domingo, 28 de junho de 2015

Conto - Sorrisos Mágicos - Cristiane Caracas

Franzina, cabelos castanhos ondulados e brilhantes era Catarina. Tinha recebido na escola o apelido de pé de vento já que insuperável na corrida. Catarina era aquilo: travessa, inquieta e sapeca.
Certo dia, sua avó chegou à casa com uma novidade, iam ao circo. A menina logo tratou de colocar seu vestido preferido: aquele com babados e laço azul de fita. E assim foram, Catarina e a avó para o maior espetáculo do mundo, era o que dizia o letreiro do Circo.
Tudo ia de boa, as duas se divertiam quando chegou a atração dos palhaços e um deles, em especial, chamou a atenção da menina, era o triste Pierrô. Catarina intrigou-se com aquela dualidade de alegria no ornamento e tristeza na face. Indagou da sua avó como poderia um palhaço ser triste?  Afinal nem combinava o colorido com as lágrimas.

A avó do alto de sua experiência respondeu: “É que, de quando em quando, minha neta, somos como os palhaços deste circo, por vezes alegres, por vezes tristes e sempre que a melancolia invade a alma nos travestimos de Pierrô em um disfarce do desalento”. Catarina não compreendeu bem as palavras da avó, atinou, porém, que por trás das máscaras tristes ou alegres sempre existe o homem/palhaço, desnudo porque aprendeu que é preciso sair de si para reencontrar-se no avesso do eu.

Na saída do circo, entretanto, a criança, ligeira com seus pés de vento, terminou por esbarrar no Pierrô triste e lá de foram os dois ao chão. Catarina sorriu para o palhaço que agora se desmanchava em risos altos e soltos. Aquela imagem atentou a menina sapeca para o poder mágico dos sorrisos, pois não importava o tamanho ou aparência da tristeza, sempre haveria um remédio eficaz para aquela dor interior de que sua avó falava: são os sorrisos mágicos que não podem ser olvidados e devem ser ministrados em doses diárias, perenes e abstratas. Catarina se foi, mas deixou no circo uma lição: o maior espetáculo da vida é feito por cada um quando não desistimos de rir de nós mesmos com os tais sorrisos mágicos, ainda que os fatos e as circunstâncias insistam em nos trajar de pierrôs.
Cristiane Caracas
28/6/2015

Sua assinatura - Thich Nhat Hanh


segunda-feira, 22 de junho de 2015

Caso Clínico em Psicanálise V - A função da ovelha negra ou O poder destruidor da vida de aparências - José Anastácio de Sousa Aguiar


Era evidente a tristeza e o abatimento de Maia, mulher contando com cerca de 40 anos, aparentando, entretanto, muito mais. Contou-me ela que me procurara em razão dos problemas causados pela filha, Mara Eco. Relatou a desolada mãe, que a sua filha única era considerada na família a ovelha negra, pois a partir da pré-adolescência tornou-se rebelde, indócil e irritadiça. Já na adolescência, envolveu-se com drogas e chegava a passar dias sem dormir em casa.
Pedi que ela me reportasse a sua vida e a sua relação com o marido. Após uma hesitação inicial, contou-me, acompanhado de muitas lágrimas, que o seu casamento era um desastre. Ela casara cedo em razão de ter engravidado, entretanto, na verdade, nunca o amara (nem ele a ela, supunha). A vida do casal, desde sempre, era uma falácia, mas a situação piorara quando ela descobriu que o marido levava uma vida dupla, posto que o mesmo se relacionava com outro homem. Assim, Maia passou a dedicar-se totalmente ao trabalho como fuga de seus problemas pessoais. Nesse ambiente, Mara nascera e crescera.
Pois bem, a filha do casal representava todo o desajuste da relação familiar, funcionando, na verdade, como um espelho da vida de aparências levada por aquela família. Mara, que à primeira vista era tida como algoz da tranquilidade do lar, era, em verdade, vítima do desamor de seus pais.  
A inexistência da sinceridade, companheirismo e diálogo gerou todo o desequilíbrio familiar. Assim, a toda evidência, somente com o cultivo das referidas qualidades poder-se-ia restabelecer a harmonia.  
José Anastácio de Sousa Aguiar
* nomes, sexos e alguns detalhes foram alterados para proteger a identidade dos pacientes.

Resumo do Livro XIX - O Ego e o Id e outros trabalhos (1923-1925)


Resumo do Livro XIX – O Ego e o Id e outros trabalhos (1923-1925)
O Ego e o Id
Introdução do editor inglês
_ ‘O orador repetiu a conhecida história do desenvolvimento do conceito de “inconsciente” em psicanálise. “Inconsciente” foi, em primeira instância, um termo puramente descritivo, que, por conseguinte, incluía o que é temporariamente latente. A visão dinâmica do processo de repressão, contudo, tornou necessário fornecer ao inconsciente um sentido sistemático, de maneira que tivesse de ser igualado ao reprimido. O que é latente e apenas temporariamente inconsciente recebeu o nome de “pré-consciente” e, do ponto de vista sistemático, foi colocado em proximidade estreita com o consciente. O significado duplo do termo “inconsciente” indubitavelmente envolvia desvantagens, embora elas fossem de pequena significação e difíceis de evitar. Demonstrou-se, contudo, que não é praticável encarar o reprimido como coincidindo com o inconsciente, e o ego com o pré-consciente e o consciente. O orador debateu os dois fatos que mostram que também no ego existe um inconsciente, que se comporta dinamicamente como o inconsciente reprimido: os dois fatos de uma resistência que deriva do ego durante a análise e de um sentimento de culpa inconsciente. Anunciou que em livro a aparecer brevemente – O Ego e o Id – fez uma tentativa de avaliar a influência que estas novas descobertas devem ter sobre nossa visão do inconsciente.’. – p. 16;
_ Mas surgiu então a questão de saber se, aplicado a um sistema, o termo ‘inconsciente’ seria apropriado. No quadro estrutural da mente, o que, desde o início, fora muito claramente diferenciado de ‘o inconsciente’, fora ‘o ego’. E agora começava a parecer que o próprio ego deveria ser parcialmente descrito como ‘inconsciente’. Isso foi apontado em Além do Princípio de Prazer, numa frase que, na primeira edição (1920g), dizia: ‘Pode ser que grande parte do ego seja, ela mesma, inconsciente; somente uma parte dele, provavelmente, é abrangida pelo termo “pré-consciente”.’ Na segunda edição, um ano depois, essa frase foi alterada para: ‘É certo que grande parte do ego é, ela mesma, inconsciente (…); somente uma pequena parte dele é abrangida pelo temo “pré-consciente” ’ Essa descoberta e os fundamentos para ela foram enunciados com insistência ainda maior no primeiro capítulo do presente trabalho. – p. 18;
_ As funções do sistema Cs. (Pcs.), tal como enumeradas em ‘O Inconsciente’ (Ed. Standard Bras., Vol. XIV, pág. 216), incluem atividades como a censura, o teste da realidade, e assim por diante, todas as quais são agora atribuídas ao ‘ego’. Há uma função específica, contudo, cujo exame deveria conduzir a resultados momentosos: a faculdade autocrítica. Esta e o ‘sentimento de culpa’, correlacionado, atraíram o interesse de Freud desde os primeiros dias, principalmente em vinculação com a neurose obsessiva. Sua teoria de que as obsessões são ‘autocensuras transformadas’ por um prazer sexual fruído na infância foi plenamente explicada na Seção II de seu segundo artigo sobre ‘As Neuropsicoses de Defesa’ (1896b), após ter sido delineado um pouco mais cedo em suas cartas a Fliess. Que as autocensuras podem ser inconscientes, já se achava implícito nessa etapa e foi enunciado de modo específico no artigo sobre ‘Obsessive Actions and Religious Practices’ (1907b), Standard Ed., 9, 123. Foi somente com o conceito de narcisismo, contudo, que se pôde lançar luz sobre o mecanismo real dessas autocensuras. Na Seção III de seu artigo sobre narcisismo (1914c), Freud começou por sugerir que o narcisismo da primeira infância é substituído no adulto pela devoção a um ideal do ego erigido dentro de si próprio. Apresentou então a noção de que pode haver ‘uma instância psíquica especial’ cuja tarefa é vigiar o ego real e medi-lo pelo ego ideal ou ideal do ego – ele parecia utilizar indiscriminadamente os termos (Ed. Standard Bras. Vol. XIV, pág. 112). – p. 21;
_ Mas essa distinção pode parecer artificial quando nos voltamos para a descrição, feita por Freud, da gênese do superego. Essa descrição (no Capítulo III) é indubitavelmente a parte do livro que se perde em importância para a tese principal da divisão tríplice da mente. O superego é aí mostrado como derivado de uma transformação das primitivas catexias objetais da criança em identificações: ele toma o lugar do complexo de Édipo. Este mecanismo (a substituição de uma catexia objetal por uma identificação e introjeção do objeto anterior) foi primeiramente aplicado por Freud (em seu estudo de Leonardo, 1910c) à explicação de determinado tipo de homossexualidade, no qual um menino substitui seu amor pela mãe identificando-se com ela (Ed. Standard Bras., Vol. XI, pág. 93). Aplicou a seguir a mesma noção a estudos de depressão em ‘Luto e Melancolia’ (1917e), ibid., Vol. XIV, pág. 281. Exames ulteriores e mais elaborados desses diversos tipos de identificações e introjeções foram desenvolvidos nos Capítulos VII, VIII e XI de Psicologia de Grupo (1921c), mas foi somente no presente trabalho que Freud chegou às suas opiniões finais sobre a derivação do superego das primitivas relações objetais da criança. – p. 22;
O Ego e o Id
I – A consciência e o que é inconsciente
_ A divisão do psíquico em o que é consciente e o que é inconsciente constitui a premissa fundamental da psicanálise, e somente ela torna possível a esta compreender os processos patológicos da vida mental, que são tão comuns quanto importantes, e encontrar lugar para eles na estrutura da ciência. Para dizê-lo mais uma vez, de modo diferente: a psicanálise não pode situar a essência do psíquico na consciência, mas é obrigada a encarar esta como uma qualidade do psíquico, que pode achar-se presente em acréscimo a outras qualidades, ou estar ausente. – p. 27;
_ ‘Estar consciente’ é, em primeiro lugar, um termo puramente descritivo, que repousa na percepção do caráter mais imediato e certo. A experiência demonstra que um elemento psíquico (uma idéia, por exemplo) não é, via de regra, consciente por um período de tempo prolongado. Pelo contrário, um estado de consciência é, caracteristicamente, muito transitório; uma idéia queé consciente agora não o é mais um momento depois, embora assim possa tornar-se novamente, em certas condições que são facilmente ocasionadas. No intervalo, a idéia foi… Não sabemos o quê. Podemos dizer que esteve latente, e, por isso, queremos dizer que era capaz de tornar-se consciente a qualquer momento. Ora, se dissermos que era inconsciente, estaremos também dando uma descrição correta dela. Aqui ‘inconsciente’ coincide com ‘latente e capaz de tornar-se consciente’. Os filósofos sem dúvida objetariam: – Não, o termo ‘inconsciente’ não é aplicável aqui; enquanto a idéia esteve em estado de latência, ela não foi algo psíquico de modo algum. – Contradizê-los neste ponto não conduziria a nada mais proveitoso que uma disputa verbal. – p. 27/28;
_ O estado em que as idéias existiam antes de se tornarem conscientes é chamado por nós de repressão, e asseveramos que a força que instituiu a repressão e a mantém é percebida como resistência durante o trabalho de análise.
