sábado, 27 de setembro de 2014

Fábula - Rafa, o rato que queria ser um coelho - Cristiane Caracas


Alameda das Acácias, número 27. Esse era o endereço do esgoto onde morava Rafa. Um rato branco, tamanho gigante que de tão grande por vezes era chamado de Rafão.
O esgoto era seu mundo. Junto com os demais ratos passava horas a fio se divertindo nos locais mais fétidos e desprezíveis da cidade.
Certo dia, entretanto, arriscou dar uma olhadela, ainda que rápida, para o lado de fora do “seu esgoto”. Era assim que Rafa chamava aquele lugar porque se sentia parte dele. E foi assim que Rafa, por um canto de olho, viu um coelho branco no parque sendo acariciado por uma criança. Por um instante sentiu uma ponta de inveja do coelho e pensou:
_ Eu também poderia ser acariciado. Ora, me pareço com aquele coelho, sou branco, grande, poderia muito bem me passar por um deles, aposto que ninguém perceberia a diferença. Rafa queria mesmo era se sentir acariciado e amado como aquele coelho.
Voltou de mansinho para o esgoto e enquanto os outros ratos se divertiam, pensava em uma maneira de se igualar ao coelho.

_ Primeiro preciso de um banho para realçar meus pelos brancos, pensou, e depois os coelhos não andam sujos como os ratos. Para finalizar cairia bem uma boa água de colônia para tirar dele o cheiro do esgoto.
E foi assim que Rafa tomou um demorado banho e despejou quase o vidro inteiro da colônia francesa que Nina, uma rata metida a chique, tinha lhe dado no amigo secreto do natal passado.
Naquele domingo ensolarado, Rafa encheu-se de coragem, deixou seu mundo subterrâneo e foi ao encontro das crianças que estavam no parque.
E deu-se o ocorrido. Ao avistarem Rafa, foi aquela confusão: mulheres gritando e subindo nos bancos da praça com seus filhos no colo, os homens, mais que depressa, pegaram paus e pedras para expulsarem Rafa dali.
_ Que rato enorme, disse uma.
_ Que nojo, gritou outra.
Rafa, atônito, voltou rapidamente para o esgoto e ao adentrar encontrou André, um rato idoso, que de longe assistiu a tudo.
_ Por que, André? Por que me trataram assim? Eles não veem que estou limpo e cheiroso como o coelho? Até me pareço com um deles. André respirou fundo e respondeu:
_ Você, Rafa, por mais limpo e cheiroso jamais deixará de ser um rato e, por isso, para eles, você não vive no esgoto, é o esgoto que vive em você.
_ Por que você não me disse isso antes André? Teria evitado meus sofrimento, falou Rafa.
_ Porque de nada adiantaria, disse André. É que certas realidades para serem compreendidas precisam primeiro ser vividas e sentidas nas entranhas da própria alma.
Então Rafa voltou para a casa e quebrou seu vidro de água de colônia francesa porque compreendeu que não lhe tinha nenhuma serventia enquanto os sentimentos dos homens se deixassem dominar pelos rótulos do preconceito e não pela generosidade do coração.
Cristiane Caracas
27/09/2014

Cada pessoa é... - Chico Xavier


sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Seja um encorajador...


Crônica - O filhote de passarinho ou Os traumas pessoais na etiologia das neuroses - José Anastácio de Sousa Aguiar


Nunca pensei que um jardim pudesse ser palco de tamanho aprendizado e refletisse tão bem o mundo dos humanos.
Certo dia, antes de sair para trabalhar, fui completar a água da cumbuca da Bia, nossa bela labradora. A cumbuca sempre fica na varanda que dá acesso ao jardim. Pois bem, ao aproximar-me do jardim, notei, o que me pareceu ser, à primeira vista, uma folha agitada pelo vento. Olhando com mais vagar, verifiquei que não havia vento suficiente para tamanha agitação da suposta folha, bem como vi que os movimentos não eram compatíveis com a calmaria do restante do jardim.
Aproximei-me, então, e verifiquei que se tratava de um pequeno filhote de passarinho extremamente agitado. Achei, inicialmente, que o diminuto ser estava a se contorcer em razão da sua exposição excessiva ao sol. A proximidade me fez ver a verdadeira realidade...
A tenra criatura debatia-se em razão de estar sendo atacada pelas formigas da região, que identificaram no neonato um prato fácil. Prontamente o peguei nas mãos e de imediato retirei as várias formigas que certamente já mordiam aquela pele frágil. Ato contínuo, procurei identificar o eventual ninho de origem, que se quedava na parte mais alta do telhado próximo.
De pronto, chamei o jardineiro para trazer uma escada que alcançasse o teto e enquanto o aguardava, segurei nas mãos o pequeno filhote. Já totalmente sem formigas sobre o seu corpo frágil, a novel criatura já não mais se estrebuchava, e aos poucos, com o calor e o conforto das minhas mãos, pareceu relaxar por completo. Num dado momento, fitou-me com um olhar cansado e ali não estavam mais duas criaturas de espécies distintas, mas dois filhos de Deus.
Provavelmente, a agitação de tantos outros seres, caracterizada pela agressividade, inquietude e hostilidade gratuita, passa não pelas mordidas de formigas, mas pelo pulsar das suas feridas internas.
José Anastácio de Sousa Aguiar