivo
Sua Relação com a Psiquiatria
Críticas e Más Interpretações da Psicanálise
As Aplicações e as Correlações Não-Médicas da Psicanálise
A Psicanálise como Ciência Empírica
(B) A TEORIA DA LIBIDO
LIBIDO é um termo empregado na teoria dos instintos para descrever a manifestação dinâmica da sexualidade. Já fora utilizado nesse sentido por Moll (1898) e foi introduzido na psicanálise pelo presente autor. O que se segue limita-se a uma descrição dos desenvolvimentos por que a teoria dos instintos passou na psicanálise, desenvolvimentos que ainda se acham progredindo.
O Contraste entre os Instintos Sexuais e os Instintos do Ego
A Libido Primitiva
Sublimação
Narcisismo
Abordagem Aparente às Opiniões de Jung
O Instinto Gregário
Impulsos Sexuais Inibidos quanto ao Objetivo
Reconhecimento de Duas Classes de Instintos na Vida Mental
A Natureza dos Instintos
Breves Escritos (1920-1922)
Uma nota sobre a pré-história da técnica de análise (1920)
Associações de uma criança de quatro anos de idade (1920)
Dr. Anton von Freund (1920)
Prefácio a Addresses on Phycho-analysis de J.J. Putnam (1921)
Introdução a The Psychology of Day-Dreams, de J Varendonck (1921)
A Cabeça de Medusa (1940[1922])

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