Obtemos assim o nosso conceito de inconsciente a partir da teoria da repressão. O reprimido é, para nós, o protótipo do inconsciente. Percebemos, contudo, que temos dois tipos de inconsciente: um que é latente, mas capaz de tornar-se consciente, e outro que é reprimido e não é, em si próprio e sem mais trabalho, capaz de tornar-se consciente. Esta compreensão interna (insight) da dinâmica psíquica não pode deixar de afetar a terminologia e a descrição. Ao latente, que é inconsciente apenas descritivamente, não no sentido dinâmico, chamamos de pré-consciente; restringimos o termo inconsciente ao reprimido dinamicamente inconsciente, de maneira que temos agora três termos, consciente (Cs.), pré-consciente (Pcs.) e inconsciente (Ics.), cujo sentido não é mais puramente descritivo. O Pcs. acha-se provavelmente muito mais próximo do Cs. que o Ics., e desde que chamamos o Ics. de psíquico, chamaremos, ainda com menos hesitação, o Pcs. latente de psíquico. Mas por que, ao invés disto, não concordamos com os filósofos e, de maneira coerente, distinguimos o Pcs., assim como o Ics., do psíquico consciente? Os filósofos proporiam então que o Pcs. e o Ics. fossem descritos como duas espécies ou estágios do ‘psicóide’ e a harmonia se estabeleceria. Porém, dificuldades infindáveis de exposição se seguiriam, e o fato importante de que estes dois tipos de ‘psicóide’ coincidem em quase todos os outros aspectos com o que é admitidamente psíquico seria forçado para o segundo plano, nos interesses de um preconceito que data de um período em que esses psicóides, ou a parte mais importante deles, eram ainda desconhecidos.
Podemos agora trabalhar comodamente com nossos três termos, Cs., Pcs., e Ics., enquanto não esquecermos que, no sentido descritivo, há dois tipos de inconsciente, mas, no sentido dinâmico, apenas um. – p. 28/29;
_ Formamos a idéia de que em cada indivíduo existe uma organização coerente de processos mentais e chamamos a isso o seu ego. É a esse ego que a consciência se acha ligada: o ego controla as abordagens à motilidade – isto é, à descarga de excitações para o mundo externo. Ele é a instância mental que supervisiona todos os seus próprios processos constituintes e que vai dormir à noite, embora ainda exerça a censura sobre os sonhos. Desse ego procedem também as repressões, por meio das quais procura-se excluir certas tendências da mente, não simplesmente da consciência, mas também de outras formas de capacidade e atividade. – p. 30;
_ Reconhecemos que o Ics. não coincide com o reprimido; é ainda verdade que tudo o que é reprimido é Ics., mas nem tudo o que é Ics. é reprimido. Também uma parte do ego – e sabem os Céus que parte tão importante – pode ser Ics., indubitavelmente é Ics. E esse Ics. que pertence ao ego não é latente como o Pcs., pois, se fosse, não poderia ser ativado sem tornar-se Cs., e o processo de torná-lo consciente não encontraria tão grandes dificuldades. Quando nos vemos assim confrontados pela necessidade de postular um terceiro Ics., que não é reprimido, temos de admitir que a característica de ser inconsciente começa a perder significação para nós. Torna-se uma qualidade quepode ter muitos significados, uma qualidade da qual não podemos fazer, como esperaríamos, a base de conclusões inevitáveis e de longo alcance. Não obstante, devemos cuidar para não ignorarmos esta característica, pois a propriedade de ser consciente ou não constitui, em última análise, o nosso único farol na treva da psicologia profunda. – p. 31;
II – O Ego e o Id
_ A pesquisa patológica dirigiu nosso interesse de modo excessivamente exclusivo para o reprimido. Gostaríamos de aprender mais sobre o ego, agora que sabemos que também ele pode ser inconsciente no sentido correto da palavra. Até agora, a única orientação que tivemos durante nossas investigações foi a marca distinguidora de ser consciente ou inconsciente; acabamos por ver quão ambíguo isso pode ser.
Ora, todo o nosso conhecimento está invariavelmente ligado à consciência. Só podemos vir a conhecer, mesmo o Ics., tornando-o consciente. Detenhamo-nos, porém: como é isso possível? O que queremos dizer quando dizemos ‘tornar algo consciente’? Como é que isso pode ocorrer?
Já conhecemos o ponto do qual temos de partr, com relação a isso. Dissemos que a consciência é a superfície do aparelho mental, ou seja, determinamo-la como função de um sistema que, espacialmente, é o primeiro a ser atingido a partir do mundo externo, e espacialmente não apenas no sentido funcional, mas também, nessa ocasião, no sentido de dissecção anatômica. Também nossas investigações devem tomar essa superfície perceptiva como ponto de partida. – p. 33;
_ Em outro lugar, já sugeri que a diferença real entre uma idéia (pensamento) do Ics. ou do Pcs. consiste nisto: que a primeira é efetuada em algummaterial que permanece desconhecido, enquanto que a última (a do Pcs.) é, além disso, colocada em vinculação com representações verbais. Esta é a primeira tentativa de indicar marcas distinguidoras entre os dois sistemas, o Pcs. e o Ics., além de sua relação com a consciência. A pergunta ‘Como uma coisa se torna consciente?’ seria assim mais vantajosamente enunciada: ‘Como uma coisa se torna pré-consciente?’ E a resposta seria: ‘Vinculando-se às representações verbais que lhe são correspondentes.’
Essas representações verbais são resíduos de lembranças; foram antes percepções e, como todos os resíduos mnêmicos, podem tornar-se conscientes de novo. Antes de nos interessarmos mais por sua natureza, torna-se evidente para nós, como uma nova descoberta, que somente algo que já foi uma percepção Cs. pode tornar-se consciente, e que qualquer coisa proveniente de dentro (à parte os sentimentos) que procure tornar-se consciente deve tentar transformar-se em percepções externas: isto se torna possível mediante os traços mnêmicos. – p. 34;
_ Ora, acredito que muito lucraríamos seguindo a sugestão de um escritor que, por motivos pessoais, assevera em vão que nada tem a ver com os rigores da ciência pura. Estou falando de Georg Groddeck, o qual nunca se cansa de insistir que aquilo que chamamos de nosso ego comporta-se essencialmente de modo passivo na vida e que, como ele o expressa, nós somos ‘vividos’ por forças desconhecidas e incontroláveis. Todos nós tivemos impressões da mesma espécie, ainda que não nos tenham dominado até a exclusão de todas as outras, e precisamos não sentir hesitação em encontrar um lugar para a descoberta de Groddeck na estrutura da ciência. Proponho levá-la em consideração chamando a entidade que tem início no sistema Pcpt. e começa por ser Pcs. de ‘ego’, e seguindo Groddeck no chamar a outra parte da mente, pela qual essa entidade se estende e que se comporta como se fosse Ics., de ‘id’.. – p. 37;
_ O ego representa o que pode ser chamado de razão e senso comum, em contraste com o id, que contém as paixões. – p. 39;
_ Há outro fenômeno, contudo, que é mais estranho. Em nossas análises, descobrimos que existem pessoas nas quais as faculdades de autocrítica e consciência (conscience) – atividades mentais, isto é, que se classificam como extremamente elevadas – são inconscientes e inconscientemente produzem efeitos da maior importância; o exemplo da resistência que permanece inconsciente durante a análise não é, portanto, de maneira alguma único. Mas esta nova descoberta, que nos compele, apesar de nosso melhor juízo crítico, a falar de um ‘sentimento inconsciente de culpa’, desnorteia-nos mais que a outra e nos propõe novos problemas, especialmente quando gradativamente chegamos a perceber que num grande número de neuroses um sentimento inconsciente de culpa desse tipo desempenha um papel econômico decisivo e coloca os obstáculos mais poderosos no caminho do restabelecimento. Se retornarmos mais uma vez à nossa escala de valores, teremos de dizer que não apenas o que é mais baixo, mas também o que é mais elevado no ego, pode ser inconsciente. É como se fôssemos assim supridos com uma prova do que acabamos de asseverar quanto ao ego consciente: que ele é, primeiro e acima de tudo, um ego corporal. – p. 40/41;
III – O Ego e o Superego (Ideal do Ego)
_ Se o ego fosse simplesmente a parte do id modificada pela influência do sistema perceptivo, o representante na mente do mundo externo real, teríamos um simples estado de coisas com que tratar. Mas há uma outra complicação.
As considerações que nos levaram a presumir a existência de uma gradação no ego, uma diferenciação dentro dele, que pode ser chamada de ‘ideal do ego’ ou ‘superego’, foram enunciadas em outro lugar. Elas ainda são válidas. O fato de que essa parte do ego está menos firmemente vinculada à consciência é a novidade que exige explicação. – p. 43;
_ Todo esse assunto é, contudo, tão complicado, que será necessário abordá-lo pormenorizadamente. A dificuldade do problema se deve a dois fatores: o caráter triangular da situação edipiana e a bissexualidade constitucional de cada indivíduo. – p. 46;
_ O amplo resultado geral da fase sexual dominada pelo complexo de Édipo pode, portanto, ser tomada como sendo a formação de um precipitado no ego, consistente dessas duas identificações unidas uma com a outra de alguma maneira. Esta modificação do ego retém a sua posição especial; ela se confronta com os outros conteúdos do ego como um ideal do ego ou superego.
O superego, contudo, não é simplesmente um resíduo das primitivas escolhas objetais do id; ele também representa uma formação reativa enérgica contra essas escolhas. – p. 48/49;
_ O ideal do ego, portanto, é o herdeiro do complexo de Édipo, e, assim, constitui também a expressão dos mais poderosos impulsos e das mais importantes vicissitudes libidinais do id. Erigindo esse ideal do ego, o ego dominou o complexo de Édipo e, ao mesmo tempo, colocou-se em sujeição ao id. Enquanto que o ego é essencialmente o representante do mundo externo, da realidade, o superego coloca-se, em contraste com ele, como representante do mundo interno, do id. Os conflitos entre o ego e o ideal, como agora estamos preparados para descobrir, em última análise refletirão o contraste entre o que é real e o que é psíquico, entre o mundo externo e o mundo interno.
Através da formação do ideal, o que a biologia e as vicissitudes da espécie humana criaram no id e neste deixaram atrás de si, é assumido pelo ego e reexperimentado em relação a si próprio como indivíduo. Devido à maneira pela qual o ideal do ego se forma, ele possui os vínculos mais abundantes com a aquisição filogenética de cada indivíduo – a sua herança arcaica. O que pertencia à parte mais baixa da vida mental de cada um de nós é transformado, mediante a formação do ideal no que é mais elevado na mente humana pela nossa escala de valores. Seria vão, contudo, tentar localizar o ideal do ego, mesmo no sentido em que localizamos o ego, ou encaixá-lo em qualquer das analogias com auxílio das quais tentamos representar a relação entre o ego e o id. – p. 50/51;
_ A tensão entre as exigências da consciência e os desempenhos concretos do ego é experimentada como sentimento de culpa. Os sentimentos sociais repousam em identificações com outras pessoas, na base de possuírem o mesmo ideal do ego. – p. 51;
_ Dessa maneira, no id, que é capaz de ser herdado, acham-se abrigados resíduos das existências de incontáveis egos; e quando o ego forma o seu superego a partir do id, pode talvez estar apenas revivendo formas de antigos egos e ressuscitando-as. – p. 53;
IV – As duas classes de instintos   
_ Já dissemos que, se a diferenciação que efetuamos na mente de um id, um ego e um superego, representa qualquer progresso em nosso conhecimento, deveria capacitar-nos a compreender mais integralmente as relações dinâmicas dentro da mente e a descrevê-las mais claramente. Já concluímos também que o ego se acha especialmente sob a influência da percepção e que, falando de modo geral, pode-se dizer que as percepções têm para o ego a mesma significação que os instintos têm para o id. Ao mesmo tempo, o ego está sujeito também à influência dos instintos, tal como o id, do qual, como sabemos, é somente uma parte especialmente modificada. – p. 55;
_ Notar-se-á, contudo, que, pela introdução desse outro mecanismo de transformação de amor em ódio, tacitamente fizemos outra suposição que merece ser enunciada explicitamente. Fizemos cálculos como se existisse na mente – no ego ou no id – uma energia deslocável, a qual, neutra em si própria, pode ser adicionada a um impulso erótico ou destrutivo qualitativamente diferenciado e aumentar a sua catexia total. Sem presumir a existência de uma energia deslocável desse tipo, não podemos prosseguir. A única questão é saber de onde ela provém, a que pertence e o que significa. – p. 59;
_ considerações sobre o princípio de constância de Fechner – p. 61;
V – As relações dependentes do ego
_ Assim, temos afirmado repetidamente que o ego é formado, em grande parte, a partir de identificações que tomam o lugar de catexias abandonadas pelo id; que a primeira dessas identificações sempre se comporta como uma instância especial no ego e dele se mantém à parte sob a forma de um superego: enquanto que, posteriormente, à medida que fica mais forte, o ego pode tornar-se mais resistente às influências de tais identificações. O superego deve sua posição especial no ego, ou em relação ao ego, a um fator que deve ser considerado sob dois aspectos: por um lado, ele foi a primeira identificação, uma identificação que se efetuou enquanto o ego ainda era fraco; por outro, é o herdeiro do complexo de Édipo e, assim, introduziu os objetos mais significativos no ego. A relação do superego com as alterações posteriores do ego é aproximadamente semelhante à da fase sexual primária da infância com a vida sexual posterior, após a puberdade. Embora ele seja acessível a todas as influências posteriores, preserva, não obstante, através de toda a vida, o caráter que lhe foi dado por sua derivação do complexo paterno – a saber, a capacidade de manter-se à parte do ego e dominá-lo. Ele constitui uma lembrança da antiga fraqueza e dependência do ego, e o ego maduro permanece sujeito à sua dominação. Tal como a criança esteve um dia sob a compulsão de obedecer aos pais, assim o ego se submete ao imperativo categórico do seu superego. – p. 63;
_ Uma interpretação do sentimento de culpa normal, consciente (consciência), não apresenta dificuldades; ele se baseia na tensão existente entre o ego e o ideal do ego, sendo expressão de uma condenação do ego pela sua instância crítica. Os sentimentos de inferioridade, tão bem conhecidos nos neuróticos, presumivelmente não se acham muito afastados disso. Em duas enfermidades muito conhecidas o sentimento de culpa é superintensamente consciente; nelas, o ideal do ego demonstra uma severidade particular e com freqüência dirige sua ira contra o ego de maneira cruel. A atitude do ideal do ego nestes dois estados, a neurose obsessiva e a melancolia, apresenta, ao lado dessa semelhança, diferenças que não são menos significativas. – p. 65/66;
_ Do ponto de vista do controle instintual, da moralidade, pode-se dizer do id que ele é totalmente amoral; do ego, que se esforça por ser moral, e do superego que pode ser supermoral e tornar-se então tão cruel quanto somente o id pode ser. É notável que, quanto mais um homem controla a sua agressividade para com o exterior, mais severo – isto é, agressivo – ele se torna em seu ideal do ego. A opinião comum vê a situação do outro lado; o padrão erigido pelo ideal do ego parece ser o motivo para a supressão da agressividade. Permanece, contudo, o fato de que, como afirmamos, quanto mais um homem controla a sua agressividade, mais intensa se torna a inclinação de seu ideal à agressividade contra seu ego. É como um deslocamento, uma volta contra seu próprio ego. Mas mesmo a moralidade normal e comum possui uma qualidade severamente restritiva, cruelmente proibidora. É disso, em verdade, que surge a concepção de um ser superior que distribui castigos inexoravelmente.
Não posso ir à frente em minha consideração dessas questões sem introduzir uma nova hipótese. O superego surge, como sabemos, de uma identificação com o pai tomado como modelo. Toda identificação desse tipo tem a natureza de uma dessexualização ou mesmo de uma sublimação. Parece então que, quando uma transformação desse tipo se efetua, ocorre ao mesmo tempo uma desfusão instintual [[1]]. Após a sublimação, o componente erótico não mais tem o poder de unir a totalidade da agressividade que com ele se achava combinada, e esta é liberada sob a forma de uma inclinação à agressão e à destruição. Essa desfusão seria a fonte do caráter geral de severidade e crueldade apresentado pelo ideal – o seu ditatorial ‘farás’. ­– p. 68/69;
_ Há dois caminhos pelos quais os conteúdos do id podem penetrar no ego. Um é direto, o outro por intermédio do ideal do ego; seja qual for destes dois o caminho tomado, pode ser de importância decisiva para certas atividades mentais. O ego evolui da percepção para o controle dos instintos, da obediência a eles para a inibição deles. Nesta realização, grande parte é tomada pelo ideal do ego, que, em verdade, constitui parcialmente uma formação reativa contra os processos instintuais do id. A psicanálise é um instrumento que capacita o ego a conseguir uma progressiva conquista do id.
De outro ponto de vista, contudo, vemos este mesmo ego como uma pobre criatura que deve serviços a três senhores e, conseqüentemente, é ameaçado por três perigos: o mundo externo, a libido do id e a severidade do superego. Três tipos de ansiedade correspondem a esses três perigos, já que a ansiedade é a expressão de um afastar-se do perigo. – p. 70;
Apêndice A – O Inconsciente Descritivo e o Inconsciente Dinâmico
Apêndice B – O grande reservatório da libido
Uma Neurose Demoníaca do Século XVII (1923[1922])
Nota do editor inglês
_ Este trabalho foi escrito nos últimos meses de 1922 (Jones, 1957, 105). O próprio Freud explica suficientemente sua origem no começo da Seção I ([1]). O interesse dele pela feitiçaria, possessões e fenômenos afins já vinha de longa data. Parece possível que tenha sido estimulado por seus estudos na Salpêtrière em 1885-6. O próprio Charcot concedera muita atenção aos aspectos históricos da neurose, fato mencionado em mais de um ponto do ‘Relatório’ de Freud sobre sua visita a Paris (1956a [1886]). Há uma descrição de um caso de possessão no século XVI no início da Conferência XVI da primeira série de conferências de Charcot traduzidas por Freud (1886f) e um debate sobre a natureza histérica das ‘demoniomanias’ medievais na sétima das Leçons du mardi, na segunda série de traduções de Freud (1892-94). Além disso, em seu necrológio de Charcot (1893f), concedeu ele ênfase especial a esse aspecto da obra de seu mestre. – p. 85;
Introdução
_ A teoria demonológica daquelas épocas sombrias levou a melhor, ao final, sobre todas as visões somáticas do período da ciência ‘exata’. Os estados de possessão correspondem às nossas neuroses, para cuja explicação mais uma vez recorremos aos poderes psíquicos. A nossos olhos, os demônios são desejos maus e repreensíveis, derivados de impulsos instintuais que foram repudiados e reprimidos. Nós simplesmente eliminamos a projeção dessas entidades mentais para o mundo externo, projeção esta que a Idade Média fazia; em vez disso, encaramo-las como tendo surgido na vida interna do paciente, onde têm sua morada. – p. 89;
A História de Christoph Haizmann, o pintor
O motivo para o pacto com o Demônio
O Demônio como substituto paterno
_ Retornemos portanto à nossa hipótese de que o Demônio, com quem o pintor assinou o compromisso, era um substituto direto de seu pai. E isso é confirmado pela forma sob a qual o Diabo pela primeira vez lhe apareceu – como um honesto cidadão de idade, de barbas castanhas, vestido com uma capa vermelha e apoiando-se com a mão direita numa bengala, com um cão negro ao lado (cf. a primeira ilustração). Posteriormente, sua aparência torna-se cada vez mais terrificante – mais mitológica, dir-se-ia. Está aparelhado com chifres, garras de água e asas de morcego. Teremos de retornar mais tarde a um pormenor específico de sua forma corporal.
De fato, soa estranho que o Diabo seja escolhido como substituto para um amado pai. Porém, só à primeira vista, pois sabemos de muitas coisas que irão abrandar nossa surpresa. Para começar, sabemos que Deus é um substituto paterno, ou, mais corretamente, que ele é um pai exalçado, ou, ainda, que constitui a cópia de um pai tal como este é visto e experimentado na infância – pelos indivíduos em sua própria infância, e pela humanidade em sua pré-história, como pai da horda primitiva e primeva. Posteriormente na vida, o indivíduo vê seu pai como algo diferente e menor. Porém, a imagem ideativa que pertence à infância é preservada e se funde com os traços da memória herdados do pai primevo para formar a idéia que o indivíduo tem de Deus. Sabemos também, da vida secreta do indivíduo revelada pela análise, que sua relação com o pai foi talvez ambivalente desde o início, ou, pelo menos, cedo veio a ser assim. Isso equivale a dizer que ela continha dois conjuntos de impulsos emocionais que se opunham mutuamente; continha não apenas impulsos de natureza afetuosa e submissa, mas também impulsos hostis e desafiadores. É nossa opinião que a mesma ambivalência dirige as relações da humanidade com sua Divindade. O problema não solucionado entre o anseio pelo pai, por um lado, e, por outro, o medo dele e o seu desafio pelo filho, nos proporcionou uma explicação de importantes características da religião e de decisivas vicissitudes nela.
Com respeito ao Demônio Maligno, sabemos que ele é considerado como a antítese de Deus, e, contudo, está muito próximo dele em sua natureza. – p. 103;
_ Temos aqui um exemplo do processo, com que estamos familiarizados, pelo qual uma idéia que possui um conteúdo contraditório – ambivalente -, se divide em dois opostos nitidamente contrastados. As contradições da natureza original de Deus, contudo, constituem um reflexo da ambivalência que governa a atitude do indivíduo com seu pai pessoal. Se o Deus benevolente e justo é um substituto do pai, não é de admirar que também sua atitude hostil para com o pai, que é uma atitude de odiá-lo, temê-lo e fazer queixas contra ele, ganhe expressão na criação de Satã. Assim, o pai, segundo parece, é o protótipo individual tanto de Deus quanto do Demônio. Mas deveríamos esperar que as religiões portassem marcas indeléveis do fato de que o primitivo pai primevo era um ser de maldade ilimitada – um ser mais semelhante ao Demônio do que a Deus.
É verdade que de modo algum é fácil demonstrar os traços dessa visão satânica do pai na vida mental do indivíduo. Quando um menino desenha rostos grotescos e caricaturas, podemos francamente demonstrar que neles está escarnecendo de seu pai, e quando uma pessoa de qualquer sexo tem medo de ladrões e arrombadores à noite, não é difícil identificá-los como partes expelidas (split-off) do pai. Também os animais que aparecem nas fobias animais das crianças são muito amiúde substitutos paternos, como o foram os animais totêmicos das épocas primevas. – p. 104;
IV – Os dois compromissos
V – O curso ulterior da neurose
_ A uma observação superficial, a neurose de Haizmann parece ser um embuste sobrejacente a uma parte da séria, ainda que comum, luta pela existência. Nem sempre é esse o caso, porém assim sucede não poucas vezes. Os analistas amiúde descobrem quão improdutivo é tratar um homem de negócios que, ‘embora sob outros aspectos em boa saúde, apresentou por algum tempo sinais de neurose’. A catástrofe nos negócios com que ele próprio se sente ameaçado, arremessa para cima a neurose, como um subproduto, e isso lhe concede a vantagem de poder ocultar suas preocupações sobre a vida real por trás de seus sintomas. Afora isso, porém, a neurose não serve a qualquer propósito útil, visto utilizar forças que teriam sido mais lucrativamente empregadas tratando-se racionalmente com a situação perigosa.
Em casos bem mais numerosos, a neurose é mais autônoma e independente dos interesses de autopreservação e autoconservação. No conflito criador da neurose, o que está em jogo são interesses unicamente libidinais ou interesses libidinais em vinculações íntimas com interesses autopreservativos. Em todos os três casos, a dinâmica da neurose é a mesma. Uma libido representa que não pode ser satisfeita, na realidade logra êxito, com o auxílio de uma regressão a fixações antigas, em encontrar descarga através do inconsciente reprimido. O ego do doente, na medida em que pode extrair um ‘lucro da doença’ a partir desse processo, aprova a neurose, embora não possa haver dúvida de sua nocividade em seu aspecto econômico. – p. 121;
Observações sobre a teoria e prática da interpretação de sonhos (1923[1922])
_ Ao interpretar um sonho durante uma análise, fica em aberto a escolha de um entre vários procedimentos técnicos.
Pode-se (a) proceder cronologicamente e fazer com que o sonhador traga suas associações aos elementos do sonho na ordem em que esses elementos ocorreram em seu relato do sonho. É esse o método original, clássico, que ainda considero o melhor se estamos analisando os próprios sonhos.
Ou pode-se (b) iniciar o trabalho de interpretação a partir de algum elemento específico do sonho, que se apanha de seu meio. Por exemplo, pode-se escolher o fragmento mais notável dele, ou aquele que apresenta a maior clareza ou intensidade sensória, ou, ainda, pode-se começar de algumas palavras enunciadas no sonho, na expectativa de que elas conduzirão à rememoração de algumas palavras faladas na vida desperta.
Ou pode-se (c) começar por desprezar inteiramente o conteúdo manifesto e, em vez disso, perguntar àquele que sonhou quais os acontecimentos do dia anterior associados em sua mente com o sonho que acabou de descrever.
Finalmente, pode-se (d), estando aquele que sonhou já familiarizado com a técnica da interpretação, evitar fornecer-lhe quaisquer instruções e deixá-lo decidir com que associações ao sonho irá começar. – p. 127;
Algumas notas adicionais sobe a interpretação de sonhos como um todo (1925)
(A) Os limites à possibilidade de interpretação
_ Nossas atividades mentais perseguem um objetivo útil ou um rendimento imediato de prazer. No primeiro caso, aquilo com que estamos lidando são juízos intelectuais, preparações para a ação ou a transmissão de informações a outras pessoas. No último, descrevemos essas atividades como jogo ou fantasia. O que é útil, é (como é bem sabido) em si apenas um caminho tortuoso até a satisfação prazerosa. Pois bem, sonhar é uma atividade do segundo tipo, mas na verdade é, do ponto de vista da evolução, o primeiro. É enganador dizer que os sonhos estão relacionados às tarefas da vida perante nós ou buscam encontrar solução para os problemas de nosso trabalho cotidiano. Isso é assunto do pensamento pré-consciente. Um trabalho útil desse tipo está tão afastado dos sonhos quanto qualquer intenção de transmitir informações a outra pessoa. Quando um sonho lida com um problema da vida concreta, soluciona-o à maneira de um desejo irracional, e não à maneira de uma reflexão razoável. Há apenas uma tarefa útil, apenas uma função que pode ser atribuída a um sonho, e ela consiste em guardar da interrupção o sono. Um sonho pode ser descrito como uma fantasia a trabalhar em prol da manutenção do sono. – p. 143;
_ Ninguém pode praticar a interpretação de sonhos como atividade isolada; ela se mantém uma parte do trabalho de análise. Na análise dirigimos nosso interesse segundo a necessidade, ora para o conteúdo pré-consciente do sonho, ora para a contribuição inconsciente à sua formação, e amiúde negligenciamos um dos elementos em favor do outro. Tampouco seria de qualquer valia para alguém esforçar-se por interpretar sonhos fora da análise. – p. 144;
(B) Responsabilidade moral pelo conteúdo dos sonhos
_ No capítulo introdutório desse livro [A Interpretação de Sonhos] (que debate ‘A Literatura Científica que Trata dos Problemas de Sonhos’) demonstrei a maneira pela qual escritores reagiram ao que se considera como o fato aflitivo de o conteúdo desenfreado dos sonhos tantas vezes estar em disparidade com o senso moral daquele que sonha. (Deliberadamente evito falar de sonhos ‘criminosos’, visto tal descrição, que ultrapassaria os limites do interesse psicológico, parecer-me inteiramente desnecessária.) O caráter imoral dos sonhos naturalmente proporcionou novo motivo para negar-lhes qualquer valor psíquico: se os sonhos são o produto inexpressivo de uma atividade mental desordenada, não pode então haver fundamento para assumir responsabilidade por seu conteúdo aparente. – p. 147;
_ Nosso interesse na gênese desses sonhos manifestamente imorais é, porém, grandemente reduzida quando descobrimos, pela análise, que a maioria dos sonhos – sonhos inocentes, sonhos sem afeto e sonhos de ansiedade – são revelados, quando as deformações da censura foram desfeitas como a satisfação de impulsos desejosos imorais – egoístas, sádicos, pervertidos ou incestuosos. Tal como no mundo da vida desperta, esses criminosos mascarados são muito mais comuns que aqueles com a viseira levantada. O sonho direto de relações sexuais com a própria mãe, a que Jocasta alude em Édipo Rei, é uma raridade em comparação com toda a multiplicidade de sonhos que a psicanálise deve interpretar no mesmo sentido. – p. 148;
(C) O significado oculto dos sonhos
_ Pareceria haver duas categorias de sonhos com direito a serem considerados fenômenos ocultos: os sonhos proféticos e os sonhos telepáticos. Uma multidão incontável de testemunhas fala em favor de ambos, ao passo que contra os dois existe a aversão obstinada, ou talvez preconceito, da ciência. – p. 151;
A organização genital infantil (Uma interpolação na teoria da sexualidade) (1923)
_  Na pág. 60 desse volume, escrevi que ‘a escolha de um objeto, tal como mostramos ser característica da fase puberal do desenvolvimento, já foi freqüente ou habitualmente feita durante os anos de infância: isto é, a totalidade das correntes sexuais passou a ser dirigida para uma única pessoa em relação à qual elas buscam alcançar seus objetivos. Isto é, então, a maior aproximação possível, na infância, da forma final assumida pela vida sexual após a puberdade. A única diferença está no fato de que na infância a combinação dos instintos parciais e sua subordinação sob a primazia dos genitais só foram efetuadas muito incompletamente ou não o foram de forma alguma. Assim, o estabelecimento desta primazia a serviço da reprodução é a última fase através da qual passa a organização da sexualidade’.
Hoje não mais me satisfaria com a afirmação de que, no primeiro período da infância, a primazia dos órgãos genitais só foi efetuada muito incompletamente ou não o foi de modo algum. A aproximação da vida sexual da criança à do adulto vai muito além e não se limita unicamente ao surgimento da escolha de um objeto. Mesmo não se realizando uma combinação adequada dos instintos parciais sob a primazia dos órgãos genitais, no auge do curso do desenvolvimento da sexualidade infantil, o interesse nos genitais e em sua atividade adquire uma significação dominante, que está pouco aquém da alcançada na maturidade. Ao mesmo tempo, a característica principal dessa ‘organização genital infantil’ é sua diferença da organização genital final do adulto. Ela consiste no fato de, para ambos os sexos, entrar em consideração apenas um órgão genital, ou seja, o masculino. O que está presente, portanto, não é uma primazia dos órgãos genitais, mas uma primazia do falo. – p. 159/160;
_ Não é irrelevante manter em mente quais as transformações sofridas, durante o desenvolvimento sexual da infância, pela polaridade de sexo com que estamos familiarizados. Uma primeira antítese é introduzida com a escolha de objeto, a qual, naturalmente, pressupõe um sujeito e um objeto. No estágio da organização pré-genital sádico-anal não existe ainda questão de masculino e feminino; a antítese entre ativo e passivo é a dominante. No estádio seguinte da organização genital infantil, sobre o qual agora temos conhecimento, existe masculinidade, mas não feminilidade. A antítese aqui é entre possuir um órgão genital masculino e ser castrado. Somente após o desenvolvimento haver atingido seu completamento, na puberdade, que a polaridade sexual coincide com masculino e feminino. A masculinidade combina [os fatores de] sujeito, atividade e posse do pênis; a feminilidade encampa [os de] objeto e passividade. A vagina é agora valorizada como lugar de abrigo para o pênis; ingressa na herança do útero. – p. 163;
Neurose e Psicose (1924[1923])
_ No trabalho que mencionei, descrevi os numerosos relacionamentos dependentes do ego, sua posição intermediária entre o mundo externo e o id e seus esforços para comprazer todos os seus senhores ao mesmo tempo. Em vinculação com uma seqüência de pensamento levantada em outros campos, relativa à origem e prevenção das psicoses, ocorreu-me agora uma fórmula simples que trata com aquilo que talvez seja a mais importante diferença genética entre uma neurose e uma psicose: a neurose é o resultado de um conflito entre o ego e o id, ao passo que a psicose é o desfecho análogo de um distúrbio semelhante nas relações entre o ego e o mundo externo.
Há certamente bons fundamentos para desconfiar-se de tais soluções simples de um problema. Ademais, o máximo que podemos esperar é que essa fórmula se mostre correta nas linhas gerais e mais grosseiras. Isso, porém, já seria algo. Lembramo-nos também, de imediato, de todo um número de descobertas e achados que parecem apoiar nossa tese. Nossas análises demonstram todas que as neuroses transferenciais se originam de recuar-se o ego a aceitar um poderoso impulso instintual do id ou a ajudá-lo a encontrar um escoador ou motor, ou de o ego proibir àquele impulso o objeto a que visa. Em tal caso, o ego se defende contra o impulso instintual mediante o mecanismo da repressão. O material reprimido luta contra esse destino. Cria para si próprio, ao longo de caminhos sobre os quais o ego não tem poder, uma representação substitutiva (que se impõe ao ego mediante uma conciliação) – o sintoma. O ego descobre a sua unidade ameaçada e prejudicada por esse intruso e continua a lutar contra o sintoma, tal como desviou o impulso instintual original. Tudo isso produz o quadro de uma neurose. Não é contradição que, empreendendo a repressão, no fundo o ego esteja seguindo as ordens do superego, ordens que, por sua vez, se originam de influências do mundo externo que encontraram representação no superego. Mantém-se o fato de que o ego tomou o partido dessas forças, de que nele as exigências delas têm mais força que as exigências instintuais do id, e que o ego é a força que põe a repressão em movimento contra a parte do id interessada e fortifica a repressão por meio da anticatexia da resistência. O ego entrou em conflito com o id, a serviço do superego e da realidade, e esse é o estado de coisas em toda neurose de transferência. – p. 169/170;
_ A etiologia comum ao início de uma psiconeurose e de uma psicose sempre permanece a mesma. Ela consiste em uma frustração, em uma não-realização, de um daqueles desejos de infância que nunca são vencidos e que estão tão profundamente enraizados em nossa organização filogeneticamente determinada. Essa frustração é, em última análise, sempre uma frustração externa, mas, no caso individual, ela pode proceder do agente interno (no superego) que assumiu a representação das exigências da realidade. – p. 171;
_ Percebemos agora que pudemos tornar nossa fórmula genética simples mais completa, sem abandoná-la. As neuroses de transferência correspondem a um conflito entre o ego e o id; as neuroses narcísicas, a um conflito entre o ego e o superego, e as psicoses, a um conflito entre o ego e o mundo externo. É verdade que não podemos dizer imediatamente se de fato com isso lucramos algum conhecimento novo, ou apenas enriquecemos nosso estoque de fórmulas; penso, porém, que essa possível aplicação da diferenciação proposta do aparelho psíquico em um ego, um superego e um id não pode deixar de dar-nos coragem para manter constantemente em vista essa hipótese. – p. 172;
O problema econômico do masoquismo (1924)
_ A existência de uma tendência masoquista na vida instintual dos seres humanos pode corretamente ser descrita como misteriosa desde o ponto de vista econômico. Pois se os processos mentais são governados pelo princípio de prazer de modo tal que o seu primeiro objetivo é a evitação do desprazer e a obtenção do prazer, o masoquismo é incompreensível. Se o sofrimento e o desprazer podem não ser simplesmente advertências, mas, em realidade, objetivos, o princípio de prazer é paralisado – é como se o vigia de nossa vida mental fosse colocado fora de ação por uma droga.
Assim, o masoquismo aparece-nos à luz de um grande perigo, o que de modo algum procede para seu correspondente, o sadismo. Ficamos tentados a chamar o princípio de prazer de vigia de nossa vida, antes que simplesmente de nossa vida mental. Nesse caso, porém, somos defrontados pela tarefa de investigar o relacionamento do princípio de prazer com as duas classes de instintos que distinguimos, os instintos de morte e os instintos de vida eróticos (libidinais), e não podemos avançar além em nossa consideração do problema, até que tenhamos realizado essa tarefa.
Será lembrado que assumimos a opinião de que o princípio governante de todos os processos mentais constitui um caso especial da ‘tendência no sentido da estabilidade’, de Fechner, e, por conseguinte, atribuímos ao aparelho psíquico o propósito de reduzir a nada ou, pelo menos, de manter tão baixas quanto possível as somas de excitação que fluem sobre ele. Barbara Low [1920, 73] sugeriu o nome de ‘princípio de Nirvana’ para essa suposta tendência, e nós aceitamos o termo. Sem hesitação, porém, temos identificado o princípio de prazer-desprazer com esse princípio de Nirvana. Todo desprazer deve assim coincidir com uma elevação e todo prazer com um rebaixamento da tensão mental devida ao estímulo; o princípio de Nirvana (e o princípio de prazer, que lhe é supostamente idêntico) estaria inteiramente a serviço dos instintos de morte, cujo objetivo é conduzir a inquietação da vida para a estabilidade do estado inorgânico, e teria a função de fornecer advertências contra as exigências dos instintos de vida – a libido – que tentam perturbar o curso pretendido da vida. Tal visão, porém, não pode ser correta. – p. 179/180;
_ Retornemos ao masoquismo. O masoquismo apresenta-se à nossa observação sob três formas: como condição imposta à excitação sexual, como expressão da natureza feminina e como norma de comportamento (behaviour). Podemos, por conseguinte, distinguir um masoquismo erógeno, um masoquismo feminino e um masoquismo moral. – p. 181;
_ O Imperativo Categórico de Kant é, assim, o herdeiro direto do complexo de Édipo. – p. 187;
A dissolução do Complexo de Édipo (1924)
_ Em extensão sempre crescente, o complexo de Édipo revela sua importância como o fenômeno central do período sexual da primeira infância. Após isso, se efetua sua dissolução, ele sucumbe à regressão, como dizemos, e é seguido pelo período de latência. Ainda não se tornou claro, contudo, o que é que ocasiona sua destruição. As análises parecem demonstrar que é a experiência de desapontamentos penosos. A menina gosta de considerar-se como aquilo que seu pai ama acima de tudo o mais, porém chega a ocasião em que tem de sofrer parte dele uma dura punição e é atirada para fora de seu paraíso ingênuo. O menino encara a mãe como sua propriedade, mas um dia descobre que ela transferiu seu amor e sua solicitude para um recém-chegado. A reflexão deve aprofundar nosso senso da importância dessas influências, porque ela enfatizará o fato de serem inevitáveis experiências aflitivas desse tipo, que agem em oposição ao conteúdo do complexo. Mesmo não ocorrendo nenhum acontecimento especial tal como os que mencionamos como exemplos, a ausência da satisfação esperada, a negação continuada do bebê desejado, devem, ao final, levar o pequeno amante a voltar as costas ao seu anseio sem esperança. Assim, o complexo de Édipo se encaminharia para a destruição por sua falta de sucesso, pelos efeitos de sua impossibilidade interna.
Outra visão é a de que o complexo de Édipo deve ruir porque chegou a hora para sua desintegração, tal como os dentes de leite caem quando os permanentes começam a crescer. Embora a maioria dos seres humanos passe pelo complexo de Édipo como uma experiência individual, ele constitui um fenômeno que é determinado e estabelecido pela hereditariedade e que está fadado a findar de acordo com o programa, o instalar-se a fase seguinte preordenada de desenvolvimento. Assim sendo, não é de grande importância quais as ocasiões que permitem tal ocorrência ou, na verdade, que ocasiões desse tipo possam ser de algum modo descobertas. – p. 195;
_ A observação analítica capacita-nos a identificar ou adivinhar essas vinculações entre a organização fálica, o complexo de Édipo, a ameaça de castração, a formação do superego e o período de latência. Essas vinculações justificam a afirmação de que a destruição do complexo de Édipo é ocasionada pela ameaça de castração. Mas isso não nos livra do problema; há lugar para uma especulação teórica que pode perturbar os resultados a que chegamos ou colocá-los sob nova luz. Antes de nos fazermos a esse caminho novo, contudo, devemos voltar-nos para uma questão que surgiu no decorrer desse debate e que até agora foi deixada de lado. O processo descrito refere-se, como foi expressamente dito, somente a crianças do sexo masculino. Como se realiza o desenvolvimento correspondente nas meninas? – p. 199;
A perda da realidade na neurose e na psicose (1924)
_ Recentemente indiquei como uma das características que diferenciam uma neurose de uma psicose o fato de em uma neurose o ego, em sua dependência da realidade, suprimir um fragmento do id (da vida instintual), ao passo que, em uma psicose esse mesmo ego, a serviço do id, se afasta de um fragmento da realidade. Assim, para uma neurose o fator decisivo seria a predominância da influência da realidade, enquanto para uma psicose esse fator seria a predominância do id. Na psicose a perda de realidade estaria necessariamente presente, ao passo que na neurose, segundo pareceria, essa perda seria evitada. – p. 207;
_ Nada de novo existe em nossa caracterização da neurose como o resultado de uma repressão fracassada. – p. 207;
_ Poderíamos esperar que, ao surgir uma psicose, ocorre algo análogo ao processo de uma neurose, embora, é claro, entre distintas instâncias na mente. Assim, poderíamos esperar que também na psicose duas etapas pudessem ser discernidas, das quais a primeira arrastaria o ego para longe, dessa vez para longe da realidade, enquanto a segunda tentaria reparar o dano causado e restabelecer as relações do indivíduo com a realidade às expensas do id. E, de fato, determinada analogia desse tipo pode ser observada em uma psicose. Aqui há igualmente duas etapas, possuindo a segunda o caráter de uma reparação. Acima disso, porém, a analogia cede a uma semelhança muito mais ampla entre os dois processos. O segundo passo da psicose, é verdade, destina-se a reparar a perda da realidade, contudo, não às expensas de uma restrição com a realidade – senão de outra maneira, mais autocrática, pela criação de uma nova realidade que não levanta mais as mesmas objeções que a antiga, que foi abandonada. O segundo passo, portanto, na neurose como na psicose, é apoiado pelas mesmas tendências. Em ambos os casos serve ao desejo de poder do id, que não se deixará ditar pela realidade. Tanto a neurose quanto a psicose são, pois, expressão de uma rebelião por parte do id contra o mundo externo, de sua indisposição – ou, caso preferirem, de sua incapacidade – a adaptar-se às exigências da realidade, à ‘Angch‘ [Necessidade]’. A neurose e a psicose diferem uma da outra muito mais em sua primeira reação introdutória do que na tentativa de reparação que a segue. – p. 209;
_ Dificilmente se pode duvidar que o mundo da fantasia desempenhe o mesmo papel na psicose, e de que aí também ele seja o depósito do qual derivam os materiais ou o padrão para construir a nova realidade. Ao passo que o novo e imaginário mundo externo de uma psicose tenta colocar-se no lugar da realidade – um fragmento diferente daquele contra o qual tem de defender-se -, e emprestar a esse fragmento uma importância especial e um significado secreto que nós (nem sempre de modo inteiramente apropriado) chamamos de simbólico. Vemos, assim, que tanto na neurose quanto na psicose interessa a questão não apenas relativa a uma perda da realidade, mas também a um substituto para a realidade. – p. 211;
Uma breve descrição da psicanálise (1924[1923])
I
_ Pode-se dizer que a psicanálise nasceu com o século XX, pois a publicação em que ela emergiu perante o mundo como algo novo – A Interpretação de Sonhos – traz a data ‘1900’. Porém, como bem se pode supor, ela não caiu pronta dos céus. Teve seu ponto de partida em idéias mais antigas, que ulteriormente desenvolveu; originou-se de sugestões anteriores, as quais elaborou. Qualquer história a seu respeito deve, portanto, começar por uma descrição das influências que determinaram sua origem, e não desprezar a época e as circunstâncias que precederam sua criação.
A psicanálise cresceu num campo muitíssimo restrito. No início, tinha apenas um único objetivo – o de compreender algo da natureza daquilo que era conhecido como doenças nervosas ‘funcionais’, com vistas a superar a impotência que até então caracterizara seu tratamento médico. – p. 217;
_ O ‘inconsciente’, é verdade, há muito tempo estivera sob discussão entre os filósofos como conceito teórico, mas agora, pela primeira vez, nos fenômenos do hipnotismo ele se tornava algo concreto, tangível e sujeito a experimentação. Independentemente de tudo isso, os fenômenos hipnóticos mostravam uma semelhança inequívoca com as manifestações de algumas neuroses. – p. 218;
_ A psicanálise, contudo, de maneira alguma se baseou nessas pesquisas de Janet. O fator decisivo, em seu caso, foi a experiência de um médico vienense, o Dr. Josef Breuer. Em 1881, independentemente de qualquer influência externa, ele pôde, com o auxílio da hipnose, estudar e restituir à saúde uma jovem muito bem dotada que sofria de histeria. Os achados de Breuer não foram comunicados ao público senão quinze anos mais tarde, após ele haver tomado por colaborador o presente autor (Freud). Esse caso de Breuer retém sua significação única para nossa compreensão das neuroses até o dia de hoje, de modo que não podemos evitar demorar-nos nele um pouco mais. É essencial compreender claramente em que consistia sua peculiaridade. A jovem caíra enferma enquanto servia de enfermeira para o pai, a quem estava ternamente ligada. Breuer pôde estabelecer que todos os seus sintomas estavam relacionados a esse período de enfermagem e podiam ser por ele explicados. Assim, pela primeira vez, tornou-se possível ganhar uma visão completa de um caso dessa enigmática neurose, e todos os seus sintomas demonstraram ter significado. Ademais, constituiu característica universal dos sintomas terem eles surgido em situações que envolviam um impulso a uma ação que, contudo, não fora levada a cabo, mas sim, por outras razões, fora suprimida. Os sintomas, de fato, haviam aparecido em lugar das ações não efetuadas. Assim, para explicar a etiologia dos sintomas histéricos, fomos levados à vida emocional do indivíduo (à afetividade) e à ação recíproca de forças mentais (à dinâmica), e, desde então, essas duas linhas de abordagem nunca mais foram abandonadas. – p. 219;
_ O procedimento terapêutico adotado por Breuer foi induzir a paciente sob hipnose a relembrar os traumas esquecidos e reagir a eles com poderosas expressões de afeto. Quando isso era feito, o sintoma, que até então tomara o lugar dessas expressões de emoção, desaparecia. Dessa maneira, um só e mesmo procedimento servia simultaneamente aos propósitos de investigar o mal e livrar-se dele, e essa conjunção fora do comum foi posteriormente conservada pela psicanálise.
Após o presente autor, durante o começo da década de 1890, ter confirmado os resultados de Breuer em considerável número de pacientes, ambos, Breuer e Freud, decidiram conjuntamente uma publicação, Estudos sobre Histeria (1895d), que continha suas descobertas e a tentativa de uma teoria nelas baseada. Asseverava esta que os sintomas histéricos surgiam quando o afeto de um processo mental catexizado por um forte afeto era impedido pela força de ser conscientemente elaborado da maneira normal, e era assim desviado para um caminho errado. Nos casos de histeria, segundo essa teoria, o afeto passava para uma inervação somática fora do comum (‘conversão’), mas se lhe podia dar uma outra direção e ver-se livre dele (‘ab-reagido’) se a experiência fosse revivida sob hipnose. Os autores davam a esse procedimento o nome de ‘catarse’ (purgar, liberar um afeto estrangulado).
O método catártico foi o precursor imediato da psicanálise, e, apesar de toda a ampliação da experiência e toda modificação da teoria, ainda está nela contido como seu núcleo. Ele, porém, não era mais que um novo procedimento médico para influenciar certas doenças nervosas e nada sugeria que se pudesse tornar tema para o interesse mais geral e para a contradição mais violenta. – p. 220;
II
_ Logo após a publicação de Estudos sobre a Histeria, a associação entre Breuer e Freud terminou. Breuer, que na realidade era consultor em medicina interna, abandonou o tratamento de pacientes nervosos e Freud dedicou-se ao aperfeiçoamento ulterior do instrumento que lhe deixara seu colaborador mais idoso. As novidades técnicas que introduziu e as descobertas que efetuou transformaram o método catártico em psicanálise. O passo mais momentoso foi sem dúvida sua determinação de passar sem a assistência da hipnose em seu procedimento técnico. Procedeu assim por duas razões: em primeiro lugar porque, apesar de um curso de instrução com Bernheim em Nancy, ele não conseguia induzir a hipnose em um número suficiente de casos, e, em segundo, porque estava insatisfeito com os resultados terapêuticos da catarse baseada na hipnose. É verdade que esses resultados eram notáveis e apareciam após um tratamento de curta duração, porém demonstravam não serem permanentes e dependerem demais das relações pessoais do paciente com o médico. O abandono da hipnose causou uma brecha no curso do desenvolvimento do procedimento até então e significou um novo começo. – p. 221;
_ Assim, a associação livre, juntamente com a arte da interpretação, desempenhava a mesma função que anteriormente fora realizada pelo hipnotismo.
Parecia como se nosso trabalho houvesse ficado mais difícil e complicado; no entanto, o lucro inestimável estava em que se obtinha agora uma compreensão interna (insight) de uma ação recíproca de forças que haviam estado ocultas do observador pelo estado hipnótico. Tornou-se evidente que o trabalho de revelar o que havia sido patogenicamente esquecido tinha de lutar contra uma resistência constante e muito intensa. As próprias objeções críticas que o paciente levantava a fim de evitar comunicar as idéias que lhe ocorriam, e contra as quais a regra fundamental da psicanálise era dirigida, já eram manifestações dessa resistência. Uma consideração dos fenômenos da resistência conduziu-nos a uma das pedras angulares da teoria psicanalítica das neuroses – a teoria da repressão. Era plausível supor que as mesmas forças, agora então em luta contra o material patogênico a ser tornado consciente, haviam realizado em época anterior, com sucesso, os mesmos esforços. Preenchia-se, assim, uma lacuna na etiologia dos sintomas neuróticos. As impressões e impulsos mentais, para os quais os sintomas estavam agora servindo de substitutos, não tinham sido esquecidos sem razão ou por causa de uma incapacidade constitucional para a síntese (como Janet supunha); através da influência de outras forças mentais tinham-se defrontado com uma repressão cujo sucesso e prova eram precisamente estarem eles barrados à consciência e excluídos da memória. Apenas em conseqüência dessa repressão é que eles se haviam tornado patogênicos, isto é, haviam tido êxito em manifestar-se ao longo de caminhos fora do comum, tais como os sintomas.
Um conflito entre dois grupos de tendências mentais deve ser encarado como o fundamento para a repressão, e, por conseguinte, como a causa de toda enfermidade neurótica. E aqui a experiência nos ensinou um fato novo e surpreendente sobre a natureza das forças que estiveram lutando uma contra a outra. A repressão invariavelmente procedia da personalidade consciente da pessoa enferma (seu ego) e baseava-se em motivos estéticos e éticos; os impulsos sujeitos à repressão eram os do egoísmo e da crueldade, que em geral podem ser resumidos como o mal, porém, acima de tudo, impulsos desejosos sexuais, freqüentemente da espécie mais grosseira e proibida. Assim, os sintomas constituíam um substituto para satisfações proibidas e a moléstia parecia corresponder a uma subjugação incompleta do lado imoral dos seres humanos.
O progresso em conhecimento tornou ainda mais claro o enorme papel desempenhado na vida mental pelos impulsos desejosos sexuais, e levou a um estudo pormenorizado da natureza e desenvolvimento do instinto sexual. Também deparamos, porém, com outro achado puramente empírico, na descoberta de que as experiências e conflitos dos primeiros anos da infância representam uma parte insuspeitadamente importante no desenvolvimento do indivíduo e deixam atrás de si disposições indeléveis que se abatem sobre o período da maturidade. Isso nos trouxe à revelação de algo que até então fora fundamentalmente negligenciado pela ciência – a sexualidade infantil, que, da mais tenra idade em diante, se manifesta tanto em reações físicas quanto em atitudes mentais. A fim de reunir essa sexualidade das crianças com o que é descrito como sendo a sexualidade normal dos adultos e a vida sexual anormal dos pervertidos, o conceito do que era sexual devia, ele próprio, ser corrigido e ampliado de uma forma que pudesse ser justificada pela evolução do instinto sexual.
Após a hipnose ter sido substituída pela técnica da associação livre, o procedimento catártico de Breuer transformou-se em psicanálise, que por mais de uma década foi desenvolvida pelo autor (Freud), sozinho. Durante esse tempo ela gradativamente adquiriu uma teoria que parecia fornecer uma descrição satisfatória da origem, significado e propósito dos sintomas neuróticos, e proporcionava uma base racional para tentativas médicas de curar a queixa. Mais uma vez enumerei os fatores que contribuem para a constituição dessa teoria. São eles: ênfase na vida instintual (afetividade), na dinâmica mental, no fato de que mesmo os fenômenos mentais aparentemente mais obscuros e arbitrários possuem invariavelmente um significado e uma causação, a teoria do conflito psíquico e da natureza patogênica da repressão, a visão de que os sintomas constituem satisfações substitutas, o reconhecimento da importância etiológica da vida sexual, e especificamente, dos primórdios da sexualidade infantil. De um ponto de vista filosófico, essa teoria estava fadada a adotar a opinião de que o mental não coincide com o consciente, que os processos mentais são, em si próprios, inconscientes e só se tornam conscientes pelo funcionamento de órgãos especiais (instâncias ou sintomas). Para completar essa lista acrescentarei que entre as atitudes afetivas da infância a complicada relação emocional das crianças com os pais – o que é conhecido por complexo de Édipo – surgiu em proeminência. Ficou cada vez mais claro que ele era o núcleo de todo caso de neurose, e no comportamento do paciente para com seu analista surgiram certos fenômenos de sua transferência emocional que vieram a ser de grande importância para a teoria e a técnica, do mesmo modo. – p. 222/224;
III
_ Provas de ela ser útil para lançar luz sobre outras atividades que não a atividade mental patológica, logo se apresentaram, em vinculação com dois tipos de fenômenos: as parapraxias muito freqüentes que ocorrem na vida cotidiana – tais como esquecer coisas, lapsos de língua e colocação errada de objetos – e os sonhos tidos por essas pessoas sadias e psiquicamente normais. – p. 225;
IV
_ Entre os conceitos hipotéticos que capacitem o médico a lidar com o material analítico, o primeiro a ser mencionado é o da ‘libido’. Libido, em psicanálise, significa em primeira instância a força (imaginada como quantitativamente variável e mensurável) dos instintos sexuais dirigidos para um objeto – ‘sexuais’ no sentido ampliado exigido pela teoria analítica. Um estudo mais completo demonstrou que era necessário colocar ao lado dessa ‘libido objetal’ uma ‘libido narcísica’ ou ‘do ego’, dirigida para o próprio ego do indivíduo, e a interação dessas duas forças nos capacitou a explicar grande número de processos normais e anormais na vida mental. Uma distinção grosseira logo se fez entre o que é conhecido por ‘neuroses de transferência’ e os distúrbios narcísicos. As primeiras (histeria e neurose obsessiva) constituem os objetos propriamente ditos do tratamento psicanalítico, ao passo que as outras, as neuroses narcísicas, embora possam deveras ser examinadas com o auxílio da análise, oferecem dificuldades fundamentais à influência terapêutica. É verdade que a teoria da libido da psicanálise não está absolutamente completa e sua relação com uma teoria geral dos instintos não é clara, pois a psicanálise é uma ciência jovem, ainda inacabada, e em estágio de rápido desenvolvimento. Porém aqui se deve enfaticamente apontar quão errônea é a acusação de pansexualismo que com tanta freqüência é dirigida contra a psicanálise. Ela busca demonstrar que a teoria psicanalítica não conhece outras forças motivadoras mentais senão as puramente sexuais e, assim procedendo, explora preconceitos populares pelo emprego da palavra ‘sexual’ não em seu sentido analítico, mas no vulgar. – p. 229;
V
_ a equivalência dos contrários nos sonhos constitui um traço arcaico universal no pensamento humano. – p. 233;
_ E então, como terceiro argumento, a psicanálise nos demonstrou, para nosso crescente assombro, o papel enormemente importante desempenhado pelo que é conhecido por ‘complexo de Édipo’ – isto é, a relação emocional de uma criança humana com seus dois pais – na vida mental dos seres humanos. Nosso assombro se reduz quando compreendemos ser o complexo de Édipo o correlativo psíquico de dois fatos biológicos fundamentais: o longo período de dependência da criança humana e a maneira notável pela qual sua vida sexual atinge um primeiro clímax do terceiro ao quinto ano de vida, e depois, passado um período de inibição, reinicia-se na puberdade. E aqui se fez a descoberta de que uma terceira parte extremamente séria da atividade intelectual humana, a parte criadora das grandes instituições da religião, do direito, da ética e de todas as formas de vida cívica, tem como seu objetivo fundamental capacitar o indivíduo a dominar seu complexo de Édipo e desviar-lhe a libido de suas ligações infantis para as ligações sociais que são enfim desejadas. As aplicações da psicanálise à ciência da religião e à sociologia (pelo presente autor, por Theodor Reik e Oskar Pfister, por exemplo), que conduziram a esses achados, ainda são novas e insuficientemente apreciadas, mas não se pode duvidar que estudos posteriores só irão confirmar a certeza dessas importantes conclusões. – p. 235;
_ Podemos, assim, expressar nossa expectativa de que a psicanálise, cujo desenvolvimento e realizações até o presente foram sucinta e inadequadamente relatados nestas páginas, ingressará no desenvolvimento cultural das próximas décadas como um fermento significativo e auxiliará a aprofundar nosso conhecimento do mundo e a lutar contra algumas coisas da vida, reconhecidas como prejudiciais. Não se deve esquecer, contudo, que a psicanálise sozinha não pode oferecer um quadro completo do mundo. Se aceitarmos a distinção que recentemente propus, de dividir o aparelho psíquico em um ego, voltado para o mundo externo e aparelhado com a consciência, e em um id inconsciente, dominado por suas necessidades instintuais, então a psicanálise deve ser descrita como uma psicologia do id (e de seus efeitos sobre o ego). Em cada campo do conhecimento, portanto, ela só pode fazer contribuições, que requerem ser completadas a partir da psicologia do ego. Se essas contribuições amiúde contêm a essência dos fatos, isso apenas corresponde ao importante papel que, pode-se reivindicar, é desempenhado em nossas vidas pelo inconsciente mental que por tanto tempo permaneceu desconhecido. – p. 236;
As resistências à Psicanálise (1925[1924])
_ a teoria psicanalítica sustentou que os sintomas das neuroses constituem satisfações substitutivas deformadas de forças instintuais sexuais, das quais a satisfação direta foi frustrada por resistências internas. – p. 245;
_ Dessa época pré-histórica da existência do indivíduo restou um horror ao incesto e um enorme sentimento de culpa – p. 248;
_ considerações sobre o golpe psicológico, o golpe biológico e o golpe cosmológico. – p. 249;
Uma nota sobre o ‘Bloco Mágico’ (1925[1924])
_ Tive ainda a suspeita de que esse método descontínuo de funcionamento do sistema Pcpt.-Cs. jaz no fundo da origem do conceito de tempo. – p. 261;
A negativa (1925)
_ a negativa constitui um modo de tomar conhecimento do que está reprimido. – p. 267;
_ negar algo em um julgamento é, no fundo, dizer: Isto é algo que eu preferia reprimir.’ – p. 268;
_ na análise jamais descobrimos um ‘não’ no inconsciente e que o reconhecimento do inconsciente por parte do ego se exprime numa fórmula negativa. Não há prova mais contundente de que fomos bem-sucedidos em nosso esforço de revelar o inconsciente, de que o momento m que o paciente reage a ele com as palavras ‘Não pensei nisso’ ou ‘Não pensei (sequer) nisso’. – p. 271;
Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos (1925)
_ nas meninas o Complexo de Édipo levanta um problema a mais que nos meninos. – p. 284;
_ considerações sobre o ciúme – p. 286;
_ considerações sobre as relações existentes entre o Complexo de Édipo e de castração. – p. 289;
_ em casos normais, ou melhor em casos ideais, o complexo de Édipo não existe mais, nem mesmo no inconsciente; o superego se tornou seu herdeiro. – p. 290;
Josef Popper-Lynkeus e a Teoria dos Sonhos (1923)
Dr. Sándor Ferenxzi (em seu 50º aniversário) (1923)
Prefácio a Juventude Desorientada, de Aichhorn (1925)
_ a análise demonstrou que a criança continua a viver quase inalterada no doente, bem como naquele que sonha e no artista; lançou luz sobre as forças motivadoras e tendências que estampam seu selo característico sobre a natureza infantil e traçou os estádios através dos quais a criança chega à maturidade. – p. 313;
Josef Breuer (1925)
Breves escritos (1922-25)